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A (in)feliz permanência de Policarpo Quaresma

Completa 100 anos o romance de Lima Barreto, conhecido por ter dedicado sua obra ao contexto sociopolítico da época em que viveu

TEXTO Lucas Colombo

01 de Dezembro de 2015

Lima Barreto

Lima Barreto

Imagem Janio Santos

É uma coincidência riquíssima que Triste Fim de Policarpo Quaresma, um dos principais romances da literatura brasileira, complete 100 anos de publicação neste 2015. O livro não poderia estar mais atual, no retrato que traça dos políticos ineficazes, corruptos e autoritários que nos governam (ou acreditam governar) e no desencanto a que chega o protagonista, no fim da história. O espírito de grande parte dos brasileiros de hoje está ali, representado pelo major Quaresma, um patriota ardente que, no decorrer da narrativa, vai se frustrando com o Brasil – processo similar ao que vimos acontecer na sociedade, nos últimos anos, mais uma vez…

Seu autor, Lima Barreto (1881–1922), é usualmente classificado como “o romancista da República Velha”, por ter dedicado quase toda a sua obra ao contexto político-social em que viveu. Isso é umaverdade – assim, com artigo indefinido. “A” verdade é que, mesmo com os pés bastante fincados em sua época, ele é um escritor atemporal, pois as situações, comportamentos e vícios que apreendeu em seus romances e contos não pertencem ao passado do país, e, tendo em vista os fatos que presenciamos agora, não pertencerão tão cedo. A cultura oligárquica, o fisiologismo, o patrimonialismo e os tipos que descreveu ainda estão muito presentes no cenário brasileiro.

Obra-prima de sátira política, Triste Fim de Policarpo Quaresma é daquelas histórias que vamos lendo com um sorriso de canto de boca. À maneira de Bouvard et Pécuchet, de Gustave Flaubert (de quem Lima era leitor), Quaresma fracassa em todos os seus projetos nobres. A realidade sempre se interpõe aos seus ideais. Cada projeto pelo qual deseja comprovar a grandeza do Brasil falha, por obstáculos que o próprio país coloca no caminho.

Governo Floriano Peixoto, primórdios da República. Funcionário do Ministério da Guerra, Quaresma vai para casa no mesmo horário, todo dia, para estudar a geografia do Brasil, ler José de Alencar, Gonçalves Dias e outros autores nacionalistas e aprender modinhas de violão, “a mais genuína expressão da poesia nacional”. É tão patriota, que proíbe, em casa, que se coma petit-pois e propõe ao Congresso, a “emancipação idiomática” do Brasil, pela implantação do tupi-guarani como língua oficial, em vez do “emprestado” português. Por isso, é considerado louco e internado em um hospício. Decepção.

Ao sair, resolve viver em um sítio e voltar-se à agricultura – até porque o Brasil, na sua apaixonada visão, tem o solo mais fértil do mundo. Nova decepção: as saúvas destroem a plantação, a infraestrutura precária o faz ter perdas financeiras (“Como era possível fazer prosperar a agricultura, com tantas barreiras e impostos?”) e sua recusa em participar de uma manipulação da eleição local rende-lhe multas e embaraços.

Quando, contudo, sabe do estouro da Revolta da Armada (1893), o levante da Marinha contra Floriano, em quem acreditava, seu ufanismo encontra outro espaço, maior, para manifestar-se: a política, o governo. Aí, como o leitor já suspeita, é o fim. O triste fim. E a última decepção: Quaresma, após apresentar-se para servir nas forças governistas, contra os marinheiros que bombardeavam a capital e exigiam a convocação de eleições, depara-se com a ignorância e a truculência do marechal-presidente e seus homens no trato com os revoltosos.

Espantado com os fuzilamentos, redige uma carta de crítica a Floriano e é preso por traição. Termina seus dias no cárcere, a concluir que a pátria, à qual dedicara a vida inteira, é uma ilusão: “A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. (…) Certamente era uma noção sem consistência racional e precisava ser revista”.

Quaresma, em atitude que os psicanalistas chamariam de “negação”, passa a vida rejeitando-se a ver os problemas do país, pondo uma fantasia no lugar deles. Faz isso simplesmente por crer que as deficiências não existem, até senti-las na pele. Na parte em que o personagem vira agricultor, sua reação a amigos que tentam convencê-lo a usar adubo na lavoura ilustra muito bem o apego a ilusões que o – e nos – caracteriza:

“– Adubos! É lá possível que um brasileiro tenha tal ideia! Pois se temos as terras mais férteis do mundo!

– Mas se esgotam, major. (…) se eu fosse o senhor, aduziu o doutor, ensaiava uns fosfatos…

– Decerto, major, obtemperou Ricardo. Eu, quando comecei a tocar violão, não queria aprender música… Qual música! Qual nada! A inspiração basta!… Hoje vejo que é preciso… É assim, resumia ele. (…)

O major considerou o rapaz durante algum tempo e exclamou triunfante:

– O senhor não é patriota! Esses moços…”

A fantasia, porém, acaba logo. Com todas as desventuras que lhe acontecem, Quaresma vai da euforia ao desalento com o país. Soa familiar? Cem anos depois, Triste Fim associa-se perfeitamente a este momento em que, depois de um entusiasmo geral com crédito farto, Copa e Olimpíada, muitos brasileiros afirmam – às vezes, de modo agressivo – terem sido enganados e estarem desencantados com a nação, imersa em corrupção e crise.

INDIFERENÇA
Lima Barreto já havia lançado Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), quando, pouco antes de fazer 30 anos de idade, escreveu Triste Fim de Policarpo Quaresma, para publicação em folhetim no Jornal do Comércio do RJ, em 1911. Quatro anos depois, finalmente, a narrativa saiu em livro. Ótimos contos como A nova Califórnia e O homem que sabia javanês, hoje apreciados, constavam em um apêndice da edição, a qual – fato que diz muito sobre o senso comum cultural brasileiro – foi recebida com indiferença. Em vida, Lima nunca foi muito considerado pela crítica e pelos colegas. De trajetória sofrida, marcada por alcoolismo e internações no hospício, tentou entrar duas vezes na Academia Brasileira de Letras, mas não conseguiu. Só após sua morte, nos anos 1920, sua obra começou a ser mais lida e valorizada, pelas mãos do grupo modernista, defensor de uma literatura coloquial e voltada ao cotidiano brasileiro, como a dele.

Observador arguto do país, Lima foi um autor revoltado com o Brasil feito nenhum outro depois. Na geração atual de escritores, não tem “herdeiro”. Aliás, a ausência, nessa geração, de uma “agenda” política é uma das razões por que a crítica a tem saudado. A despreocupação em debater a sociedade brasileira é vista como sinal de maturidade. Sim, é bom mesmo haver mais diversidade, sutileza e fuga do mero panfleto. Mas umas cutucadas literárias bem-dadas no país, como as que Lima deu e como as que, por exemplo, autores americanos contemporâneos dão nos EUA, às vezes fazem falta por aqui. Motivos para cutucar proliferam. Lima sabia disso, seu personagem centenário termina sabendo, e os brasileiros, enfim desiludidos, agora também sabem. De novo. 

LUCAS COLOMBO, jornalista gaúcho, editor do site Mínimo Múltiplo.

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