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'Vestígios': Entre a essência e a aparência

Peça aborda o tema universal da tortura, mas o faz problematizando aspectos como desejos e autoflagelo

TEXTO Anco Márcio Tenório Vieira

01 de Setembro de 2012

Foto Américo Nunes/Divulgação

Grosso modo, há duas maneiras de se encenar uma peça. Uma é lançando mão dos elementos cênicos (a sonoplastia, o cenário, o figurino, a luz, a representação dos atores) como parte dos procedimentos formais da encenação; outra é obliterar todos esses recursos e privilegiar apenas o texto e a representação dos atores. No primeiro caso, que é o mais corrente, os elementos cênicos organizam formalmente o texto dramático, ao mesmo tempo em que exploram dele tanto os significados que, em geral, não são observáveis quando da leitura ou da encenação pura e simples da obra, quanto criam a mágica do ilusionismo que o teatro encerra desde a sua origem.

O encenador Antonio Edson Cadengue se inscreve nessa tradição que traz como marca o uso e a exploração de todos os recursos formais que são oferecidos pelo teatro, urdindo-os de uma maneira, que eles venham a constituir um todo coerente. Sua última encenação Vestígios, de Aimar Labaki, é um bom exemplo desse modo de conceber o teatro. A peça, que aborda um velho tema da literatura universal — a tortura — se firma em cima de dois opostos: o torturado, Marcelo (na atuação segura de Roberto Brandão), um professor universitário de 29 anos, e os seus algozes — Cardoso (Carlos Lira) e Marcos (Marcelino Dias), de 60 e 45 anos, respectivamente. Apesar do tema da tortura, seja ela física ou psicológica, ser bastante presente na literatura do século 20, existem outros aspectos na prática da tortura que nem sempre são visíveis. Um deles é o que busca problematizar o que leva alguém a escolher tal ocupação. Um segundo aspecto, que não raras vezes está subsumido naquele, é inquirir quais taras ou desejos recônditos se entrelaçam com o prazer de submeter o outro ao suplício. O terceiro são as autoflagelações psicológicas que imprimimos ao nosso próprio corpo. Por fim, o silêncio social, político e cultural que paira sobre a prática desses atos. Silêncio que se instala tanto no seio da sociedade, que finge não ver essa prática ignominiosa (afinal, a vítima é sempre o outro), quanto no algoz, pois ninguém se vangloria publicamente de praticar a mais covarde das covardias: a tortura.

A peça de Aimar Labaki lida com algumas dessas questões e, por sua vez, o encenador da sua obra soube usar todos os procedimentos formais oferecidos pelo teatro para ressaltar certos aspectos do texto que passariam desapercebidos pelo leitor ou espectador menos atento. No caso, os recursos oferecidos pela iluminação (a cargo de Saulo Uchôa), pela sonoplastia (assinada por Eli-Eri Moura) e pelo cenário (concebido por Doris Rollemberg). Esses três recursos teatrais se entrelaçam na encenação e formam um todo inseparável. Valendo-se da música, da luz, dos espelhos e dos vidros, Cadengue busca quebrar, no espectador, o “reconhecimento”, isto é, o pré-conceito que temos sobre o assunto em questão. É desse modo que o espelho disposto no palco cumpre uma função inversa da que lhe é correntemente destinada. No caso, ele não reflete por semelhança o que deveria refletir: seja enquanto metáfora da imagem pública que construímos de nós e pela qual somos reconhecidos, seja, de maneira substantiva, por deformar os objetos e as pessoas que nele são refletidos. O mesmo ocorre com as paredes de vidro, pois enquanto divisórias elas só permitem que os torturadores vejam a vítima, impedindo que esta os veja.

E por que esse jogo de luzes sobre os espelhos e os vidros construindo permanentemente uma sensação de lusco-fusco? Por que todo o ambiente é envolvido por sons que mantêm a atmosfera sempre em suspensão? Porque a tortura é, aqui, o pano de fundo para se discutir o jogo e a dialética entre a aparência (o que se vê à luz do dia) e a essência do Ser (o lusco-fusco); entre o que somos de fato e a imagem social que representamos; entre a moral da casa e a moral da rua. O espelho, na encenação, não reflete, como deveria refletir, a imagem dos personagens, mas a sua alma (Nelson Rodrigues chamaria de os desejos que apodrecem na alma), assim como a divisória de vidro é a metáfora entre o que vemos nos outros, mas, em contrapartida, o que não queremos que os outros vejam em nós. Assim, o torturado pode ver no espelho o farrapo psicológico e humano em que ele se tornou. Mas o espelho é também, aqui, uma espécie de Retrato de Dorian Gray, pois guarda, dentro das quatro paredes de vidro, as suas vontades mais secretas: o prazer que ele, Marcelo, sentiu em beijar um rosto apartado do seu corpo e em avançado estado de putrefação, assim como o gozo que nutre por mulheres mutiladas. Já os torturadores veem nos espelhos as suas verdadeiras faces: não as dos respeitáveis pais de família que representam ser, mas as dos que se regozijam em subtrair a humanidade do outro, ou, no caso de Marcos, no poder externar, por meio da tormento, o lado “escuro” do seu desejo, “porque o meu desejo sempre foi na rua, mas fora do sol”. Afinal, para ele, “A família é o lugar do dever. Não o lugar do prazer. Família, com prazer, vira baderna”.

Mas a peça encerra outra sutileza: Marcelo e Marcos, torturado e torturador, representam faces de uma mesma realidade; apesar de estarem em campos opostos, ambos são prisioneiros dos seus desejos: a da autoflagelação psicológica. A tara nunca revelada do primeiro (a necrofilia e o gozo por mulheres mutiladas) o leva a cair em uma trama que nem ele mesmo sabe a extensão das suas implicações. Já o segundo se vale da “legalidade” da tortura para externar a sua verdadeira natureza: o prazer por outros homens. E mais uma vez os vidros e os espelhos escondem de um e de outro aquilo que deveriam revelar: a transparência e a imagem da alma, do Ser.

Vestígios, de Aimar Labaki, na encenação de Antonio Edson Cadengue, parece-nos, à primeira vista, mais uma peça a tratar de um tema mais do que explorado. No entanto, termina por dizer muito mais sobre o algoz que cada um traz no seu íntimo do que sobre a tortura em si (esta, enquanto prática de Estado). Afinal, o recurso a ela revela uma sociedade de homens e mulheres comuns, pedestres, que estão doentes e feridos. E ninguém gosta de falar das doenças que acometem a sua alma e das feridas que nunca cicatrizam. O mundo não foi feito para os fracos, mesmo que todos nós sejamos filhos da Queda. 

ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA, professor, doutor em Literatura Brasileira.

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