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'Sudoeste': Outro caminho para o cinema brasileiro

Assim como Luiz Fernando Carvalho, o cineasta carioca Eduardo Nunes embebe seu trabalho de atmosfera existencial e contemplativa

TEXTO Zeca Miranda

01 de Outubro de 2011

Foto Divulgação

Santo Agostinho (354-430) dizia que o tempo era uma característica do mundo criada por Deus e que não existia antes da criação. A assertiva do filósofo cristão parece servir aos propósitos idealizados por Eduardo Nunes em seu primeiro longa-metragem, Sudoeste. O filme se passa em uma vilota onde os eventos ocorrem em dois cursos distintos: o dos habitantes e um outro, iniciado após o nascimento de Clarice, personagem central da trama. O resultado que isso provoca é uma solidão que parece abater a película em todos os sentidos, desde a falta de comunicação entre as personagens até a forma encontrada por Nunes para ditar o enredo, com muitas pausas, silêncios e longos travellings para apreciação das imagens. É o cinema sendo usado em uma de suas formas mais clássicas, de captura de tempo e espaço para narrar uma história.

Filmado em 2009, numa antiga salina próxima a Arraial do Cabo, na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro, o longa não tem época ou local definidos. Figurinos, cenários e sons servem de ornamento para as imagens idealizadas por Nunes e pelo diretor de fotografia Mauro Pinheiro Jr. (Cinemas, aspirinas e urubus). Todo em preto e branco, rodado em 35mm e com formato da janela 1:3.66, Sudoeste tem uma natureza onírica bastante incomum para os padrões costumeiros.

Em seu apartamento, em Niterói, Nunes conta que o projeto do filme possui mais de 10 anos e só pôde ser realizado com a aprovação do B.O. (concurso de edital para filmes de baixo orçamento do Ministério da Cultura), em 2008. Embora não tenha efeitos mirabolantes e recursos ostensivos, a produção é tão bem-acabada, que não parece haver custado o prêmio do edital no valor de R$ 1 milhão. Ainda mais quando se leva em conta um elenco que tem Simone Spoladore, Dira Paes, Mariana Lima, Julio Adrião, Everaldo Pontes. “Foram pessoas que acreditaram desde o princípio no projeto”, afirma.

Existe também outro segredo simples para não estourar o orçamento, segundo Nunes: “Respeitar o planejamento”. Um rápido giro dentro de seu apartamento e percebe-se a milimétrica organização do lugar. Para ele, tudo funciona quando se define claramente o papel de cada coisa. É assim no trabalho, é assim na vida.

Como exemplo, ele mostra um mapa de luz em um papel quadriculado, feito para um de seus curtas, Terral (1995). O estudo aponta a luz em cada sequência. “O Kubrick fazia isso também”, diz ele, contando de onde vem a inspiração.

Nunes possui uma antiga trajetória em curtas-metragens. São cinco, no total. Terral recebeu o Kikito no Festival de Gramado. Este ano, Sudoeste teve a sua primeira exibição pública, fora de competição, no encerramento do festival. “Foi um alívio saber que, depois de tanto trabalho, o projeto causou uma boa impressão entre os que estavam presentes”. No seu escritório caseiro, apontando para a tela do computador, ele mostra os próximos desafios do longa: Festival de Chicago e do Rio, em outubro; e Festival de Roterdã em janeiro. No circuito comercial, o filme ainda não tem estreia definida. “A intenção é aproveitar os festivais e mostras e já entrar em cartaz, aproveitando a repercussão”, afirma.

O diretor já pensa em deixar Sudoeste caminhar sozinho. Na manga, alguns projetos para os próximos verões. “Atualmente, estou trabalhando numa adaptação de Camus. Conseguimos os direitos de A morte feliz e queremos aproveitar a viagem à Europa para captar recursos”, conta o cineasta.

Antes de filmar Sudoeste, Nunes fez, com recursos próprios e a ajuda de amigos, o longa Duas da manhã, que agora aguarda para ser finalizado. “Vamos esperar acabar todo o processo com Sudoeste, para voltar a trabalhar nesse filme.” Gravado em digital e também estrelado por Spoladore, Duas da manhã deverá ser transferido para película por Nunes.

2.100 TÍTULOS
Na área de serviço do apartamento, fica o “tesouro” do cineasta: uma coleção de DVDs com mais de 2.100 títulos – listadas em ordem alfabética pelo sobrenome dos diretores. Grandes ícones do cinema, como Tarkovski e Bergman – referências maiores para Nunes –, passando por títulos raros, até blockbusters, ajudam a fundamentar sua fama de cinéfilo. “Os vizinhos do prédio vêm pegar filme aqui. Eu anoto cada um que sai e sei quem está com o quê”, pontua.

Essa “tara” por cinema é facilmente notada em sua estreia em longas. Em Sudoeste, é possível perceber referências da narrativa de Limite, de Mario Peixoto, da contemplação dos planos de Tarkovski, do debate existencial de Bergman e de Luiz Fernando Carvalho, em Lavoura arcaica.

O diretor fluminense diz tirar mais inspiração dos livros que do próprio cinema para contar histórias. O que explica, em parte, um mérito do filme, que é apontar outros caminhos temáticos para a produção nacional. Não é desmerecimento querer mostrar o cotidiano e a rotina dos problemas do país, nem revelar a imagem bestializada da nossa realidade, mas faz-se também necessário que temas mais universais, que exponham a alma humana, sejam retratados pelo cinema brasileiro, para que ele cresça e se comunique como uma arte maior que é. E isso Sudoeste faz bem. 

ZECA MIRANDA, jornalista.

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