CONTINENTE Existe mais de um tipo de leitura silenciosa?
ROGER CHARTIER Há uma leitura intensiva, que se prende ao texto – que faz o texto penetrar no espírito do leitor –, ou uma leitura extensiva – rápida, desenvolta, mais solta à letra do texto. As duas são silenciosas, mas são modelos diferentes. E aqui encontraríamos uma dicotomia da perspectiva. Alguns historiadores consideram que, na Europa do século 18, nós passamos de um modelo de leitura intensivo – preso ao corpus do texto, em que há uma força de pureza, espécie de sacralidade concernindo ao texto, um modelo de leitura religiosa – a um modelo extensivo, que se dá principalmente no Século das Luzes, à leitura dos pequenos formatos, dos novos gêneros, dos periódicos... Então, é uma visão cronológica. E tem os historiadores que acreditam que há um modelo de leitura intensivo e extensivo, que pode ser empregado pelo mesmo leitor, de acordo com o gênero do texto. Poderíamos dizer que os humanistas do século 16 fazem uma leitura intensiva, porque está ligada a uma perspectiva filológica, para estabelecer o sentido do texto. Ao mesmo tempo, são leitores extensivos, porque querem fazer referência ao máximo de leituras possível, já que pretendem reconstruir uma cultura moderna com referência na Antiguidade.
CONTINENTE No que diz respeito à forma, nós tínhamos o livro em rolos, passamos para o códex e chegamos à era da multimídia. Como o suporte muda a maneira de ler?
ROGER CHARTIER A primeira grande revolução da leitura foi a substituição do livro em rolos da Antiguidade pelo códex, que é formado por cadernos de páginas. Em seguida, passamos pela invenção de Gutemberg, a imprensa, que também mudou paradigmas. Pensando na tela, essa é uma terceira ruptura material. Uma ruptura particular, porque nos tablets, ou nos computadores, se encontra dissociada a ligação que era mantida no rolo ou no códex entre o livro como obra e o livro como objeto. Um tablet, ou uma tela, não é um livro, no sentido de que a sua materialidade não está ligada unicamente a um texto que leremos. É um suporte que pode receber uma pluralidade de textos. Há a transformação de uma materialidade que não é da mesma ordem do rolo ao códex, ou do códex manuscrito à imprensa. Não há uma analogia imediata, trata-se de uma apropriação possível desses objetos. Por isso devemos nos resguardar de qualquer determinismo tecnológico ou morfológico. As práticas e os usos do texto certamente podem ser favorecidos ou impedidos por esse ou outro suporte, mas têm uma certa autonomia à materialidade.
CONTINENTE E quanto à prática editorial, o quanto muda com o multimídia?
ROGER CHARTIER Mais uma vez, depende de como você olha. Podemos ter uma concepção que considera que simplesmente damos uma nova forma, numérica, a textos que poderiam existir numa outra forma, como impresso. E tem toda a discussão sobre a “numerização” do texto impresso, do manuscrito, o fato de que podemos ter uma edição impressa e numérica do mesmo livro. Temos que rever essa ideia, porque a consideração é de que as novas tecnologias são uma base diferente para formas de texto que não são necessariamente ligadas a esse suporte, já que esse texto existiu e vai existir em outra plataforma. A coisa fica diferente quando pensamos na forma de inscrição do texto como pertencente aos suportes. Por exemplo: porque são multimídia, podemos inserir imagens, sons... ou porque são maleáveis, e móveis. Eu penso que o mundo numérico é o mundo da coexistência dessas duas formas: os textos “numerizados”, que já existiam anteriormente em outro formato, e os textos nascidos numéricos, impossíveis de se imaginar noutro suporte. Essa diferença traz algumas consequências, como a oposição entre a edição e a premissa inicial. Para estabelecer um copyright é preciso que haja, no mínimo, uma identidade perpetuada. Num texto aberto, não há possibilidade de copyright, o que modifica a própria noção de propriedade intelectual. No primeiro caso, ela é defendida, no segundo, abolida. No primeiro caso, o autor pode dispor de novas possibilidades graças à forma numérica do texto, como não precisar ir à uma biblioteca, ou poder fazer anotações digitais, mas o texto permanece da maneira que é; no segundo caso, o leitor vira autor, o que provoca uma cadeia de autores.
CONTINENTE Essa cadeia de autores, então, propicia um aumento na produção literária, não é? Mas qual é a qualidade dessa literatura?
ROGER CHARTIER Ao meu ver, produzimos mais escritos. Já literatura, não sei. Porque temos aqui quase uma oposição à definição do conceito de literatura do século 18, que supõe a singularidade da escritura, a originalidade da obra e a propriedade do autor sobre o texto. São três elementos que a segunda modalidade numérica de livros da qual falava coloca em questão. A escritura não precisa ser mais singular, pode ser coletiva; a originalidade reside nesse movimento permanente de composição; e, finalmente, não há propriedade de um autor sobre uma obra. Talvez o que deveríamos fazer seria batizar esses novos escritos de “literatura”, porém, eles abrem uma série de noções que não são originalmente da literatura. O autor pode desaparecer. A obra não pode mais ser definida e delimitada como o mundo impresso ou manuscrito. E a liberdade, ou a gratuidade dessa transmissão são contraditórias com uma noção de propriedade. Então, eu penso que há um universo de escritura que se abre, ao qual o mundo da literatura se adapta muito mal. Mas temos várias formas de pensar a literatura através dos séculos, o problema é a tendência de universalizar noções que têm continuidades históricas particulares. Não há literatura eterna.
CONTINENTE E a noção de autor nas compilações épicas, como em Homero?
ROGER CHARTIER No gênero épico, temos uma tradição oral, na qual a memorização é essencial. A partir de um momento, há uma passagem da oralidade à transcrição desses textos, que pode fazer emergir um autor. Quer dizer, não necessariamente o fato de saber que existe um escritor, mas considerar que um texto pode ser atribuído a um nome próprio. É o que se passa com Homero, e o que se passa com todos os indivíduos aos quais se atribuíram obras. Portanto, não penso que a categoria do autor tem uma durabilidade comparável com a da literatura em si. Na Idade Média, havia os textos que pretendiam dizer a verdade – a verdade sobre o mundo, sobre a natureza... – eram ligados à autoridade de um nome próprio, fosse esse o do escritor que produziu o texto, fosse um nome próprio que servisse de fiador dessa “verdade”. E depois, a partir do século 18, o texto literário passou a exigir o nome do autor. Então, há figuras sucessivas, aquelas ligadas a uma função de autoridade, de autorização e de autentificação do texto, ou vinculadas a essa identidade posta entre o nome do escritor e o nome do autor.
CONTINENTE Como você interpretaria a literatura de pessoas como Jorge Luís Borges, que faz uma brincadeira com a autoria e com a falsa historicidade?
ROGER CHARTIER Nós poderíamos dizer que Borges faz um jogo permanente com essas questões. Borges y yo, por exemplo, mostra que o nome do autor constrói e absorve o desejo do escritor. Nesse modelo, não há autoria sem a pessoa do escritor; o que há é uma espécie de relação de permanência dialética entre um e o outro. E, a partir daí, Borges atribui textos reais a autores que ele imagina, ou utiliza nomes reais atribuindo-lhes textos que ele próprio escreveu. Ele mesmo pode se vincular a um certo número de pseudônimos. Poderíamos dizer que a obra de Borges tange essa tensão, à maneira dos séculos 19 e 20, entre o escritor e o autor. Mas outros criadores levam isso ainda mais longe. Um exemplo é Fernando Pessoa, com a publicação de obras inteiras sob outros nomes, cada um com uma especificidade literária, estética ou política. Os heterônimos são uma realização magnífica a partir do escritor Pessoa, uma multiplicidade de autores, que são ele e também não o são. Então, a literatura contemporânea brinca até o infinito com essa tensão que concerne aos heterônimos, pseudônimos, ao plágio e ao inverso do plágio, que é atribuir diferentes autorias aos seus textos, para fazê-los circular.
CONTINENTE Na internet, isso é muito comum. Acontece com muitos autores aqui, do Brasil, de terem textos que são seus ligados a outros nomes por conta de uma semelhança estética, ou temática.
ROGER CHARTIER Não é uma coisa nova. Lope de Vega reclamava porque publicavam obras atribuídas a si, mas que ele jamais havia escrito. Sob o nome de Shakespeare, as livrarias londrinas publicavam peças, ou poemas que ele nunca escrevera. O nome do autor é uma espécie de comodity, de valor que pode ser dissociado da escritura. Nós temos muito o que pensar, já que o paradigma da literatura contemporânea supõe que há identidade entre o escritor e o autor, mas, num passado mais antigo, a assinatura poderia servir como o recurso publicitário.
ANDRÉ VALENÇA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.