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'Os dias': O tempo que não cabe em si

Recente livro de Weydson Barros Leal, composto de 25 poemas, lida com a inadequação entre o vivido e o mensurado

TEXTO Anco Márcio Tenório Vieira

01 de Março de 2015

Weydson Barros Leal

Weydson Barros Leal

Foto Divulgação

Depois de uma sequência uma sequência de títulos que evocam os elementos da natureza, os mistérios da existência, as epifanias do cotidiano, as vozes que cantam a poesia e o universo literário cultivado por Jorge Luís Borges – Água e pedra (1985), O aedo (1988), O ópio e o sal (1990), O silêncio e o labirinto (1994), Os círculos imprecisos (1994), A música da luz (1997), Os ritmos do fogo (1999), Celebração (1999) e A quarta cruz (2009) –, o poeta Weydson Barros Leal batiza o seu derradeiro livro apenas com substantivo masculino – Os dias –, inscrevendo a sua obra em uma tradição de títulos literários que se valeram desse substantivo – seja como metáfora, seja como alegoria – para plasmarem o caminhar do homem sobre a terra.

Foi assim com Os trabalhos e os dias. Título que o poeta grego Hesíodo (séc. 18 a.C.) escolheu para falar do mundo dos mortais em contraposição ao mundo que ele cantara em sua Teogonia: o das divindades. Aqui, a palavra dias não pode ser entendida sem outro substantivo masculino: trabalho. É o “trabalho” que pauta e dá a medida dos “dias” e da miséria humana; o modo de viver e de agir dos homens, as suas insuficiências, limitações, alegrias, dores, velhice e, principalmente, a sua consciência da finitude. Para Hesíodo, o “trabalho” cotidiano e o suor do rosto é o preço que nós, humanos (chamados por ele de Raça de Ferro, ou quinta Raça), pagamos por nos afastarmos dos deuses e semideuses — as Raças de Ouro, Prata, Bronze e de Heróis.

Se o narrador épico de Os trabalhos e os dias afirma que “antes não estivesse eu entre os homens da quinta raça,/ mais cedo tivesse morrido ou nascido depois”, o Marcel Proust de Os prazeres e os dias (1896) assevera em sua obra exatamente o inverso. No escritor francês, não será o trabalho e a miséria humana que lhe interessam enquanto matéria literária, pautando os contos e os poemas que formam o seu livro e, sim, a capacidade e a sensibilidade dos homens de verem e de tirarem pequenos e grandes prazeres dos fenômenos da natureza e das manifestações da vida. A vida só é suportável pelos prazeres que dela podemos extrair, escreve o prefaciador de Proust, o hoje injustamente esquecido Anatole France. O mundanismo, a sensualidade, as penas de amor, a melomania, a vilegiatura, a cor do tempo, os devaneios, a amizade, os sonhos, os castanheiros, o mar e os jantares não são apenas alguns dos títulos e subtítulos que batizam os textos que compõem Os prazeres e os dias, mas temas que dão a dimensão do que Proust entendia por prazeres.

Diverso dos títulos dados por Hesíodo e Proust às suas obras, Os dias não se faz precedido por nenhuma outra palavra. Não só: aparentemente não vamos encontrar nesse livro de Weydson Barros Leal elementos que direcionem ou pautem o correr do tempo: nem os trabalhos, nem os prazeres. No entanto, quando lemos os seus poemas, indiferentemente da ordem em que eles foram organizados pelo poeta ou das análises e interpretações que podemos extrair dos seus versos, vemos que uma questão ontológica parece perpassar ou alinhavar os 25 poemas que integram a obra, a de que “Algo sempre é mais breve/ do que deveria/ ou tarda além do que podemos esquecer” (As manhãs).

Nesses versos, que bem ilustram o que queremos dizer, a brevidade e o espaçamento são metáforas de um tempo (pautado e contado pelos “dias”) que já não cabe dentro da medida do homem e do modo de vida da nossa contemporaneidade. O tempo, aqui, deixa de ser o limite e a regra das coisas (dos trabalhos, dos prazeres) – já que ele ora nos parece insuficiente para a demanda dos dias, ora nos consome ou nos persegue além do que desejamos –, para ser o Leviatã, o monstro do nosso caos. Assim, se, em Hesíodo e Proust, os trabalhos e os prazeres regulam e dão a disposição dos dias, nos versos de Weydson Barros Leal, a incompletude, a desmensurabilidade e a inadequação das coisas orientam e consomem os nossos desejos, as lembranças, os ofícios e, principalmente, os nossos dias.

Dentro dessa incompletude desmedida e inadequação das coisas, o poeta crê que “vivemos para lembrar/ morremos para esquecer// e assim os nomes que se perdem/ a infância que criamos/ os números que marcaram/ cada porta” (o cercado dos ossos). Não sendo mais os dias a nossa medida, perdemo-nos em lembranças que, ao fim e ao cabo, são apenas imagens que ficaram no lugar das coisas, das experiências, daquilo que vimos e sentimos um dia. Afogados em um passado idealizado e falseado por nossa memória, resta-nos a morte não como o perfazimento de uma existência, mas como o emplasto de uma vida que não cabe mais na medida do tempo, nos dias que estão além ou aquém das nossas ações, em uma memória inflada de imagens e coisas, que já não sabemos distinguir o que fora verdadeiro ou falso, o que fora sonho ou realidade.

Os dias não só é um livro de um poeta maduro, de um dos grandes nomes da sua geração, mas uma obra que, por meio de metáforas, alegorias, intertextualidades, imagens, figuras e símbolos, por meio da aventura da linguagem, da delicadeza no emprego das palavras, nos leva a entender que o relógio que marca o nosso tempo não dá mais a medida dos nossos dias e, principalmente, que entre o ruído instalado entre o relógio e os dias que escorrem na vida e na memória dos homens, ainda (felizmente) podemos dizer e sentir o indizível por meio da poesia. 

ANCO MÁRCIO TENÓRIO VIEIRA, professor da UFPE e doutor em Teoria da Literatura.

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