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"O discurso humorístico é também ideológico"

Frase do cartunista Laerte ganha respaldo em meio à batalha da defesa de opiniões travada na internet, sob o formato de piadas, paródias e memes

TEXTO Débora Nascimento

01 de Dezembro de 2014

Ilustração Allan Sieber/Divulgação

[conteúdo vinculado à reportagem de capa | ed. 168 | dez 2014]

O compartilhamento de humor no Facebook extravasou
os limites da intenção do riso e passou também a tentar angariar novos adeptos a determinados pensamentos. Como já defendeu o cartunista Laerte: “O discurso humorístico é também um discurso ideológico”. Talvez sem desconfiar dessa premissa, boa parte dos usuários multiplica piadas carregadas de intenções ideológicas subliminares. Algumas páginas vêm se especializando nesse tipo de produto, como a da TV Revolta, que começou como um canal no YouTube.

Em meados deste ano, a página, que existe há quatro anos no Facebook, passou a ganhar maior visibilidade por conta do período eleitoral. Misturando piadas de mau gosto com uma militância política superficial, conquistou 3,5 milhões de seguidores e um alcance de 27 milhões de internautas – 10 milhões a mais que a audiência do Jornal Nacional. “O entretenimento e a informação trabalham juntos desde a popularização do cinema. O que muda hoje são apenas a linguagem e a mídia, a fórmula continua a mesma”, disse o administrador da página, o radialista João Vitor Almeida Lima, o João Revolta, ao YouPix. O site, ao final da entrevista, deixou um alerta ao leitor: “Não baseie seu posicionamento político em cima de postagens engraçadinhas de fanpages! Leia, pesquise, busque fontes de discussão e informação confiáveis”.

O aviso foi dado em maio deste ano, mas o que se viu, com intensidade, a partir de junho, época do início da campanha eleitoral, foi o compartilhamento alucinante de memes voltados para a disputa política. A maior parte com frases falsas atribuídas aos candidatos, declarações, números e informações sendo analisadas fora do contexto e um festival de boataria. Já os debates eleitorais nas TVs serviram apenas como motes para tuítes engraçadinhos nas redes sociais, com direito até a “eleição virtual” do candidato queridinho da Geração da Zoeira (ou Zuêra, para usar a “ortografia da internet”), Eduardo Jorge, do Partido Verde. “Não sei se o humor é capaz de virar uma eleição, mas ajuda a deixar evidente o ridículo de certas iniciativas dos marqueteiros. O sujeito, no comitê do Aécio Neves, que sugeriu a contratação de posts da Lindsay Lohan deve ter pesadelos com as piadas até hoje. E eu prefiro o uso do humor ao panfletarismo puro e simples”, opina Arnaldo Branco.


Para o quadrinista Arnaldo Branco, piadas infames sempre existiram,
mas hoje são mais difundidas. Foto: Divulgação

Na eleição de 2010, o Facebook tinha apenas 8,8 milhões de usuários no Brasil.  Em apenas quatro anos, cresceu mais de 700%, com os já citados 76 milhões de membros brasileiros, um número bastante expressivo, se levarmos em consideração que a candidata vencedora da disputa presidencial, Dilma Rousseff, teve 54 milhões de votos. Foi nesse terreno estratégico que os candidatos travaram uma nova forma de batalha no jogo da política. Páginas como a Dilma Bolada (que busca aliviar a imagem de durona da presidenta – sim, a palavra existe no dicionário!) são meios estratégicos para preparar o terreno antes do período eleitoral, pois, através do humor, buscam aproximar o político das graças do povo. O sucesso dessa fanpage, que tem 1,1 milhão de seguidores, despertou, segundo seu fundador, Jeferson Monteiro, uma tentativa de cooptação. Uma agência de publicidade, ligada a um candidato rival, teria tentado comprar a página.

Outra fanpage que cresceu, nos últimos meses, foi a da comunidade virtual Haddad Prefeito Gato, que faz postagens engraçadas com fotos do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. O gestor, hoje, é um dos raros nomes da política nacional a ganhar menções simpáticas e espontâneas dos usuários, principalmente por conta de ações municipais que geram imagens atrativas ao perfil do frequentador de redes sociais. Nelas, o prefeito já apareceu tocando guitarra, andando de bicicleta e grafitando um muro, com a já famosa tentativa malsucedida de desenhar um Pato Donald, claro, que gerou piadas e comentários, disseminados a partir do Twitter.

VERBO TUITAR
“O Twitter é a rua, o Facebook é o shopping”, como já tuitou a sabedoria popular virtual. O designer, músico, radialista e tuiteiro Jota Bosco, cujo perfil costuma frequentar a lista semanal da compilação O Melhor do Twitter, trata a rede social do passarinho como vício, tal qual o cigarro. “No Twitter, seus limites são ditados por você; no Facebook, pela quantidade de familiares adicionados.” Tanta frequência propicia o aumento da possibilidade de conflitos? “Já fui um perfil mais brigão (principalmente na eleição de 2010). Hoje, sou paz e amor total. Penso duas vezes antes de postar algo. E não me arrependo disso. Inclusive, acho que me tornei uma pessoa melhor devido às redes sociais. Sabe aquela piadinha de teor homofóbico que a gente – pá! – soltava? Hoje em dia, paro, penso, e reflito ‘desnecessário fazer isso’”.

O webdesigner acredita que essa mudança também atingiu outros usuários, e não somente pela patrulha com a postagem alheia. “Não acho que mudaram por causa de vigilância. Acho que é conscientização mesmo. Você passa a ter contato (mesmo que virtual) com pessoas as quais não teria pessoalmente, por falta de oportunidade, distância ou outros fatores. A gente fica sabendo do dia a dia dos que sofrem com preconceito. Começa a entender melhor como são oprimidos…” E complementa: “Sério que alguém quer lutar pelo direito de ofender alguém?”.


O webdesigner Jota Bosco, viciado em Twitter, critica a defesa da liberdade
em prol da ofensa. Foto: Divulgação

O questionamento faz referência ao embate travado na web: direito à liberdade de expressão dos humoristas x dignidade das vítimas de piadas preconceituosas. Um dos exemplos: o comediante de stand-up Rafinha Bastos se considera alvo de censura, por ter sido proibido judicialmente de contar anedotas envolvendo deficientes físicos. Ele é o mesmo que cometeu, em maio de 2011, essa aberração: “Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia…Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e, sim, uma oportunidade. Homem que fez isso não merece cadeia, merece um abraço”. Dois meses antes, o New York Times o apontara como a celebridade mais influente do mundo no Twitter. Um dos critérios de análise da pesquisa, feita pela empresa Twitalyzer, foi a medição da quantidade de retuitadas e de citações de seu nome. A velha máxima “Falem mal, mas falem de mim” foi bem útil para o humorista.

Diante de tantas polêmicas envolvendo comediantes, podemos considerar que a liberdade que se tem na web é um novo teste que pode medir e revelar o nível da nossa civilidade. “A humanidade sempre foi capaz de coisas terríveis bem antes do advento da internet – a civilidade já bateu em níveis mais baixos antes dos trolls de rede social”, argumenta Arnaldo Branco, referindo-se às impertinências virtuais. “As tragédias do passado (Bateau Mouche, Tancredo, Senna) inspiravam as mesmas piadas de humor negro, a diferença é que elas chegavam alguns dias mais tarde.”

No documentário O riso dos outros, de Pedro Abrantes, o politicamente incorreto no humor é discutido a partir de trechos das apresentações de alguns dos mal-afamados humoristas brasileiros de stand-up, que destilam suas barbaridades sob aplausos das plateias. Em dado momento, Danilo Gentili, numa performance, culpa o público pela piada que acabara de contar. “Todo comediante, quando não tem o que falar, fala ‘Preta Gil’ (disse anteriormente que ela era feia) e todo mundo ri. Eu não gosto de falar isso. Então, por que eu conto? Porque vocês dão risada. Quem é FDP, eu? Não, vocês.” Em outro trecho, o famigerado Rafinha Bastos, após falar algo que poderia virar mais uma nova polêmica, repete por três vezes: “É apenas uma piada”.


Desempenho dos presidenciáveis
rendeu inúmeras piadas. 
Imagem: Reprodução

“O humor é sempre um conteúdo disfarçado. Então, ele pode dizer que foi só uma brincadeira. Eu não acredito nisso. Porque eu levo essa brincadeira a sério. As piadas não têm um fundo de verdade. Elas são a verdade. A verdade com nariz de palhaço”, defende o cronista Antônio Prata. “Quando você faz uma piada, está colocando uma ideia no mercado das ideias. Está ajudando a criar essa massa da cultura e a maneira como as pessoas pensam. É totalmente político.”

ESTEREÓTIPOS
“O ambiente real é, na verdade, grande, complexo e transitório demais para um conhecimento direto. Embora tenhamos que agir nesse ambiente, precisamos reconstruí-lo em um modelo mais simples, antes de conseguir lidar com ele”, definiu o escritor Walter Lippmann. Dessa simplificação das coisas e da realidade, surgiriam os estereótipos, muitos dos quais as pessoas têm acesso pela exposição cultural a que foram submetidas.

Em Subliminar – como o inconsciente influencia nossas vidas, o físico Leonard Mlodinow lembra um estudo realizado em 1998, na Universidade de Washington. A pesquisa prova que a estereotipagem é produto do inconsciente. Isso seria a regra, não a exceção. “O trabalho apresentava uma ferramenta computadorizada, chamada Teste de Associação Implícita, ou IAT, na sigla em inglês, que se tornou uma das ferramentas-padrão da psicologia social para medir o grau com que um indivíduo associa inconscientemente traços a categorias sociais. A IAT ajudou a revolucionar a maneira como os cientistas veem a estereotipagem.”


Tirinha de Arnaldo Branco satiriza a guerra travada nas redes sociais. Imagem: Reprodução

De acordo com essa tese, os humoristas precisam brigar com seus inconscientes, se quiserem realizar um trabalho, no mínimo, decente. “A piada preconceituosa se ancora em determinados valores solidificados na sociedade. Então, é fácil fazer graça com esses estereótipos, porque eles estão prontos para você. Desmontá-los é muito mais difícil”, avalia Idelber Avelar, ensaísta e professor de Literatura. “As piadas preconceituosas são o primeiro nível do humor. É o humor mais baixo, o mais fácil, o mais raso”, aponta Antônio Prata. Ou seja, não estamos apenas diante de anedotas que julgam mal os outros, mas também muito ruins.

Dentro desse contexto, uma boa medida que vem sendo adotada por diversos internautas é a exclusão de amigos que compartilham conteúdo depreciativo, sejam piadas ou memes homofóbicos, racistas ou com ideias retrógradas sobre questões atuais. Esse banimento digital seria uma espécie de nova peneira social. Afinal, a rede trouxe de volta ao convívio, pelo menos virtual, de cada usuário pessoas que já tinham sido, digamos, “filtradas” na vida real, ao longo dos anos, seja por conta de diferenças na visão de mundo, nas afinidades, nos gostos. No entanto, o Facebook resgata, para seus membros, algumas figuras de seus passados e as coloca todas num mesmo ambiente, que reúne familiares, ex e atuais companheiros, vizinhos, conhecidos, professores, colegas de trabalho, chefes, o dono da venda. É previsível, então, que a tensão e/ou o conflito se deem em, pelo menos, algum momento.

Por conta dessa crescente babel virtual, a fórmula facebookiana pode, um dia, esgotar-se, assim como aconteceu com o Orkut. Mas a rede de Mark Zuckerberg vem tentando driblar os possíveis problemas entre seus integrantes, criando mecanismos de administração de postagens, o que torna a convivência virtual menos turbulenta. “Têm uns alienígenas do passado que me adicionaram. Depois de ler umas três postagens que apareceram na minha TL, já apertei o ‘Deixar de seguir’. É quando a gente entende o porquê do destino separar”, ressalta Jota Bosco. As redes sociais afastam ou aproximam as pessoas? “Pergunta difícil. Eu responderia que as duas coisas. Hoje, tenho vários amigos espalhados pelo país. Chego em São Paulo, Belo Horizonte, Belém e vou me reunir com uma galera massa, graças ao Twitter. Em compensação, por mim, não sento nem em uma mesa de bar com gente próxima, devido ao Facebook.


Tumblr "Quem é Millôr Fernandes?" reuniu posts de tuiteiros que desconheciam o escritor. Imagem: Reprodução

A chave dessa questão pode estar nessa observação do físico Leonard Mlodinow: “Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de in-group, e qualquer grupo que as exclui de out-group. Diferentemente do uso coloquial, no sentido técnico, in-group e out-group se referem não à popularidade dos que pertencem a grupos, mas apenas à distinção ‘nós-eles’. Todos pertencemos a muitos grupos. Por conseguinte, a maneira como nos identificamos muda de situação para situação. (…) Alterar a filiação do grupo que adotamos em dado momento é um truque que todos usamos, e ajuda a manter uma aparência simpática, pois os in-groups com que nos identificamos são um importante componente de nossa autoimagem”. Em outras palavras, mesmo dentro da grande teia das redes sociais e da diversidade de pessoas e ideias, o usuário sempre estará ligado a alguma turma.

“Os computadores em rede parecem ir na direção oposta àquela da cultura do impresso, estando mais próximos do tribalismo anterior à escrita e à imprensa. Podemos dizer que a dinâmica social atual do ciberespaço nada mais é que esse desejo de conexão se realizando de forma planetária. Ele é a transformação do PC (Personal Computer), o computador individual, desconectado, austero, feito para um indivíduo racional e objetivo, em CC (Computador Coletivo), os computadores em rede. Assim, a conjunção de uma tecnologia tribalizante (o ciberespaço) com a sociabilidade contemporânea vai produzir a cibercultura profetizada por McLuhan. Parece que a homogeneidade e o individualismo da cultura do impresso cede, pouco a pouco, lugar à conectividade e à retribalização da sociedade”, observou André Lemos, em Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea.

Ou seja, o pessimismo dos que veem na internet apenas más consequências, como solidão, depressão e abandono do “real”, pode dar brecha para outras interpretações. Afinal, estamos apenas na adolescência da vida virtual, na qual ainda não se descobriu que um dos canais de comunicação, como o humor, não “é apenas uma piada”. “O humorismo é a quintessência da seriedade”, como já definiu Millôr Fernandes, cujo poder de síntese pode lhe oferecer a alcunha de Avô do Twitter, aquele que chocou os integrantes da Geração da Zoeira com a repercussão de sua morte, em 27 de março de 2012. Não pela perda, mas porque não sabiam de quem se tratava. Foram tantos tuítes, que chegou a ser criado o tumblr Quem é Millôr Fernandes?. A maioria desses tuiteiros, no entanto, deve saber quem é Nissin Ourfali. E se você, felizmente, não sabe: é o tal garoto do bar mitzvah

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