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'Graça infinita': Romance de narrativa fractal

Lançado há 18 anos, livro de David Foster Wallace reflete ambição do autor em realizar uma “arte séria”, mas capaz de alcançar uma comunicação efetiva

TEXTO André Araújo

01 de Novembro de 2014

Foto Reprodução

"Eu estou sentado num escritório, cercado de cabeças e corpos…” Assim se inicia um dos mais prestigiados romances da ficção contemporânea, que, passados 18 anos de seu lançamento, é publicado no Brasil. Traduzido pelo habilidoso Caetano Galindo (leia entrevista com ele a seguir), a obra máxima do escritor norte-americano David Foster Wallace (1962-2008), Graça infinita, chega num momento oportuno.

Antes de entrar em seus meandros, cabe tentar responder à pergunta proposta pelo crítico espanhol Juan Ferré: o que é a “graça infinita”? Em ordem ascendente, aos poucos: uma citação de Hamlet, referindo-se a Yorick como “um rapaz de infinita graça, espantosa fantasia”, na tradução de Millôr; uma série de filmes inacabados realizados pelo falecido James Orin Incandenza, sendo um deles uma fita, conhecida como Entretenimento, diante da qual o espectador fica tão absorto por seu conteúdo, que não consegue parar de assisti-lo até morrer de inanição. E Graça infinita é um romance de 1.080 páginas, sendo 130 delas apenas de notas de rodapé, que faz todas essas linhas convergirem.

Seria um esforço infrutífero – e um tanto absurdo – tentar resumir um romance como este, especialmente por sua característica de fractal, em que diferentes narrativas convergem, formando uma espécie de padrão matemático estrutural no qual o todo está contido nas partes e vice-versa. Entretanto, é possível marcar um ponto de partida na narrativa: justamente o uso de Entretenimento, filme de Incandenza, como arma terrorista por extremistas do Quebec, engajados numa causa separatista que delineia o pano de fundo político do mundo futuro de Graça infinita. À parte a questão política, existem duas outras linhas narrativas que insinuam uma confluência: a história de Hal, filho de Incandenza, na academia de tênis juvenil fundada por seu pai, e o périplo de Don Gately numa casa de recuperação para viciados, vizinha da academia.

Foster Wallace situa a questão do entretenimento numa relação complexa entre diferentes esferas da cultura contemporânea. Ele identifica que as tecnologias de comunicação contribuem para uma lógica narrativa em que a busca pelo prazer estético imediato é a dominância. Estaríamos viciados, dispostos a dar nossa própria vida por algumas horas de sublimação através da diversão?

Se havia como dominância na cultura essas formas de entretenimento, na literatura, Wallace via justamente o contrário: a metaficção pós-moderna, escola da qual DFW é herdeiro e com a qual tenta romper a todo custo, compreendia a ficção como um mecanismo autorreferencial, encerrando suas discussões apenas no âmbito da linguagem.

Foi na intersecção desses dois polos da cultura – uma foma de entretenimento altamente identificável e uma forma literária altamente alienante – que Wallace resolveu posicionar seu romance, a partir do seguinte questionamento: seria possível realizar uma espécie de arte séria, que não abdicasse de sua autorreferencialidade e princípios estéticos, mas que mesmo assim alcançasse uma comunicação efetiva, sem se entregar às formas simples e codificadas do entretenimento?

A solução de DFW, um tanto contraintuitiva, foi criar um romance gigantesco, intricado e formalmente complexo, com uma profusão de vozes e personagens, desconcertante por sua exuberância. A forma de adentrar essa simetria caótica é lançar mão de um engajamento total por parte do leitor. Entretanto, tal engajamento não tem por função descobrir a forma estrutural do romance ou as arbitrariedades da linguagem e sua inevitável desconstrução. No horizonte de Graça infinita estão seus personagens, Hal e Gately.

DFW afirmava que, se a ficção tinha um papel, este seria o de tentar mostrar o que significa estar vivo hoje em dia. A odisseia formal que Wallace nos propõe a enfrentar mimetiza o processo de autoconstituição dolorosa de Hal e Gately para fora de sua dimensão alienada, em comunicação com o outro. Ou seja, é apenas através do esforço de tentar formalizar as múltiplas vias que constituem o romance que podemos alcançar a alteridade fundamental do “estar vivo”.

O livro, apesar de seu tom muitas vezes leve e engraçado, expressa uma visão de mundo altamente trágica. Estamos, afinal, sempre às margens de uma solidão paralisante e alienante. Ao mesmo tempo, essa visão é também muito altruísta, pois a única saída é o esforço contínuo de engajar-se com o outro – seja esse “outro” autor, leitor ou personagem. O suicídio de David Foster Wallace em 2008 deu contornos ainda mais trágicos à Graça infinita. Resta-nos seguir seus passos e tentar compreendê-los. 

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