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'Casa-Grande': Sobre como sair da bolha social no Brasil

Longa do carioca Fellipe Barbosa, aborda os conflitos sociais e pessoais que uma pessoa de classe alta vive, ao se dar conta das desigualdades em que está imersa

01 de Outubro de 2014

Foto Pedro Sotero/Divulgação

Há uma cena no meio de Casa- grande, destaque da programação da Première Brasil (uma das principais mostras do Festival do Rio), que é uma súmula do que a trama dirigida por Fellipe Barbosa se propõe a discutir: num churrasco na mansão da família de Jean (Thales Cavalcanti), há o antagonismo entre sua namorada, a jovem negra Luiza (Bruna Amaya), e seus pais (interpretados por Marcello Novaes e Suzana Pires), quando irrompe um acirrado debate sobre cotas raciais nas universidades públicas. A tensão entre classes, o desconforto do racismo velado e o choque entre duas das muitas realidades de um país essencialmente contraditório convergem naquele momento, um dos ápices dramáticos do longa-metragem.

E não somente nele. Todo o enredo de Casa-grande se lastreia na assimetria entre o modo como o adolescente Jean vê seu mundo – que inclui uma gigantesca residência na Barra da Tijuca, na Zona Sul carioca, com quatro carros na garagem, duas empregadas e um motorista – e o mundo como ele é: seu pai está prestes a falir, embora não queira admitir; ele se interessa pela fogosa doméstica Rita (a pernambucana Clarissa Pinheiro), mesmo sem compreender direito a oposição de forças entre ela, a governanta e sua mãe; e logo vai descobrir uma nova cidade, quando for obrigado a andar de ônibus e a “sair da bolha”, como pontua Fellipe Barbosa.

A jornada de autodescoberta de Jean traz ecos da própria vida de Fellipe. Suas memórias foram o combustível para a confecção do roteiro, coassinado por Karen Sztajnberg. No trajeto de sete anos entre a ideia e as filmagens (ocorridas em 2013 e possibilitadas com R$ 900 mil, via Fundo Setorial de Cinema, e R$ 400 mil, via RioFilme), o diretor foi atrás do elenco no lugar de onde saiu: o secular Colégio de São Bento, voltado exclusivamente para meninos. “Durante quatro anos, frequentei aulas do 3º ano. Passava dias filmando turmas de até 60 alunos, para pegar o cotidiano do colégio. Até que comecei a filmar a turma do Thales. Eles eram músicos, havia um carisma natural, uma conexão com a ideia de performance. Todos já eram amigos, estudavam juntos há 11 anos. Essa intimidade foi ideal para o filme”, pontua Fellipe Barbosa.


A pernambucana Clarissa Pinheiro destaca-se como atriz coadjuvante.
Foto: Pedro Sotero/Divulgação

Em julho, no 6th Paulínia Film Festival, dois dos quatro prêmios que Casa-grande levou foram para o elenco: Marcello Novaes e Clarissa Pinheiro saíram de lá como os melhores coadjuvantes, enquanto o filme recebeu ainda os troféus de melhor roteiro e o prêmio especial do júri. A surpresa do público ao ver Novaes, ator recorrente em folhetins televisivos, esbanjar segurança no papel do pai falido e orgulhoso (Fellipe compara sua performance à de Burt Reynolds em Boogie nights, de Paul Thomas Anderson), só não foi maior do que o agradável espanto com a aparição de Clarissa, descoberta pelo diretor na Escola Darcy Ribeiro.

Detalhe crucial: formada em Jornalismo pela Unicap, ela havia atuado apenas “de brincadeira” em projetos de amigos. Cursava Cinema e seu professor de direção cinematográfica era justamente aquele que viria a ser seu condutor no primeiro longa-metragem. “Durante cinco anos, a personagem da Rita nem existia”, confessa Fellipe, que enxergou potencial em Clarissa e convidou-a para um teste. A personagem, defendida com frescor, naturalidade e bom humor pela pernambucana, é um dos propulsores da saída de Jean da redoma de sua casa-grande.

“Resgatei muito as empregadas que passaram pela minha casa”, recorda Clarissa, “e de quem eu terminava ficando amiga. Juntei com um lado fogoso meu e o resto foi construção mesmo. Acho interessante que Fellipe quis brincar com estereótipos: a empregada é branca, a namorada de Jean é negra, numa inversão que remete à escravidão”, acrescenta a atriz. Outros profissionais pernambucanos na equipe foram o diretor de fotografia Pedro Sotero e a preparadora de elenco Amanda Gabriel.

E o filme, apesar de ambientado no Rio de Janeiro, poderia ser sobre Pernambuco, São Paulo, Bahia ou Paraná, pois reflete o Brasil de hoje, de ascensão das classes C e D e do jogo de aparências de uma elite disposta a manter a disparidade preconizada pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, no clássico livro Casa-grande e senzala. Mesmo tão brasileiro, há nele uma universalidade que justifica a carreira internacional iniciada em janeiro, no Festival de Rotterdam. De lá para cá, passou pela França, Argentina, Dinamarca, Coreia de Sul, Polônia, Austrália, Taiwan, Canadá e Espanha, entre outros. Até dezembro, festivais na Inglaterra, Egito, Eslovênia, Portugal, Estados Unidos e República da Geórgia receberão Casa-grande

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