A rigor, a prática da interdição de quaisquer atividades culturais foi oficializada em 1934, com a criação da Censura Federal, ligada à Diretoria Geral de Publicidade, Comunicações e Transportes. Em 1939, no primeiro governo de Getúlio Vargas, a “censura teatral e de diversões públicas” é transferida para o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP); seis anos depois, surgia o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), que se reportava ao Departamento Federal de Segurança Pública. “A censura sempre existiu. Antes era uma censura basicamente de costumes, um pouco moral, e muito ideológica”, afirma o advogado e jurista pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho, ex-secretário-geral do Ministério da Justiça, quando comandado por Fernando Lyra (1938-2013), entre 1985 e 1986, durante o governo José Sarney.
O cineasta moçambicano Ruy Guerra vai dirigir uma nova montagem de Calabar, com estreia prevista para 2014. Foto: Divulgação
Com o golpe que instaura o regime militar, sob o qual o Brasil viveu entre 1964 e 1985, a legislação vira refém do autoritarismo. “A ditadura fez 42.514 leis. Dessas, 39 eram textos sobre a censura”, aponta Cavalcanti Filho. Com o subsequente recrudescimento nas forças de repressão proveniente do Ato Institucional nº 5, em 1969, a censura ganha mais poder e legitimidade. No caso de Calabar – o elogio da traição, por exemplo, adotou-se a tática da procrastinação. Em abril de 1973, Chico Buarque requisitou análise para liberação do texto; o derradeiro juízo emitido pela Divisão de Censura de Diversões Públicas, vinculada ao Departamento da Polícia Federal, ligado ao Ministério da Justiça (Alfredo Buzaid era o ministro, o presidente era o general Emílio Garrastazu Médici), só viria em janeiro de 1974. Negativo, claro.
Assim, “a paródia baseada em fatos reais, o escracho, o sarcasmo na representação do poder”, nas palavras do próprio Ruy Guerra, foram afastados da apreciação pública na montagem que resgatava a figura de Domingos Fernandes Calabar (1609-1635), que lutou pelos portugueses e depois se aliou aos invasores holandeses, nas batalhas travadas na capitania de Pernambuco, no século 17 (herdando a pecha secular de “traidor da pátria”). Os produtores Fernando Torres e Fernanda Montenegro haviam investido US$ 30 mil; o elenco estava pronto, as músicas ensaiadas, figurino e coreografias finalizados. O texto, entretanto, só seria liberado seis anos depois.
Chico Buarque foi taxado de “subversivo” pela coautoria de Calabar. Foto: Divulgação
“A peça fala de traições sucessivas e contínuas, que existiam e continuam existindo, e de uma época em que o conceito de nacionalidade era confuso. Calabar talvez seja o mais visível e mais representativo paradigma da censura teatral no Brasil”, Guerra diz à Continente. Ele dirigirá uma nova montagem, que deve estrear no primeiro semestre de 2014, e garante que fará jus “ao mito de Calabar”. “Há a importância dos 40 anos do texto e pensamos em fazer um grande espetáculo, à altura sob o aspecto da visualidade, da musicalidade, da mise-en-scène. Uma resposta, ainda que tardia, à censura”, completa Ruy Guerra.
Chico Buarque, hoje envolvido na querela das biografias, não integra o projeto do novo Calabar. Lembra o jurista José Paulo Cavalcanti Filho que o mais famoso herdeiro de Sérgio Buarque de Holanda era um dos membros do Conselho de Defesa da Liberdade de Expressão, um dos primeiros atos do ministro Fernando Lyra para extinguir a censura. “Criamos essa comissão para redigir como isso funcionaria. Chamávamos os maiores especialistas brasileiros para escrever. Nunca houve uma recusa. No caso do conselho, presidido por Antonio Houaiss, eram Chico, a cineasta Ana Carolina, o dramaturgo Dias Gomes, o senador e jornalista Pompeu de Souza, o cartunista Ziraldo e Terezinha Martins, representante da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil”, recorda Cavalcanti Filho.
O jurista José Paulo Cavalcanti Filho afirma que a censura, sempre presente,
já teve caráter mais moral e ideológico. Foto: Divulgação
O jurista considera que o dano maior da censura é imensurável: “Aconteceu no Brasil o mesmo que no Portugal pós-Revolução dos Cravos, em 1974. Pensava-se que a censura impediria o surgimento de grandes obras-primas, mas os efeitos são ainda mais danosos porque incidem no próprio processo de criação. Não é que se impeça uma obra-prima de ser dada a conhecer; impede-se que as pessoas a escrevam, porque a censura lhes tira o substrato anímico, a disposição de criar”. Para Ruy Guerra, as restrições da atualidade são de outra ordem. “Sofremos uma censura diferente, não tão violenta quanto na ditadura, não oficial, mas muito delicada, que é a censura econômica. A produção de cinema é absolutamente castrada. Estou há seis anos lutando para filmar Quase memória, da obra do Carlos Heitor Cony, mas os meios de expressão de massa e de produção são submetidos ao interesse do capital”, lamenta.
Uma situação de adversidade oposta à experimentada com Os fuzis, seu longa-metragem de 1964, ano em que João Goulart (1919-1976) foi deposto. “Antes de Calabar, não cheguei a ter problemas com a censura porque, quando Os fuzis foi lançado, coincidiu com o momento do golpe. Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos estavam em Cannes, falando mal dos militares e, para verificar se meu filme poderia ir ou não a Berlim, formou-se uma comissão de generais para vê-lo”, relembra Ruy Guerra. O resultado ilustra que a censura também se filiava a critérios subjetivos, que iam além de subversão ou provocação políticas. “Os generais chegaram à conclusão de que se tratava de um filme de macho. Assim, ninguém quis censurar porque pegaria mal para eles”, comenta o cineasta.
LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.
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