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'A estética de Lévi-Strauss', e a estética de Merquior

Ensaios escritos pelo pensador brasileiro em 1969 são agora relançados e apontam para a independência crítica de um autor pouco lido, cuja obra mantém-se atual

TEXTO Artur A. de Ataíde

01 de Novembro de 2013

Claude Lévi-Strauss

Claude Lévi-Strauss

Foto Reprodução

Os dados gerais de um livro como A estética de Lévi-Strauss (Editora É, tradução de Juvenal Hahne Jr.), tomados à distância, talvez conduzam facilmente o leitor de hoje a um primeiro juízo errôneo. O texto remonta ao ano de 1969, último de uma década em que o dito estruturalismo, automaticamente evocado pelo nome de Claude Lévi-Strauss, começava a se tornar alvo crítico de heroísmos teóricos em formação, menos afeitos à objetividade dos esquemas e diagramas, e mais encantados com a ressignificação, ou mesmo subversão, operada por cada indivíduo leitor diante da obra artística (Crítica e verdade, por exemplo, de Roland Barthes, é de 1965).

Também se trata de não mais que 150 páginas, escritas relativamente cedo na trajetória do crítico José Guilherme Merquior – suas últimas obras são da década de 1980 –, e são páginas dedicadas, no contexto de um seminário dirigido pelo próprio Lévi-Strauss, a um projeto de interesse aparentemente restrito: evidenciar, a partir da leitura de passagens esparsas da extensa obra do antropólogo, algo que se pudesse chamar de sua estética. Possivelmente velha, portanto, em termos de história dos paradigmas críticos, possivelmente velha no contexto da trajetória de Merquior, e demasiadamente periférica ou circunstancial, quanto à temática, para servir de amostra do que caracteriza sua contribuição à cultura crítica brasileira: dispensar-se da leitura da obra com base nesse diagnóstico é perder uma ótima chance de se surpreender.

Cedo se vê que muito do ensaio de Merquior, além de se haver com questões teóricas ainda atraentes, termina por jogar luz sobre motivações decisivas de outra estética: aquela que subjaz a seu próprio exercício crítico. A fé no papel que caberia especificamente à arte no concerto social, por exemplo, e mesmo a conhecida imbricação entre análise das estruturas e aprofundamento na história, típica de obras hoje clássicas como A astúcia da mímese, são ingredientes de sua visão que também encontram solo fértil no “estruturalismo autêntico” de Lévi-Strauss, distinto dos formalismos de base mais restritivamente linguística.

É como reforço a esse último contraponto, aliás, que sugerirá Merquior, em suas últimas páginas, que mapeamentos microscópicos como o que fizeram Jakobson e o próprio Lévi-Strauss de cada uma das sutis oposições métricas, prosódicas e gramaticais de um soneto de Baudelaire – a conhecida análise de Les chats – deixem-se complementar pela perscrutação mais amplamente cultural de outros conhecidos intérpretes do poeta de Les fleurs du mal: Spitzer, Auerbach e Benjamin.

O convite, acompanhado ainda de uma série de referências a trabalhos de Panofsky – mais um cindido entre a forma e a história –, é indisfarçavelmente emblemático de escolhas que são também as do próprio ensaísta de As ideias e as formas. Essas são questões, no entanto, que farão mais sentido ante análises mais concretas, como a que dedica Lévi-Strauss à pintura facial das mulheres cadiuéus, assunto do primeiro capítulo do estudo de Merquior.

SISTEMAS SIMBÓLICOS
Não podendo os cadiuéus, em virtude de restrições internas de sua cultura, adotar uma divisão social bipartite, que temperasse a tripartição do seu rígido sistema de castas, como fizeram os guanás e os bororos, puseram-se eles, segundo Lévi-Strauss, a “sonhá-la”: embora ausente, portanto, da estrutura social cadiuéu, a desejada tensão entre simetria e assimetria, chave do maior equilíbrio de forças observável nas culturas vizinhas, estaria presente, sim, em sua peculiar pintura corporal, traduzido em geometria.

Tal arte, como explica Merquior, “não é mais somente uma ferramenta da vida social empírica: é também a imagem do seu ultrapassar; desenha a metáfora da forma utópica da sociedade onde nasce”. Nem escrava do social pré-dado, nem dele apartada como forma pura: a arte cadiuéu, segundo essa leitura, seria um golpe no sociologismo redutor e no formalismo intransitivo, a uma só vez. Mas há outras lições.


Claude Lévi-Strauss teve sua obra analisada por José Guilherme Merquior em 1969.
Foto: Reprodução

Para Lévi-Strauss, os vários sistemas simbólicos de uma cultura, segundo os quais ela organiza seu mundo, nunca são perfeitos. Imagine-se a cena de uma narrativa mítica hipotética: uma lua, ou um tatu, não serão apenas o satélite, ou o animal; a relação do mito com a tentativa de dar sentido pleno ao universo faria desses elementos, simultaneamente, porta-vozes de certo excedente incomensurável de sentido, imantados que estão pelas conotações difusas do originário, do indeterminado, do todo. Do mesmo modo é que certos elementos pictóricos terão sido mobilizados, pelas mulheres cadiuéus, para dar conta de um excedente até então não contemplado pelo seu mundo simbólico pré-dado.

O mito, desse modo, bem como a arte, as palavras do xamã ou mesmo o discurso do indivíduo numa sessão de psicanálise, seriam manifestações análogas de uma mesma voz periférica: essa que, numa cultura, busca a cura para os conflitos e insuficiências dos códigos sociais (ou individuais) em vigência, através de um ato especial de conhecimento que se divide entre o interpretar e o simbolizar, entre o complexo rearranjo dos signos conhecidos e a captação inesperada de um desconhecido, ou, ainda, para aludir com Merquior a Aristóteles, entre o “intelecto” e as “paixões”.

CORPO E CULTURA
O alcance dessa concepção, que reconhece a pluralidade das faculdades humanas mobilizadas pela arte, deixa-se demonstrar nas páginas dedicadas à interpretação da música de Wagner, entre as melhores do livro. Tem-se aí um exemplo, em conformidade com a teoria da música de Lévi-Strauss, da indissociabilidade dinâmica que se pode dar entre a cultura – de Schopenhauer à escala diatônica –, de um lado, e os ritmos fisiológicos do corpo, de outro, num movimento de ampliação e enriquecimento mútuos. O enorme potencial cognitivo da experiência artística é assim assegurado, e, à arte, seu posto “no coração do social”.

Alguns aspectos do ensaio, finalmente, talvez saltem à vista mais hoje do que à época em que apareceu. Apesar da reticência explícita de Merquior em relação à estética de Hegel, por exemplo, não parece incomodá-lo certo sistematismo da visão de Lévi-Strauss, segundo o qual não deixa de se ver fixada de antemão uma função geral para a arte na cultura. Seu preciso emolduramento antropológico privilegia, como motivação-base da arte, o desejo por uma outridade social, em detrimento de outros muitos desejos motrizes potenciais, resultando numa escala de valores tipicamente pós-romântica, talvez não tão adequada à arte de certas épocas.

Tal emolduramento, à semelhança do “sistema das artes” hegeliano, parece pois antecipar-se, como estrutura ideal, à análise concreta das obras, e é moldura que não exclui, mesmo, uma caracterização hierarquizante das artes “particulares”, para usar de novo o vocabulário de Hegel, e previsões sobre a “morte da arte”. É assim que o figurativismo ocidental, por exemplo, considerado em bloco, comparece em Lévi-Strauss como fenômeno de antemão menos prezado, muito embora uma consideração mais sensível da dimensão temporal da arte pictórica, com a ajuda de Arnheim (já citado por Merquior), pudesse devolver ao figurativismo – e garantir à fotografia, por exemplo – a riqueza conotativa que atribui o antropólogo especialmente à música. Curiosamente, caminhos para a superação de tais impasses também se encontram no próprio ensaio.

Contra os purismos teóricos do seu e do nosso tempo, em favor da arte: parece que nosso crítico nunca teve dúvida sobre qual o seu partido.

ARTUR A. DE ATAÍDE, doutor em Teoria Literária pela UFPE.

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