Não podendo os cadiuéus, em virtude de restrições internas de sua cultura, adotar uma divisão social bipartite, que temperasse a tripartição do seu rígido sistema de castas, como fizeram os guanás e os bororos, puseram-se eles, segundo Lévi-Strauss, a “sonhá-la”: embora ausente, portanto, da estrutura social cadiuéu, a desejada tensão entre simetria e assimetria, chave do maior equilíbrio de forças observável nas culturas vizinhas, estaria presente, sim, em sua peculiar pintura corporal, traduzido em geometria.
Tal arte, como explica Merquior, “não é mais somente uma ferramenta da vida social empírica: é também a imagem do seu ultrapassar; desenha a metáfora da forma utópica da sociedade onde nasce”. Nem escrava do social pré-dado, nem dele apartada como forma pura: a arte cadiuéu, segundo essa leitura, seria um golpe no sociologismo redutor e no formalismo intransitivo, a uma só vez. Mas há outras lições.
Claude Lévi-Strauss teve sua obra analisada por José Guilherme Merquior em 1969.
Foto: Reprodução
Para Lévi-Strauss, os vários sistemas simbólicos de uma cultura, segundo os quais ela organiza seu mundo, nunca são perfeitos. Imagine-se a cena de uma narrativa mítica hipotética: uma lua, ou um tatu, não serão apenas o satélite, ou o animal; a relação do mito com a tentativa de dar sentido pleno ao universo faria desses elementos, simultaneamente, porta-vozes de certo excedente incomensurável de sentido, imantados que estão pelas conotações difusas do originário, do indeterminado, do todo. Do mesmo modo é que certos elementos pictóricos terão sido mobilizados, pelas mulheres cadiuéus, para dar conta de um excedente até então não contemplado pelo seu mundo simbólico pré-dado.
O mito, desse modo, bem como a arte, as palavras do xamã ou mesmo o discurso do indivíduo numa sessão de psicanálise, seriam manifestações análogas de uma mesma voz periférica: essa que, numa cultura, busca a cura para os conflitos e insuficiências dos códigos sociais (ou individuais) em vigência, através de um ato especial de conhecimento que se divide entre o interpretar e o simbolizar, entre o complexo rearranjo dos signos conhecidos e a captação inesperada de um desconhecido, ou, ainda, para aludir com Merquior a Aristóteles, entre o “intelecto” e as “paixões”.
CORPO E CULTURA
O alcance dessa concepção, que reconhece a pluralidade das faculdades humanas mobilizadas pela arte, deixa-se demonstrar nas páginas dedicadas à interpretação da música de Wagner, entre as melhores do livro. Tem-se aí um exemplo, em conformidade com a teoria da música de Lévi-Strauss, da indissociabilidade dinâmica que se pode dar entre a cultura – de Schopenhauer à escala diatônica –, de um lado, e os ritmos fisiológicos do corpo, de outro, num movimento de ampliação e enriquecimento mútuos. O enorme potencial cognitivo da experiência artística é assim assegurado, e, à arte, seu posto “no coração do social”.
Alguns aspectos do ensaio, finalmente, talvez saltem à vista mais hoje do que à época em que apareceu. Apesar da reticência explícita de Merquior em relação à estética de Hegel, por exemplo, não parece incomodá-lo certo sistematismo da visão de Lévi-Strauss, segundo o qual não deixa de se ver fixada de antemão uma função geral para a arte na cultura. Seu preciso emolduramento antropológico privilegia, como motivação-base da arte, o desejo por uma outridade social, em detrimento de outros muitos desejos motrizes potenciais, resultando numa escala de valores tipicamente pós-romântica, talvez não tão adequada à arte de certas épocas.
Tal emolduramento, à semelhança do “sistema das artes” hegeliano, parece pois antecipar-se, como estrutura ideal, à análise concreta das obras, e é moldura que não exclui, mesmo, uma caracterização hierarquizante das artes “particulares”, para usar de novo o vocabulário de Hegel, e previsões sobre a “morte da arte”. É assim que o figurativismo ocidental, por exemplo, considerado em bloco, comparece em Lévi-Strauss como fenômeno de antemão menos prezado, muito embora uma consideração mais sensível da dimensão temporal da arte pictórica, com a ajuda de Arnheim (já citado por Merquior), pudesse devolver ao figurativismo – e garantir à fotografia, por exemplo – a riqueza conotativa que atribui o antropólogo especialmente à música. Curiosamente, caminhos para a superação de tais impasses também se encontram no próprio ensaio.
Contra os purismos teóricos do seu e do nosso tempo, em favor da arte: parece que nosso crítico nunca teve dúvida sobre qual o seu partido.
ARTUR A. DE ATAÍDE, doutor em Teoria Literária pela UFPE.