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"Lispectorante" e o universo de Clarice

Novo filme da pernambucana Renata Pinheiro, protagonizado por Marcélia Cartaxo, utiliza obra e vida da escritora como fonte para um exercício visual e dramático

TEXTO Rostand Tiago

08 de Maio de 2025

Foto Divulgação

A obra de Clarice Lispector, sobretudo por sua verve sensorial e imagética, carrega um certo apelo para a produção cinematográfica nacional, passando pelo emblemático A hora da estrela, de Suzana Amaral, em 1981, à recente adaptação de A paixão segundo G.H, que marcou, no ano passado, a volta de Luiz Fernando Carvalho à direção de longas após quase duas décadas. Esse apelo cinematográfico também é percebido pela pernambucana Renata Pinheiro na direção de Lispectorante, que estreia nos cinemas do Recife nesta quinta-feira (8), mas por um outro caminho.

O filme não adapta nenhuma obra específica da autora, mas usa sua obra e vida, em especial sua presença no Recife dos primeiros anos de vida, onde viveu uma felicidade clandestina, como fonte para um exercício visual e dramático que parece ser guiado por um  dos aspectos mais cativantes aspectos da literatura de Clarice: a capacidade que um olhar mais sensível para as banalidades dos espaços onde vivemos e circulamos tem de engatilhar um transe poético. Transes que provocam desejos, angústias, euforia e nostalgia.

Lispectorante se utiliza dos dramas de Glória Hartman, uma artista plástica que volta ao Recife após uma pausa em sua produção – vivida por Marcélia Cartaxo, que teve sua vida mudada ao encarnar Macabéa na adaptação de A hora da estrela, estreia em longas da atriz que logo entraria na história do cinema brasileiro – e cujas andanças pelo centro do Recife, em especial brechadas na abandonada Casa de Clarice Lispector, no bairro da Boa Vista, acaba levando-a para jornadas internas e afetivas abastecidas por arte e memória.

É nesse alicerce que Renata se permite explorar uma encenação que é muita cara em sua carreira, de um olhar para espaços e arquiteturas que captam nuances do ordinário, mas que também se entrega à euforia visual de cores, luzes e cenários vibrantes. O bairro da Boa Vista, em especial o entorno da Praça Maciel Pinheiro, acaba sendo um território que concentra, ao mesmo tempo, uma hostilidade urbana e um palco para sonhos. E enquanto Glória vaga por esse território de praças, ruas, rios e abandonos, a encenação também vaga pelo melodrama, sci-fi, rock n’roll e frevo, com uma trilha sonora que chega a ser assinada por Guile Martins, Benke Ferraz, Maurício Fleury, Sankirtana Dharma.

E ter Marcélia Cartaxo como fio condutor desse vagar acaba tornando tudo muito especial. A atriz paraibana apresenta um registro que sempre mostrou dominar muito bem em sua carreira: o da doçura e inocência, que de alguma forma reverbera o que foi sua Macabéa, mas com outras nuances interpretativas e dramáticas. E vem acompanhada de um coral formado com o que há de mais inventivo em atuação atualmente. A começar por Pedro Wagner, um dos maiores atores brasileiros das últimas gerações, que aqui pode apresentar uma atuação embebida por ternura, faceta que o audiovisual brasileiro nem sempre o permite apresentar. Dos grandes atores também do nosso cinema, participações especialíssimas de intérpretes do calibre de Grace Passô e Tavinho Teixeira, que cada vez mais se consolida no tipo canalha carismático, uma espécie de Jece Valadão do século 21.

Lispectorante vai se equilibrando nessas atmosferas de fascínio, sonho e doçura com as angústias que fios, concretos e abandono a partir do território, geográfico e sentimental, que vai sendo explorado. E nessa abertura ao transe poético e visual, deixa o lembrete de como as ruínas podem ser solo fértil para o nascer de coisas bonitas, sobretudo por meio da arte, do sonho, da memória e do desejo.

DEBATE

Lispectorante contou com uma sessão especial de pré-estreia na última terça-feira (6), no Cinema da Fundação, seguida por um debate com a diretora Renata Pinheiro, a atriz Marcélia Cartaxo e o corroteirista Sérgio Oliveira. A conversa permeou a experiência do filme e seus bastidores de produção, mas também foi levada para caminhos que passam pela vida e obra de Lispector, a trajetória de Cartaxo e a decadência dos espaços do centro do Recife por onde o filme transita.

A Casa de Clarice Lispector, esse espaço-personagem, foi um dos pontos que sempre encontrava um jeito de retornar à conversa. Sérgio Oliveira lembrou que foi ali, em uma brechada como a da protagonista do filme, que o projeto de Lispectorante nasceu enquanto um fruto artístico do abandono, que trouxe impactos sentimentais para vários envolvidos no projeto.

“Tudo começa ali, quando eu estava andando por lá e olhei justamente naquela brecha. É um absurdo uma escritora da dimensão de Clarice ter uma casa assim, é o equivalente de uma casa de James Joyce abandonada em Dublin. Mas esse descaso acaba servindo também como inspiração, porque ele quer dizer muito, o descaso de uma casa de uma grande escritora em escombros foi o que fez esse filme de fato. A partir desse olhar, fui conversar com Renata, já tínhamos um projeto de um filme com uma personagem mais madura, juntamos as coisas e chegamos no filme, que começa nesses escombros, mas também os escombros de uma cidade, um bairro, e uma artista que está em um momento decisivo da vida”, conta Sérgio Oliveira.

Dos escombros de sua casa, os ecos de Clarice na vida dos envolvidos no filme também entraram na conversa. Cartaxo, que se emocionou ao encontrar pela primeira vez a estátua da escritora na Praça Maciel Pinheiro, lembrou da importância da obra de Lispector em sua vida, radicalmente mudada após dar vida a Macabéa. Além de lançar a então jovem atriz que só havia experiências nos palcos, o trabalho com Suzana Amaral também deu ferramentas que até hoje usa na construção de seus personagens, como Glória de Lispectorante.

“Suzana me deu um grande presente para a vida na preparação de personagens. Ela me ensinou a procurar realizar um trabalho de observação, de ir lá pra fora e encontrar e procurar as Macabéas, as Glórias. A partir daí, vem também todo um trabalho de memória das emoções desses personagens, de entender como falam, como respiram, desenvolver uma memória corporal. Fiz essa pesquisa no Recife para a Glória e Renata me deu muitos caminhos, que passam por coisas como o rock n’ roll e Rita Lee, por exemplo”, explica Cartaxo.

Para além da construção de Glória, Renata também encontrou grandes desafios na construção desse mundo, real ou imaginário, que sua protagonista vive. Para construí-lo visualmente, além de toda sua bagagem como diretora de arte, contou com a parceria da diretora de fotografia Wilsa Esser, cujo trabalho conheceu no curta República, dirigido por Grace Passô, se encantando por seu trabalho. Juntas, buscaram outros caminhos para além dos que encantou Pinheiro no trabalho de Esser.

“Em República, era uma imagem muito visceral, câmera na mão como se fosse um olho. E o que fazemos em Lispectorante é nada disso. Temos mais uma coisa clássica, simétrica, mais bem comportada, a câmera filmando em função dos personagens. E isso dentro desse lugar que meus filmes têm, dessa fuga para esse lugar do irreal, do confuso e da imaginação ao mesmo tempo em que uma realidade muito pé no chão se impõe. Achamos que seria mais interessante dar essa fotografia mais clássica, seria muito óbvio ter essa mulher em uma crise existencial e a câmera ser maluca, batendo em tudo quanto é coisa. A gente vai fazendo essas escolhas, mas foi uma construção estética muito difícil”, conclui Pinheiro.

ROSTAND TIAGO, jornalista.

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