Ensaio

O espetáculo da natureza na arte cristalina de Denise Milan

Artista extrai das rochas e das pedras a poesia concreta, em harmonia com a ciência e o cosmos

TEXTO Mario Helio

25 de Setembro de 2025

Foto Lucas Mandacaru/Divulgação

“E como se cada pedra
Fosse todo um universo”
Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

Tudo é forma. Tudo é forma de vida na arte de Denise Milan. Há como uma música da Criação, no sentido primordial, na inteligência que pulsa e vibra nos seus minerais. Quartzo a quartzo. Basalto a basalto.  Paradoxo da melodia dura e rude ser feita de ásperos silêncios e ruídos da matéria.

O que Denise Milan expressa: a memória das coisas que se incrustou nas rochas e nas pedras. Simetrias e assimetrias. Concreção da Poesia de árdua e pura imanência. Basta olhar para os objetos e constatar: o resultado de sua arte é sempre um encontro com o Sempre. Ela promove-o incitando os olhos e a pele. Todos os sentidos da (sua) arte vêm desses sentidos.

 Basta ver suas obras para saber que não teve razão o poeta, quando escreveu a frase de efeito, quase blague: “pensar é estar doente dos olhos”. Poderíamos dizer, ao contemplar suas criações: melhor alcançam os olhos que pensentem. São estes olhos os que perceberão de modo mais profundo a arte diante de si: a arte de Denise Milan, um cosmo de harmonias dinâmicas cristalizadas. Num jogo aberto tanto à surpresa quanto ao dejà vu, animado por um mecanismo de ver-imaginar.

Denise Milan é a única artista brasileira cujo trabalho provoca a sensação de ter sido feito no futuro. Ou fora da terra, paradoxalmente, porque vem de dentro dela. Da Terra. E é feita com terra, com pedras deniseadas, mais do que, somente, delineadas. Engendra, assim, novos abismos. Uma arte ou uma ontologia-epistemologia. Que traz a ideia de ser a Soma de certas inquietações de filosofia com poesia, de ciência com música.

Ao discutir o que chamou de arqueologia da obra de arte, Giorgio Agamben lançou a pergunta: qual é o lugar da arte no presente? Denise Milan oferece uma resposta. O frisson dessa arte “futura” que pratica não tem apegos futuristas, tampouco enamora-se de artificialismos ou geometrismos. É do hic et nunc mais cotidiano, sem preocupações de hierarquizar arte pura e aplicada.

O mistério que parece emanar das suas peças nada tem a ver com sentimentalismos nem esoterismos. Vem de dentro das coisas. Como um corpo inteiro feito de silício e dotado de vida inteligente. Ideia menos absurda do que parece.

Há cerca de sete anos, a revista Science divulgou um artigo que relatava um experimento. Os cientistas tinham conseguido que uma bactéria “aceitasse” a introdução de átomos de silício dentro de suas moléculas. Punha-se à prova uma nova possibilidade. Não restrita à intrigante mania da vida na Terra pelo carbono. Dos cientistas aos poetas. Alguns com o acento mórbido cujo melhor exemplo está em Augusto dos Anjos, autodefinindo-se:

“Eu, filho do carbono e do amoníaco,Monstro de escuridão e rutilância.”

O mesmo poeta que, ao dizer-se vindo de “outras eras”, prefigura-se, ontologicamente, como sombra, e assume o tempo do incognoscível:

“Do cosmopolitismo das moneras… Pólipo de recônditas reentrâncias, Larva de caos telúrico, procedo Da escuridão do cósmico segredo, Da substância de todas as substâncias!”

Afirmando-se em cosmos, o poeta, no “Monólogo de uma sombra”, remete-se:

“A saúde das forças subterrâneas E a morbidez dos seres ilusórios!”

Quase nada disso tem a ver com Denise Milan. Não é o mundo das sombras nem da escuridão o seu. Tampouco o da química orgânica. Mas é o da vida. “A vida apenas, sem mistificação”, como diria Carlos Drummond de Andrade. A vida sem odes patológicas, pode-se acrescentar. No lugar da sombra, a luz, por vezes solidificada na matéria.

Ao invés da escuridão associada ao “cósmico segredo”, ela encanta-se pela “rutilância”. Elege iluminar-se de imensidão, como a aurora de Ungaretti. A luz baliza-a com clareza e nitidez tão vitalizantes quanto o entusiasmo exuberante de Walt Whitman: “Eu sou um cosmos, filho da Ilha de Manhatan”. Denise Milan é um cosmos nascido no continente de São Paulo. Acrescente-se: ancestralmente, vindo sua família do “cosmopolitismo das moneras” dos fenícios, inventores do principal alfabeto com que se escreve no Ocidente. Porém, sua arte remete a outros alfabetos, e o primeiro deles é o da Vida.

É preciso lembrar dos códigos vitais para dar-se conta alguém de uma peculiar “cabala” a reger os corpos vivos. O mundo das moléculas e dos átomos. As moléculas do oxigênio são consideradas simples. Existem as muito complexas. Exemplo: buckyballs. A bela e sublime esfera-molécula de fulereno, com os seus 60 átomos de carbono.

O “bucky” de tais bolas é uma homenagem a Richard Buckminster Fuller (1895-1983). Como ele, Denise Milan já merecia ser homenageada dando nome a alguma das façanhas químicas, físicas ou biológicas da ciência. Porque a beleza de sua arte produz, essencial e existencialmente, uma piscada ou um toque de ciência na arte e de arte na ciência. Cada uma das suas obras (da maior instalação a um mínimo objeto ou preciosa joia) poderia ter gravados no seu interior estes versos de Walt Whitman:

All truths wait in all things,

They neither hasten their own delivery nor resist it,

They do not need the obstetric forceps of the surgeon,

The insignificant is as big to me as any,

(What is less or more than a touch?)

Logic and sermons never convince,

The damp of the night drives deeper into my soul.”

Isso é o que se pode dizer e redizer na “fala”, mas no silêncio costumam expressar-se as verdades mais ricas e sutis. Como esta: as diferentes posições dos átomos, ao formar uma molécula, configuram diversas geometrias. Na busca pela estabilidade. As peças de Denise Milan podem ser lineares, angulares, triangulares, piramidais, tetraédricas, octaédricas, assim como as moléculas.

A partir daqui nos remetemos aos esteroisômeros. Para simplificá-los, há duas letras: a canhota, que é a L, e a destra, que é a D.  Com licença poética propomos que o D seja de Denise.

O mais interessante: as “letras” desses aminoácidos são imagens espelhadas. O D de Denise se reflete no L, que (outra nossa sugestão lírica e lúdica) está no centro de Milan. O L exprime as proteínas dos corpos de todos nós. Para que existamos e permaneçamos o tempo que nos couber.  Seres vivos, como os animais e as plantas, nutridos por minerais vivos e dinâmicos da arte de Milan. Disse melhor sobre o existir a poetisa dinamarquesa Inger Christensen (1935-2009), no seu livro Alfabeto:

“As samambaias existem, e as amoras, amoras

e bromo existem: e o hidrogênio, o hidrogênio”

Na mesma linha, digamos: os aminoácidos existem. Os aminoácidos D eles existem no mundo natural, e são multifuncionais. Sem falar nas misteriosas misturas racêmicas. LD e DL.

O que são aminoácidos? Moléculas orgânicas. A menor unidade do que constitui a proteína. Essenciais ao corpo. Além do que já se disse, sobre a composição das células, são eles que formam anticorpos, para combater os possíveis agentes de infecção. Lembremo-nos, assim das enzimas, do sistema hormonal, das nossas “notas musicais”. As nossas cores. As letras do nosso alfabeto: do DNA E RNA, de tantas letras que atuam no transporte de oxigênio pelo corpo inteiro...

 A nossa existência saudável depende dos aminoácidos. Os seus grupos são ligados a um único carbono. Este é chamado de alfa. Além dessa letra e das outras que citamos – D e L –, a cada aminoácido das proteínas corresponde uma letra, ou melhor, uma “abreviatura”. Por exemplo: o aminoácido chamado de arginina é abreviado duas vezes, com três letras: ARG, e com uma: R. No total, são 20 aminoácidos encontrados nas proteínas, constituindo um verdadeiro alfabeto: a, r, n, d, e, c, g, q, h, i, l, k, m, f, p, s, y, t, w, v.

Tudo isso nos remete às lições da escola, quando aprendíamos as quatro operações, na matemática, e as quatro “letras’, na biologia. Na verdade, as quatro bases do DNA: A, T, C, G, ou: Adenina, Timina, Citosina e Guanina. As três letras do DNA significam: Ácido Desoxirribonucleico. Curiosamente, não usamos a expressão ADN, que mostraria de modo direto o nome do ácido na abreviatura. Preferimos, como muita coisa na ciência e na tecnologia, sermos ancilares do inglês (como antes, era-se do latim): DeoxyriboNucleic Acid).

Os cientistas resolveram mexer na mínima sopa de letrinhas que constituem a vida. Agregaram novas bases hidrogenadas em bactérias. Elas aceitaram a nova informação, sem alterar o seu funcionamento. Talvez um primeiro passo para criar proteínas ou vida fora da terra. Ambas as ideias muito ambiciosas e há muito sonhadas pelos humanos. Como se já estivesse em work in progress uma biologia sintética, pronta para criar organismos.

A ciência cuida de aumentar, delicadamente, o alfabeto da vida. Há pouco mais de uma década, pesquisadores do Instituto Scripps, nos Estados Unidos, criaram, efetivamente, um ser vivo. O pequeno “Frankenstein” formado com três pares de bases de DNA, e não de dois, como costumava ser, desde sempre.

Sim, às quatro letras da natureza com as quais se “escrevem” todos os organismos vivos foram acrescentadas outras duas. Antes de popularizar-se expressão Inteligência Artificial, esteve (e está) em pauta algo mais radical e cheio de possibilidades imprevistas: a vida artificial. Os cientistas da Califórnia criaram um par de bases artificial batizada com uma combinação de letras. A demonstração foi experimentada numa bactéria, que, ao invés de quatro letras, passou a ter seis. Destacou-se o assunto na capa da revista Nature, em 2014. A bactéria usada para o experimento é bem conhecida do intestino humano: E. Coli. Por que os cientistas a escolheram? Pela simplicidade dela.

Outro exemplo com bactéria modificada podemos melhor associar à arte de Milan. A notícia saiu em 2011. Pesquisadores argentinos modificaram a bactéria, geneticamente, para que emitisse uma luz fosforescente, ao detectar ouro. Usaram no experimento Salmonella e uma cepa inofensiva de E. Coli. Transferiram o sistema de detecção de ouro da primeira à segunda. O resultado do experimento foi publicado na revista Biotechnology and Bioengineering, e divulgado no jornal argentino La Nación (15 de agosto de 2011)

Ao que chamamos de evolução científica os antigos gregos incluiriam na hybris. Que é uma forma de pretensão orgulhosa ou insolência humana tentando emular os deuses ou até superá-los.

Há um modo complexo como Denise Milan em sua arte inclui a matéria orgânica. O simbolismo visual ganha status de metáfora. Exemplo: formas que podem ser entendidas como embriões. Seja pela tendência a certa pareidolia (prova de que nunca nos abandona a mimesis), ou o gosto pelas sugestivas manchas de Rorschach. Ou, então, coisas tão frequentes nas reações do cérebro, como os sóis, as moscas voadoras e outras ilusões. Além do velho e universal hábito de “ver” figuras nas nuvens.

A arte de Denise Milan é fundamente abstrata? Mais justo seria dizer que o seu trabalho não se alimenta de dicotomias. Não se enquadra na visão do senso comum para a arte que opõe figuração e abstração. Pode-se dizer que ela trabalha naturezas, cada uma diferente da outra. Em linhas que tanto podem delimitar fronteiras como unir.

A ORGANICIDADE DO INORGÂNICO
Como um calidoscópio, as formas se movem e se moldam na imaginação. Ora há bolhas de ar no mar, ora outras que lembram divisões celulares. A biologia e a mineralogia em uma sinfonia, ou, ao menos, um impromptu. A artista prefere ver em muitas das suas formas acordos tácitos com a terra. As pedras não têm sexo, mas ela enxerga “embriões” nelas.  Há hermafroditas. Há anterozoides. Há óvulos. Numa arte que parece ter palavras-chave como criação, fecundação, fertilidade.

Dos animais e plantas às estrelas. É o espetáculo das formas da natureza que ela se esmera em mostrar.  Há os meteoritos. Todos esses fragmentos da natureza reúnem-se numa QuARTzoteKa. Neologismo que remete, obviamente, à biblioteca.

O fato de que a palavra seja assim, com a ART inserida em caixa alta, diz algo sobre a substância poética e literária de sua arte. Outrossim, termina, pela sonoridade sugestiva, por lembrar aquelas palavras exóticas dos idiomas pré-hispânicos do México, como Quetzacoatl. Bastaria eliminar o a, para isso ficar bem evidente: Quartzotec. Aqui, tem-se uma função quase análoga à das bibliotecas: classificar, ordenar materiais. Alguns destes contêm esboços de labirintos incrustrados.

Há muitas formas sugestivas de labirintos nas formas minerais. Tudo remonta a um tempo remoto. Como para mais de 300 milhões de anos. De culturas – no multímodo sentido dessa palavra – antes da cultura humana. Nascidas ponto a ponto, traço a traço. Por vezes, as esculturas já nascem prontas, não precisam de nada para ser já, mesmo quando esse aconteceu há muito, como as estrelas. 

São os elementos das origens o que a artista traz à tona. Os minerais, em transformação. A parte desse processo ela a denominou de “Petrafagia”. As fotos feitas dessas obras por Sérgio Coimbra são obras de arte em si.

Em algumas culturas é corrente a geofagia. Algo recorrente no Brasil, por exemplo, em algumas mulheres grávidas. No banquete petrafágico não se come com a boca, mas, literalmente, com os olhos.

Denise Milan formula, com sua arte, uma mitologia própria. Original. Se existe uma transcendência afirma-se no paradoxo de, no seu caso, urdir-se apenas na imanência. Na sua poética mythos e logos se irmanam. Refletindo sobre as suas personagens pétreas, e com sabor de alegoria, nos lembramos de um trecho da História Natural, de Plínio, o velho:

“A urina dos linces congela ao ser expelida, nos lugares onde nascem, ou petrifica em pedras semelhantes a carbúnculos e brilhantes com uma cor ígnea, chamadas lincurio, e, por isto, a maioria afirma que o âmbar amarelo tem essa origem. Os linces sabem e conhecem isso e, para fazer mal, cobrem sua urina com terra e assim ela se solidifica mais rapidamente.”

Não contentes com investigar, podemos mastigar a matéria estelar de que, em parte, somos feitos. Como na frase popularizada por Carl Sagan, ou, ainda melhor, nos versos de Albert Durrant Waltson, que evocam uma espécie de melancolia cósmica:

“On swept the ages till the suns decayerd,

Til, bleached and bare, the dead hones of the worlds

Lay in the fields of heaver, till Mazzaroth

No longer flamed the zodiac with light,

But strewed with cosmig slag, ashes of stars,

The lonely waysides of eternety.“

Séculos antes dele, Dante mostrou a nossa conexão com as estrelas, no último verso de cada um dos cantos da Commedia:

“e quindi uscimmo a riveder le stelle.”

“puro e disposto a salire a le stelle.”

“l’amor che move il sole e l’altre stelle.”

Não estamos buscando situar a arte de Denise Milan numa espécie de “eat art”. Basta enfocar o seu simbolismo. Mastigar as estrelas equivale a alimentar-se das origens. O próprio tempo apresenta outra grandeza, o da criação. O dantesco amor do universo. Em sintonia com ele, entramos na natureza de uma arte que não busca mimetizar a natureza, mas emaná-la. Do cristal do açúcar a todo o universo, sempre em transformação. Num verdadeiro banquete de panta rei dos materiais.

Uma mesa posta pode ser a síntese da Terra. Do cosmos. Momentos do banquete e do embate. Denise Milan encena e ensina o seu drama. “Escreveu” com seus minerais um Gilgamesh particular. Do basalto, que ela nomeia como mortal, e do quartzo, que pode fingir a arte um sonho de permanência. Cada pedra conta essa luta, não de vida e morte, mas do sonho-anseio de imortalidade.

Em diversos momentos, as obras, de vários tamanhos, que são suas esculturas nas instalações contêm objetos figurativos interatuando. A artista tanto esculpe quanto insculpe. Há cisões, excisões e incisões nos seus materiais. Relevos, glípticas, clípeos.

ÓPERA DAS PEDRAS
A partir da obra mineral de Denise Milan, nasceu a “Ópera das Pedras”. Um trabalho-chave em sua trajetória, com música de Marco Antônio Guimarães. Entram em cena Agrégora, Solser, Konfuso, Ordenatrix, Violetaluz, Malassombras. Personagens literais do drama. Agrégora enfatiza uma busca, na sua ventura ou viagem iniciática. Passo a passo, rito a rito. O primeiro que ela enfrenta: Olho do Abismo. A primeira entidade: Konfuso. Caos ordenado.

Disso foi feita uma interpretação articulada em hip-hop, em duas ações: O Espetáculo da Terra e Ópera das Pedras. Ambas integradas no projeto Vidas Preciosas de Heliópolis. Parceria da artista com o grupo Avante e a União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região, em São Paulo. Ou em outro projeto, em Belém: U ura muta uê. A própria artista situa assim sua participação no projeto de Arte Pública, no Jardim Feliz Lusitânia: “A escuta determina na arte pública contemporânea o fazer, que parte do entendimento do fazer do outro e procura a sua essência”.

A natureza não é apenas infinitamente grande e pequena, é lúcida, literalmente. Basta ver os cristais, atravessados pela luz, formados e transformados com perfeição. Há, assim, duas perfeições, a do fabricado, a que se referiu o poeta Cesário Verde, e a natural, homenageada no De rerum natura de Lucrécio.  Ele fala sobre: “Os corpos cujas texturas se opõem e correspondem de tal forma, que o vazio de um se acomoda ao cheio do outro, e vice-versa, formam entre si uma soldadura perfeita”.

Denise Milan não se limita “a assistir” as pedras e escutar suas vozes, aceita ser assistida por elas; e, ao mesmo tempo, inventa pequenos atos de analogia. Formas que ela ordena e organiza para configurar rituais. Em uma dinâmica sumamente antropológica. Basta atentar aos títulos: Pré-Criação, Fúrias Fogosas, Lágrima da Misericórdia da Atmosfera, Suspiros Suspensos, Rito de Silício, Malassombra, Despertem Suas Células Adormecidas, Levante Quartziano, Exército de Ametistas, Só Sóis, Filhos do Magma, Ametista Desnuda, Druideusa, Partida, Vida, Com Ciência, Odisseia Quartza, Madona, Via Cristalina. 

Observa-se em cada um dos pequenos ritos tramados nessa ópera o exercício de ordenamento. Uma consciência. Não há pedras amontoadas, há pedras-signos. Às vezes, dispostas como se fossem parte de uma família nas cavernas.

Se entendermos, recorrendo à divisão tradicional dos gêneros, que há o épico, o dramático e o lírico em Denise Milan, a Ópera das Pedras é, como anuncia o próprio título, parte desse jogo dramático. A natureza nas pedras hieráticas exprime uma terra subterrânea. Lembra que a natureza pode prescindir dos humanos. Sem vice-versa.

A AVIDEZ SILENCIOSA DAS COISAS

Uma eloquência nessa e nas demais pedras usadas por ela. Uma filosofiarte que percorre todos os seus aportes tridimensionais. Sobretudo na QuARTzoteka e na Ópera das Pedras. Como a nos lembrar de que a natureza pode não ser bela, mas é sempre sublime.

A Ópera das Pedras traz cenas, encenações. De pessoas, de coisas, de paisagens. Um drama da matéria, e na matéria, como se disse. Há um sopro mítico nesse reino lítico. De deuses e deusas. De egrégoras. Simbolizar e imaginar são verbos para a carne dessas pedras.

Elas remetem aos primórdios. De antes até da civilização, e dos começos dela. Como no Egito antigo, das pirâmides feitas de pedras polidas, laminadas pelos homens, e pelo sol iluminadas. Nas pedras de Denise Milan insinuam-se hieroglifos, escritas cuneiformes ultramodernas. Suas incisões e inscrições. Seus obeliscos.

O mundo como representação e vontade em Denise Milan é anti-hybris, porque tudo nele tem a elegância da mesura, e a mesura da elegância. Reverência à imensidade da natureza. A desmesura leva à morte, a mesura cria e reinventa a vida. A insolência leva a insolvência. A inteligência está na imanência das coisas. A lógica interna e externa dos minerais traduzida em obras de arte. Pode-se definir assim uma parte do que faz Denise Milan. A história de cada pedra, sua linha do tempo, desde a formação às pressões sofridas, seus movimentos, sua solidez, sua dança lenta de átomos. As formas geométricas, os veios, as fraturas, os brilhos, o resfriamento do magma.

A matéria decide as formas. Extrai-se a Beleza dessas entranhas da Ordem. Mesmo na aparente desordem.  Há um vocabulário nos cristais. Uma linguagem. A artista está em busca dos alfabetos ancestrais nas rochas e sua gramática.

O que está na rocha, além das coisas que ela mesma incrusta:  sensações, assimetrias, imprevistos, contradições. Geometrias singulares. Tão vivas, por exemplo, na escultura “Infinity”, dedicada a Frank Wilczek (Nobel de Física, 2004). Marcou a celebração dos 50 anos da cromodinâmica quântica, em setembro 2024. A matéria física representada como a arte. Uma dupla arte. Como arte em si, e de si – de Denise Milan. Ponte entre o visível e o invisível. Arte e ciência, infância e infinito. Está além da teoria ou de meramente chamar-se de arte, porque é revelação e invento.

Denise Milan é uma artista que não se limita a artesanar os seus materiais, instila e instala uma inteligência nisso. De espéculos. Um pensamento vislumbra liames, eixos, nós. A consciência do/no cosmos, na/da consciência humana, que sofrerá ou morrerá, quando decidir separar-se dessa unidade primordial. De reverberação, magma e luz.

Alguns cientistas, como o já citado Frank Wilczek, perceberam as particularidades que flertam com a ciência na arte de Denise Milan. Sem esquecer-se da psicologia. Se existe uma psicanálise do fogo, como propôs Bachelard, por que não defender uma psicologia das pedras convertidas em arte, ou seja, em jogo?

Diz Bachelard:

“Quando se reconhece um complexo psicológico, parece que se compreende melhor, de forma mais sintética, certas obras poéticas. De fato, uma obra poética não pode receber outra unidade que não seja a de um complexo. Se o complexo estiver ausente, a obra, privada de suas raízes, não se comunica com o inconsciente. Parece fria, fictícia, falsa.”

Tanto mais adequadas essas palavras se insistimos em repetir que a arte de Denise Milan é arte poética. Persiste na encenação das pedras realizada por ela o eterno e terno olhar da infância.  Da criança citada por Fernando Pessoa no poema famoso de “O guardador de rebanhos”, que aprende um tipo de expressão de alegria nas pedras:

“Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.”

Denise Milan dá a ver o potencial inscrito na matéria, que as pessoas olham, mas nem sempre conseguem ver. Ou veem, mas não compreendem. Olhar, ver e compreender é encontrar saídas. Afeiçoada aos labirintos, a artista construiu-os de diversas maneiras. Até com as suas próprias digitais. Labirinto é a obra “Sectiones Mundi”, no parque Ibirapuera, em São Paulo, e há outros, em diferentes sítios (vide o livro Americas Courtyard, com Ary Pérez).

Milan entende a digital como a entrada para o subterrâneo. Em português diz-se impressão digital, do inglês fingerprint. O italiano, o alemão, o francês, o esperanto, seguem no mesmo caminho. O espanhol é mais poético: huella dactilar. O romano mais prosaico: dactiloscopie.

Como os antigos interessados ou praticantes da astronomia, ela cultiva a ideia de alinhamento. A começar pelo das pedras. Apontar para uma direção ou outra faz diferença. Está fascinada pelas formas dos cristais, inclusive quando se quebram, pois inauguram, instantaneamente, outras formas, expressões e manifestações.

Sua arte é parte de uma ideia vitalizante da natureza, como a formar uma grande prosopopeia, tentando demonstrar que as coisas naturais nunca deixam de informar e se comunicar. Essa vocação tão expressiva é um dos chamados para o interior da terra, a interpretação de suas mensagens, a invenção de simbolismos.

Não satisfeita com apenas descobrir ou inventar alfabetos e ideogramas para as pedras, Denise Milan arranja sonoplastias, falas, palavras. Umas vezes, funcionam como jitanjáforas; outras, como exercícios de audioarte. Além de exemplos mistos, como Cadumbra – junção de arte visual com metapoemas. O seu parceiro nesta aventura: Haroldo de Campos. Em Cadumbra a arte tenta transpor as fronteiras da escravidão ao significado.

O termo jitanjáfora, proposto por Alfonso Reyes (1889-1959), para designar expressões verbais sem sentido aparente, foi por ele colhido destes versos de Mariano Brull (1891-1956):

“Filiflama alabe cundre ala olalúnea alífera alveolea jitanjáfora liris salumba salífera.”

Eis aí, de novo, a importante função lúdica da linguagem. Ela assume relevo definidor na arte de Denise Milan. Nos seus exercícios de “música visual” e de “arte sonora”.

Se os de muito antes tentavam imitar a natureza (daí haver prevalecido, por tanto tempo, a mimesis na arte), Milan busca outros mimos: ser parceira da natureza, revelá-la, prossegui-la, estendê-la. No seu labor de estruturar, de desenhar. O campo extraordinário da potência cristalina. A artista se esmera em seguir seus princípios e seus fins. Percebe “ideogramas” que pulsam no silício, no ferro e outros materiais. Cada coisa é um universo em si. A matéria se renova, se readapta, e pode ser vista como um caleidoscópio também ativo pelo lado de fora.

O reino mineral de Denise Milan tem veios e veias, forma (ou forma-se de) outros pontos cardeais. Tabelas periódicas próprias, geografias reais e imaginárias, tempos aquém e além do tempo, medidos em anos-luz, topografias cósmicas. Coisas assim nutrem sua poíesis.

Rege com suas mãos um momento-música, de lirismo, e se empresta ao épico e ao dramático. Presentes na QuARTzoteka. Cada um dos minerais conta uma história, mas, antes de tudo, eles convidam a contemplar, meditar, ver, observar, admirar. Todos os verbos no infinitivo, coerentes para quem tem o símbolo do infinito na própria assinatura, como marca e rubrica (Ouroboros ou lemniscata) E gosta de modelar-se no maravilhoso e no sublime (no sentido kantiano do termo). 

“DEUX OU TROIS CHOSES QUE JE SAIS D’ELLE”
No princípio, era o círculo (um sol). Quem primeiro viu foi Rachid Milan. Percebeu ali uma vocação no desenho singelo da filha e lhe deu de presente uma pequena caixa com cerca de 12 pedrinhas brasileiras, mostrando a diversidade do mundo mineral. Talvez esteja aí o primeiro alumbramento da futura artista.

Quem sabe o interesse por inventar uma arte tão cheia de virtudes para os olhos tenha nascido de observar o ofício do pai, ou de senti-lo. Ele era médico clínico, mas decidiu se especializar em oftalmologia, para curar a esposa (Rosa Maluf Milan) de um risco de cegueira. Isso pode ter ficado nas mais profundas camadas da memória e influenciado o rumo da arte de Milan. Com seus tantos círculos, espelhos, luzes, retinas. Mil olhos olhando, nascendo e fecundando.

As 12 pedrinhas foram multiplicadas por muitas e muitas mais, porque em Denise Milan nunca cessou a curiosidade pelo conhecimento e o mundo das formas. Na infância, ela inventava seus próprios universos. A partir da juventude, passou a interagir com eles.

Para atender às expectativas da família desejosa de uma filha empresária, Denise Milan formou-se em Economia na Universidade de São Paulo (USP). Mas tinha feito um curso de teatro com Myriam Muniz (1931-2004), e de cenografia, com Naum Alves de Souza (1942-2006), e nesse mesmo antes da Faculdade, dedicou-se à dança. 

O gosto pela conquista dos universos das artes e das artes dos universos – inclusive os paralelos – prevaleceu. Entretanto, a economia lhe foi útil. A economia irmã da ecologia. Ambas derivam de oikos, grego que significa “casa”. Ambas tratam de recursos, habitat. A arte da sobrevivência precede a sobrevivência da arte. 

Em 1982, já era artista assumida. Com vivências no exterior. Na Espanha conheceu a historiadora da arte Manuela Mena, que seria decisiva em sua trajetória. No livro Pedra, o universo escondido, que organizou, Mena escreve sobre Denise Milan um ensaio. Analisa tanto os trabalhos “canônicos” das esculturas, instalações, entre outros já consagrados na arte contemporânea, quanto as fotocolagens, as esculturas de luz, os exercícios de vídeo-arte.  Manuela Mena e Naomi H. Moniz são as melhores intérpretes da obra de Denise Milan. Entre tantas agudas e precisas análises sobre seu trabalho e trajetória, colhemos este parágrafo de Moniz:

“Conhecer o imaginário de Denise Milan é como entrar num universo de viagens, descobertas, observações do mundo natural, das ciências, é entrar num Wunderkammer – um gabinete de maravilhas com uma coleção enciclopédica de pedras. Nesta biblioteca, os livros de pedra são como aqueles mapas que surgem na Europa desde o século 13, com desenhos do orbe celeste, da rosa dos ventos e acompanhados de antigos instrumentos de navegação: o astrolábio, a bússola, o telescópio, a sextante, e que ajudaram os antigos marinheiros a encontrar os caminhos marítimos observando a Natureza.”

Livro indispensável para compreender a trajetória e as obras da artista é realmente esse já citado Pedra: o universo escondido. Denise Milan. Análise e síntese de um trajeto que resulta no mais autêntico e nítido cosmopolitismo de uma artista brasileira. Um percurso que, quando consolidou o seu reconhecimento no Brasil, já vinha de experiências em Nova York, então em grande ebulição artística. Dessa década de 1980 data uma das suas exposições mais marcantes de Milan: “Garden of Light”. Uma instalação com 14 obras feitas em cristal, que ela montou, primeiramente, em Nova York (Galeria P.S 1), e depois, em São Paulo, em 1988.

Na primeira versão da instalação em Nova York havia um poema de Milan – “Luz morta” – musicado por Naná Vasconcelos. Na realizada em São Paulo, que não foi uma mera repetição da outra, houve o acréscimo da obra “Coqueiro”. Mas ambas as exposições se alimentaram igualmente de transparências, de luzes, de raios. Em Nova York, ela esteve, lado a lado, com artistas como Laurie Anderson e Nam June Paik (1932-2006).

Milan entende que essa mostra tem a ver com a QuARTzoteka, porque, naquele fim dos anos 1980, se iniciou a sua tentativa de trazer uma espécie de ilha metafísica ou metafórica para o plano da realidade. Cada um dos passos de Garden of Light e cada uma das peças têm a ver com o trajeto que vai conduzi-la mais para o centro e o dentro da Terra. O imaginário da terra presentificado na QuARTzoteka teve, portanto, esse vislumbre anterior.

Num âmbito mais psicológico e simbólico que tão somente estético e metafórico, o cristal do “Jardim de Luz” pode ser visto como um espaço de consolação, nas grandes perdas. Na luz. Acolhimento disponível a quem pode se entregar sem ser consumido pela dor.

O projeto estético de Denise Milan extrapola os limites da arte, alcança o existencial. Sem cingir-se ao particular, mas sem exclui-lo, tampouco. Não por acaso, há presenças constantes de úteros e embriões (vide os cristais de O ventre da vida). Útero e embrião estão explicados em sua própria etimologia: uterus, do latim, com o sentido tanto interior quanto exterior, isto é, de ventre e matriz. Embrião provém do grego, e significa brotar. Em suma, universo tão feminino quanto a arte e a filosofia. Esta é tão fundamental para esse tipo de obra que, ao invés de falarmos da arte da filosofia, ou da filosofia da arte, devemos pensar numa filosofia na arte em si. Reverente às formas e “firmas” da natureza. Como afirmou a antropóloga Sherry Ortner:

“A folha não é a geradora da folha, mas todas as folhas são descendentes coletivas do tronco. Assim acontece com a raça humana, de acordo com a concepção do Direito materno. Nesta, o pai não tem outro significado além do de semeador, que quando espalha a semente no sulco, desaparece novamente. O gerado pertence à matéria materna, que cuida dele, que lhe deu a existência e agora o alimenta. Mas essa mãe é sempre a mesma, em última instância a terra, cujo lugar é ocupado pela mulher terrena com a sucessão de mães e filhas”.

A origem ocupa, portanto, um lugar essencial na germinação de uma arte como a de Milan, indissociável da feminilidade. Por esta e outras razões, talvez de tudo isso nunca se tenha ausentado a caixa de pedrinhas recebida de presente na infância, nem as suas experiências com a gestação. Tanto as felizes quanto as infelizes. Coisas assim ficam no inconsciente, nas camadas mais profundas do magma da memória, prontas para ressurgir, sempre. Especialmente numa arte nutrida de ritmos incomuns, mas harmoniosos, vinculados ou associáveis ao conhecimento da dança.

A dança é uma das chaves para aceder de modo correto ao universo da arte das pedras de Denise Milan. Por seu próprio sentido. Para isto convém recorrer às palavras de Paul Valéry, na tentativa de construir uma filosofia da dança: “A dança é uma arte que se deduz da própria vida, pois não é senão a ação do conjunto do corpo humano; mas uma ação transferida para um mundo, para uma espécie de espaço-tempo, que não é exatamente o mesmo da vida prática”.

Significa dizer uma coisa só aparentemente paradoxal: a arte de Denise Milan – suas esculturas, suas instalações – não é estática, é extática. Faz-se da dinâmica do movimento, e é muito física, corporal. Uma compreensão vitalista da realidade. Fertilidade, fecundidade. A vida em si. Inclusive na morte. Ambas – morte e vida – nunca se separam na arte. Algum simbolismo disso há na ideia de que cada um que desaparece se espraia de volta ao cosmos, ao Inominado.

A QuARTzoteka não é um processo cumulativo, nem como uma biblioteca somente. Há uma classificação, uma escolha. Ordem, propósito. Nada é aleatório. Aí não estão como peças de uma coleção de pedras, são, como poderíamos repetir, ad nauseam, uma obra em si.  Uma instalação, literalmente. De pedras vivas. Que se comunicam entre si. Têm línguas e linguagem.

A Ópera das Pedras mescla a música desta era transmoderna com a alma da Renascença. A pedra é todo homem, toda mulher, todo artista na peregrinação. Traduz-se por meio das suas personagens. A principal é a Agrégora. Disto resultarão, a posteriori, esculturas feitas por invitation de Roberto Viana.

Cada personagem tem um desafio nesse drama, que é também um jogo. A rede dos enrolados é um grande perigo para a Ordenatrix. Rede dos enrolados chegou a motivar uma música de Naná Vasconcelos: outra parceria de Milan, por afinidade eletiva.

Parafraseando Gabriel García Márquez, para quem “la luz es como el agua”, poderíamos dizer: o quartzo é como a água, porque abundante na terra. Não nos esqueçamos de outra presença constante na superfície terrestre: o basalto.

Sobre isso e mais nos ensina Denise Milan, ao compor seu poema dramático, que é a Ópera das Pedras, encenação, encarnação e entonação de conflitos, solilóquios e diálogos. O drama da matéria. Geodos e mitoses. A casca e o interior da matéria. Embriões e labirintos. Círculos concêntricos. As bolhas. Estas últimas mostram que a artista não se enamora apenas das coisas do universo que parecem perenes, mas também imagina odes ao efêmero, como antes o fez Hermann Hesse, com o seu “Rabisco na areia”.

Em Denise Milan, porém, o jogo não se dá com as bolhas de sabão, mas com aquilo a que chamamos de bolhas na pedra. Suas personagens levam-nos a imaginar, tal uma fábula de criança ou de ciência-ficção, como seriam seres feitos de silício.

 Pensemos em amonitas. Curiosa palavra que designa, ao mesmo tempo, humanos de uma civilização extinta e animais do mar. Sua evolução remonta a 400 milhões de anos. Foram eles os mais abundantes nos mares, na mais remota antiguidade. Espécies como a Arnioceras semocostatum são úteis inclusive para datar outros fósseis.

 Ao visitar-se a QuARTzoteka, é fácil entender que Denise Milan não trabalha com pedras, e, sim, com narrativas. As pedras são pretextos. Ali há uma coleção de narrações. Cada coisa tem uma história. Inseparável do legado contado nessas pedras. São sugestivas para a imaginação, que se amplifica e se multiplica.

Como numa biblioteca, há divisões nas estantes. A mais preenchida é a das “biografias” das pedras. Sua vida, seu fluxo. Na QuARTzoteka há coisas únicas, mas aí também há repetições. Como a dar razão a T. S. Eliot, quando disse:

“Dizes que repito

algo que disse antes.

Voltarei a dizer.

Voltarei a dizê-lo?”

De um tranquilo e constante mapeamento de pedras, ou com parte disto, nasceu a especial instalação artística que entendemos ser a QuARTzoteka. A artista captura e capta da natureza coisas e formas, torna-as ainda mais expressivas com pequenas intervenções nelas. Há aquelas obras onde a pedra está quase tal e qual está/estava (como se fosse parte de uma ordem jônica pessoal: das pequenas construções da artista). Outras são esculpidas, reconstruídas, redefinidas (suas “colunas” jônicas e coríntias). 

Se o poeta dá vida e sentido à matéria (aparentemente) morta, da conhecida passagem em verso de Baudelaire, nessa mesma direção Denise Milan faz o seu tanto. Com isto parece suplantar uma das dicotomias mais comumente aceitas: natureza e cultura. De que maneira faz isso? Mostrando que há formas na natureza que podem ser vistas como obras de arte. Enquanto sua própria obra de arte parece ser, às vezes, uma forma de obra viva da natureza. Uma das virtudes do que realiza a artista é a capacidade de encontrar essas artes naturais e culturais nas duas direções, e intercambiá-las, transtrocá-las.

O uso da expressão “capacidade de encontrar” pode ser mais bem esclarecida. Talvez empregando um termo occitânico fique mais claro. Da arte, que é encontro (natural) e poesia (arte-ofício), ao mesmo tempo. No verbo trobar, que tanto significa “encontrar” quanto “fazer versos”. Trobar, com o sentido de encontrar provém, segundo alguns etimólogos, do latim tropaeum. Significa troféu, daí vem o occitano dele derivado: troba, ou seja, achado, tesouro. Esse é o trabalho que Denise Milan faz com suas pedras: tropaeum, troba, trobar.

Um ato deliberado, consciente, de busca e encontro dirigidos, provados, a cada contato, e repoetizados. Na relação tão íntima dessa arte com a ciência e a filosofia. Há determinadas formas de arte que conformam uma epistemologia e uma hermenêutica próprias. Isto ocorre com a de Denise Milan.

Ao alcançarmos o seu território podemos entrar nos extremos da arte contemporânea, e da arte antes da história. Melhor entendemos isto se o expressamos numa frase espelhada que não é um mero jogo de palavras. Falar no fim da arte é falar no fim da arte. Ou seja, a arte não tem fim, porque não tem propriamente começo. A arte não tem fim porque tem fim, sempre teve fim (objetivo, propósito).

Na contemporânea sociedade qual sua função? Qual resposta dá a esta pergunta Denise Milan, explorando os minerais como Leitmotiv? A da arte pública. Tratar disto nos obriga voltar à indagação de Agamben: “qual é o lugar da arte no presente?”. Uma questão assim tão recorrente se junta a outra ainda tão repetida atualmente, inclusive pelo público: Isto é arte? Se formulado deste modo o questionamento, parece haver uma ideia prévia do que seja e uma dúvida quanto ao que não seja. Uma situação assim nos remete à discussão presente em ¡Chum, chum, pim, pam, pum, olé!: Pioneros del arte sonoro en España, de Cervantes a las vanguardias, uma obra coletiva do Grupo de Investigación del Laboratorio de Creaciones Intermedia. Especificamente no artigo “Arte Sonoro y la dialéctica entre las artes y el arte”, de Aixa Takkal Fernández e Alberto Rubio Garrido. Para os autores a simples interrogação “mas, de verdade, isto é arte?” certifica “ainda que com ingenuidade, a perda da autoevidência da arte. E, certamente, tanto a relação da arte com a sociedade quanto sua justificativa interna tornaram-se problemáticas.” A autora concentra sua reflexão acerca de Adorno e à “falta de obviedade da arte”:

“Ele se refere a um movimento intrinsecamente moderno, subterrâneo e insistente, pelo qual a arte se desprendeu gradualmente de sua determinação social em prol de uma liberdade absoluta. Não é de se estranhar, portanto, que o espectador distraído veja como estranho aquilo que lhe é apresentado como arte, mesmo sem se dar conta do processo do qual isso é resultado”.

O comentário de Agamben problematiza mais, ao questionar inclusive a expressão “obra de arte”. Ele nos lembra que Guy Debord (o autor da A sociedade do espetáculo), antes de fundar a Internacional Situacionista integrou uma das últimas alas das vanguardas do século 20, e que ele “resume sua postura a respeito do problema da arte em seu tempo: “O Surrealismo quis realizar a arte sem aboli-la, o Dadaísmo quis aboli-la sem realizá-la, nós queremos aboli-la e realizá-la ao mesmo tempo’.” Agamben problematiza ainda mais:

“É evidente que o que deve ser abolido é a obra, mas é igualmente evidente que a obra de arte deve ser abolida em nome de algo que, na própria arte, vai além da obra e exige ser realizado não em uma obra, mas na vida (em coerência com isso, os situacionistas pretendiam produzir não obras, mas situações). Se hoje a arte se apresenta como uma atividade sem obra — embora, por uma contradição interessada, artistas e marchands continuem exigindo que ela tenha um preço —, isso pôde acontecer porque o ser-obra da obra de arte ficou sem ser pensado. Acredito que somente uma genealogia desse conceito ontológico fundamental (apesar de não estar registrado como tal nos manuais de filosofia) permitirá compreender o processo que — de acordo com o conhecido paradigma psicanalítico do retorno do reprimido em formas patológicas — levou a prática artística a assumir essas características que a chamada arte contemporânea leva ao extremo em formas inconscientemente paródicas. (A arte contemporânea como retorno em formas patológicas do reprimido “obra’.)”

Sublinhemos e repitamos isto: “compreender o processo que (...) levou a prática artística a assumir essas características que a chamada arte contemporânea leva ao extremo em formas inconscientemente paródicas”.

Percebemos uma ausência da paródia na arte de Denise Milan, o que nos conduz a pensar o seu trabalho como um passo além do apenas contemporâneo. Se tentamos aprofundar o olhar e nos sentimos levados a uma exegese, ou, pelo menos, a um mergulho um pouco mais demorado na sua produção, encontraremos uma arte muito amadurecida na autoconsciência não somente dos seus meios e propósitos, mas dos seus resultados. Não busca épater o público, tenta seduzi-lo, trazê-lo para perto, até, como as medusas, petrificá-lo.  Estamos num estágio superior de arte, onde cabe a admiração e o maravilhamento. Que ultrapassa os recursos da arte contemporânea nos seus clichês mais reiterados, a começar do autocentramento.

De um certo modo, a arte contemporânea nos leva a uma ideia básica de Vigotsky, para quem há uma função social de comunicação na “linguagem egocêntrica”, desde o balbuciar da criança. Significa, no caso da maioria dos artistas uma forma de solipsismo, pois, antes de falarem com o público, falam consigo mesmos. Mas há, por outro lado, aqueles para quem o seu trabalho, ainda que completo em si, pode amplificar-se, amorosamente, com a ação/participação do espectador. É o caso de Denise Milan. Daí a profusão de instalações realizadas por ela, daí a constância da Arte Pública na sua trajetória. Basta prestar uma atenção maior às subdivisões do seu Americas Courtyard (parceria com Ary Pérez): “Arena”, “Chapel”, “Playground”, “Theater”. Pensemos tudo isso envolvido sob duas rubricas: uma, explanada por Manuela Mena como “Arte, História e Arqueologia”, e outra, por Phyilis Pitiuga, como “Arqueoastronomia”.

No entanto, não devemos nos esquecer de que a arte de Denise Milan representa a afirmação de uma paideia. Nela a arte e a educação de conjugam. Nessa arte urbana, demasiado urbana está onipresente o humano, demasiado humano. O “pátio”, porém, não é simplesmente, uma cidade, mas o cosmos.

Compreendeu bem Manuela Mena a cosmovisão de Denise Milan quando destacou em Americas Courtyard:

“Denise Milan é uma mulher americana. Brasileira, em seu sangue ela tem uma mistura de portuguesa, espanhola e libanesa. Uma mistura fértil, como todas as misturas, e simbólica de sua capacidade de encontrar a linguagem essencial de seu continente natal e de seu país de nascimento. Mensageira do Sul no Norte, Denise traz consigo o espírito das Amazonas para os Grandes Lagos, a mensagem da natureza para a vida urbana, já que, na cidade, a natureza é concebida como exclusivamente verde, quando também é densamente rochosa e mineral, com as cores suaves e variadas do granito. O Pátio das Américas torna-se um símbolo da natureza neste denso ambiente urbano de Chicago, uma vez que as pedras, quartzo ou basalto, são a expressão artística mais profunda e original de Denise Milan. É também a expressão mais misteriosa e íntima. O seu olhar como artista, como feiticeira, penetra no interior das pedras, encontrando a sua estrutura interna, amando-as com força poética e ritual. Suas mãos pequenas, escuras e fortes, parecem capazes de esculpir esses grandes blocos de granito sozinhas, impulsionadas por sua energia vibrante, convencendo as pedras grandes e rígidas a se tornarem maleáveis, a girar em torno de um eixo, a se unir e se separar em uma dança antiga que evoca as danças rituais dos índios norte-americanos ou sul-americanos ou das tribos africanas ou as delicadas danças da China ou do Japão. Danças circulares onde bailarinas se abrem e se fecham com passos infinitos em um círculo, pela guerra e pela paz, pelo amor e pelo trabalho. É uma dança das pedras que serve para unir as pessoas com suas ideias, com suas etnias, religiões e países nativos ou adotivos”.

Tudo nesse longo parágrafo é compreensão plena da estética de Denise Milan. Enfatizamos três aspectos: a natureza como algo mais do que um leitmotiv. É sua própria razão de ser e expressar, comunicar. Integrada a ela está a ágora, do convivium e até de Symposium, pois o que são suas obras senão banquetes para o pensamento e os sentidos? A “dança das pedras” a que se refere Mena nos leva a um terceiro ponto fundamental na arte de Milan: a ágora. Ou seja, uma praça pública. Seja na Grécia de há séculos, de comércio, político e vida cotidiana. Tão válida para a antiguidade como para estes tempos em que as ágoras e egrégoras parecem estar, ruidosamente, em toda a parte, inclusive no não-espaço digital.

No espírito de ágora – mais do que de “colmeia” – situamos a arte de Milan. Desde as obras expostas em um hotel de luxo, como o Rosewood, em São Paulo, até o projeto Vidas preciosas de Heliópolis, em uma comunidade carente dos meios materiais, na mesma cidade. Arte pública, e para o público, em permanente convite a uma ceia, não de cardeais da arte ou de qualquer outra coisa, uma ceia de inteligências e sensibilidades. De grandes individualidades e de grandes coletivos, como o Avante e os Herdeiros do Hip-Hop.

A arte pública representa uma resposta positiva às inquietações de tantos sobre o papel da arte numa sociedade na vigência de uma “desumanização”, desde, pelo menos, Ortega y Gasset. Denise Milan faz uma arte democrática com estética aristocrática. Arte que é um permanente convite à imaginação do espectador. Arte multidisciplinar, em que a biologia, a física, a química, a geologia e a poesia não se alheiam nem se alienam. Cada um dos saberes interatua com seu vocabulário, sua gramática. Mais do que arte, Denise Milan realiza uma espécie de poesia-filosofia com pedras, rochas, minerais. Atemporal – valha outro paradoxo – porque feita de Tempo, de entretempos, e coisas de antes de o humano inventar a ideia de tempo. Paisagens e coisas construídas como bens do universo. Ou numa terra que parece outro planeta, e é. Basta ter olhos para ver, e mente para pensar, imaginar e desfrutar melhor. 

MARIO HELIO, editor das revistas Continente e Pernambuco

veja também

A arte cristalina de Denise Milan (The crystalline art of Denise Milan)

Natureza viva

Alto do Moura: o idioma do barro