“Eu sou aquilo que vivi, as camadas, os tropeços”
Aos 76 anos, dos quais meio século dedicado à música, artista paraibana fala da trajetória profissional e analisa suas influências e a relação com o Nordeste
TEXTO Antonio Lira
03 de Julho de 2023
A artista Cátia de França
Foto JOSÉ DE HOLANDA/DIVULGAÇÃO
[conteúdo na íntegra | ed. 271 | julho de 2023]
No início de nossa entrevista, Cátia de França, que falava comigo por videochamada direto de sua casa na região serrana do Rio de Janeiro, me perguntou, logo de cara: “Qual a camisa que você veste?”. Estávamos em período eleitoral, ainda no final de 2022 e, como o assunto acabou surgindo em nossos primeiros contatos, ela queria saber qual era meu posicionamento político. Depois que eu confirmei que era de esquerda, ela brincou, dizendo que havia se levantado da cadeira, mas logo sentado novamente, ao saber da minha resposta. Em seguida, lamentou que colegas de sua geração estivessem apoiando a candidatura do então presidente que tentava se reeleger.
Para quem a conhece, talvez o relato acima não surpreenda. Afinal, durante toda a sua carreira de mais de 50 anos, Catarina Maria de França Carneiro nunca deixou de se posicionar em defesa daquilo que acreditava. Mesmo que, às vezes, tal posicionamento lhe tenha trazido custos. Sobre isso, Cátia, como ficou conhecida, conta que tem a certeza de que fez o certo, o que a faz dormir tranquila todas as noites.
Quem deu seu nome e seu apelido – que se transformaria em seu nome artístico – foi sua mãe, a professora Adélia Maria de França. Na casa dela, Cátia, desde cedo, entrou em contato com as ideias de Che Guevera, Josué de Castro, Dom Hélder Câmara e Francisco Julião. A professora, pernambucana de Aliança (PE), no entanto, nem sempre deixava que a filha se aproximasse dos artistas que viviam marcando presença no Mercado Central de João Pessoa, que ficava próximo à casa de dona Adélia, a primeira professora negra da história da Paraíba.
Foi na biblioteca particular de sua mãe, a afamada Biblioteca Coelho Lisboa – que tem esse nome em homenagem a um líder abolicionista paraibano – que Cátia começou a construir a sua poesia, inspirada em autores como Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo e João Cabral de Melo Neto. O rigor de sua mãe durou até que ela tivesse a segurança de que a filha estaria diplomada. Quando Cátia já era adulta, Adélia mandou-a para o Rio de Janeiro. Na capital fluminense, trabalhou como datilógrafa e participou de grupos de teatro subversivo.
Durante a repressão da ditadura, vivenciou a experiência de ser uma mulher negra, lésbica e nordestina na São Paulo dos anos 1970, sendo perseguida pela polícia política do DOI-CODI que, de acordo com ela, odiava nordestinos. Mas, assim como previra a sua mãe, que a mandara ao Rio justamente porque sabia que não iria conseguir impedir essa intensa relação, foi na música que Cátia de França encontrou a maneira mais encantadora de expressar a sua poesia.
Seus álbuns passeiam pela obra dos poetas que lia na casa de sua mãe, pela música eletrificada das guitarras dos Beatles, pelos ritmos que compõem o tecido da cultura nordestina, pelo swing do violão de Jorge Ben Jor e também pela psicodelia predominante na música dos anos 1970. Para além de uma referência estética e (re)criativa, a influência desta última, que marca toda uma geração de compositores e cantores nordestinos, era – para ela e para sua geração – quase como um antídoto, uma forma de lidar com o peso que vinha da sensibilidade, do entendimento e da reflexão crítica sobre as profundas violências pelas quais o Brasil passou. E das desigualdades que retalham o Brasil e o Nordeste por toda a nossa história.
Aos 76 anos, dos quais mais de 50 dedicados à sua arte, Cátia de França vem sendo reconhecida, mais recentemente, por uma nova geração e parte da crítica musical, que a coloca, com a justiça devida, no mesmo patamar que artistas como Alceu Valença, Elba Ramalho, Chico César, Amelinha, Bezerra da Silva e Zé Ramalho. Pela sua influência, talento, originalidade e inventividade que contribuíram para o desenvolvimento daquilo que se entende como a música do Nordeste e a música popular brasileira. Com a sensibilidade e a inteligência mais afiadas do que nunca, ela conversou com a Continente sobre política, música, teatro, literatura e a poesia de São José do Egito (PE), numa tarde de sábado de 2022.
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