Entrevista

“Eu sou aquilo que vivi, as camadas, os tropeços”

Aos 76 anos, dos quais meio século dedicado à música, artista paraibana fala da trajetória profissional e analisa suas influências e a relação com o Nordeste

TEXTO Antonio Lira

03 de Julho de 2023

A artista Cátia de França

A artista Cátia de França

Foto JOSÉ DE HOLANDA/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 271 | julho de 2023]

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No início de nossa entrevista, Cátia de França, que falava comigo por videochamada direto de sua casa na região serrana do Rio de Janeiro, me perguntou, logo de cara: “Qual a camisa que você veste?”. Estávamos em período eleitoral, ainda no final de 2022 e, como o assunto acabou surgindo em nossos primeiros contatos, ela queria saber qual era meu posicionamento político. Depois que eu confirmei que era de esquerda, ela brincou, dizendo que havia se levantado da cadeira, mas logo sentado novamente, ao saber da minha resposta. Em seguida, lamentou que colegas de sua geração estivessem apoiando a candidatura do então presidente que tentava se reeleger.

Para quem a conhece, talvez o relato acima não surpreenda. Afinal, durante toda a sua carreira de mais de 50 anos, Catarina Maria de França Carneiro nunca deixou de se posicionar em defesa daquilo que acreditava. Mesmo que, às vezes, tal posicionamento lhe tenha trazido custos. Sobre isso, Cátia, como ficou conhecida, conta que tem a certeza de que fez o certo, o que a faz dormir tranquila todas as noites.

Quem deu seu nome e seu apelido – que se transformaria em seu nome artístico – foi sua mãe, a professora Adélia Maria de França. Na casa dela, Cátia, desde cedo, entrou em contato com as ideias de Che Guevera, Josué de Castro, Dom Hélder Câmara e Francisco Julião. A professora, pernambucana de Aliança (PE), no entanto, nem sempre deixava que a filha se aproximasse dos artistas que viviam marcando presença no Mercado Central de João Pessoa, que ficava próximo à casa de dona Adélia, a primeira professora negra da história da Paraíba.

Foi na biblioteca particular de sua mãe, a afamada Biblioteca Coelho Lisboa – que tem esse nome em homenagem a um líder abolicionista paraibano – que Cátia começou a construir a sua poesia, inspirada em autores como Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo e João Cabral de Melo Neto. O rigor de sua mãe durou até que ela tivesse a segurança de que a filha estaria diplomada. Quando Cátia já era adulta, Adélia mandou-a para o Rio de Janeiro. Na capital fluminense, trabalhou como datilógrafa e participou de grupos de teatro subversivo.

Durante a repressão da ditadura, vivenciou a experiência de ser uma mulher negra, lésbica e nordestina na São Paulo dos anos 1970, sendo perseguida pela polícia política do DOI-CODI que, de acordo com ela, odiava nordestinos. Mas, assim como previra a sua mãe, que a mandara ao Rio justamente porque sabia que não iria conseguir impedir essa intensa relação, foi na música que Cátia de França encontrou a maneira mais encantadora de expressar a sua poesia.

Seus álbuns passeiam pela obra dos poetas que lia na casa de sua mãe, pela música eletrificada das guitarras dos Beatles, pelos ritmos que compõem o tecido da cultura nordestina, pelo swing do violão de Jorge Ben Jor e também pela psicodelia predominante na música dos anos 1970. Para além de uma referência estética e (re)criativa, a influência desta última, que marca toda uma geração de compositores e cantores nordestinos, era – para ela e para sua geração – quase como um antídoto, uma forma de lidar com o peso que vinha da sensibilidade, do entendimento e da reflexão crítica sobre as profundas violências pelas quais o Brasil passou. E das desigualdades que retalham o Brasil e o Nordeste por toda a nossa história.

Aos 76 anos, dos quais mais de 50 dedicados à sua arte, Cátia de França vem sendo reconhecida, mais recentemente, por uma nova geração e parte da crítica musical, que a coloca, com a justiça devida, no mesmo patamar que artistas como Alceu Valença, Elba Ramalho, Chico César, Amelinha, Bezerra da Silva e Zé Ramalho. Pela sua influência, talento, originalidade e inventividade que contribuíram para o desenvolvimento daquilo que se entende como a música do Nordeste e a música popular brasileira. Com a sensibilidade e a inteligência mais afiadas do que nunca, ela conversou com a Continente sobre política, música, teatro, literatura e a poesia de São José do Egito (PE), numa tarde de sábado de 2022.

CONTINENTE Para começar, Cátia, tem algo que você gostaria de falar para se apresentar ao leitor da Continente?
CÁTIA DE FRANÇA O povo pensa que meu nome é Cátia, mas não é, é Catarina. Sou filha única e é aquela coisa: minha mãe me chamava de “cristalzinho”. Mas de onde é que vem? Catarina é um nome forte, de várias rainhas. E aí ela me bota Cátia, porque é diminutivo do russo. Não entendi nada. Meu nome de documento mesmo é Catarina Maria de França Carneiro. França é de mamãe, Carneiro é do meu pai. Sou filha única. Filha da primeira negra educadora da Paraíba. Para a época dela, era bem fora do esquema. E ela me criou nessa história toda. Veio do interior de Pernambuco, de Aliança (PE), muito nova, e foi pro interior da Paraíba e fez a gestão todinha ligada à cultura. Passou por São João do Rio do Peixe, Pedra de Fogo, Guarabira, Itabaiana. E aí quando ela vem (para João Pessoa) fica na Rua da República. João Pessoa tem dois platôs. O platô chique eu não gosto. Mas a cidade baixa é como se fosse Salvador, na Bahia. Minha história é essa. Sou filha única, meu signo é aquário, nasci em 13 de fevereiro de 1947. Estou com 75 (hoje 76 anos) e nasci em pleno carnaval, então, é uma desculpa pra minha doidice (risos). Estava passando o bloco Zé Pereira e eu nascendo na Maternidade Frei Martinho nas Trincheiras, em João Pessoa. Pronto, acho que já dei o meu B. O. todo, né?

 
Alessandra Leão e Cátia de França em show no Sesc Pinheiros (SP), em março de 2023. Imagem: Renan Perobelli/Divulgação.

CONTINENTE Deu, sim! (risos) Partindo disso, você fala que sua mãe vem de Pernambuco e passa por várias cidades até chegar em João Pessoa e que você também saiu de João Pessoa e foi para Pernambuco, depois para o Rio de Janeiro. Eu vejo que, na sua música, na sua poesia, esses lugares vão aparecendo. Itabaiana, a Ponta do Seixas. Queria que você contasse um pouquinho como essas viagens e seu trânsito por essas cidades compõem a poesia das suas canções.

CÁTIA DE FRANÇA Olha, o ancoradouro disso tudo era a coisa que mamãe tinha com os livros. Mamãe tinha uma biblioteca que era superafamada. O nome da biblioteca dela era Coelho Lisboa. Então, faltava manteiga, mas tinha livros. Acho que o dinheiro dela, o salário de professora, ia todo pra essa história. Na nossa casa, tinha o canto sagrado, que era a biblioteca, e o outro, que era onde ficava meu piano. Então, fiquei mergulhada naquilo. Eu vi que o que dava consistência era isso, já que eu era urbana, não era do interior. Zé Ramalho, Elba Ramalho, Chico César, são todos do interior. Minha proximidade com o povo era porque a casa de mamãe era na rua que vai desaguar no mercado central. Eu tinha acesso ao povo de longe. Queria era conviver – como os meninos conviviam – com cantadores de coco, com as feiras, mas ela não deixava. Então, foram os livros que me deram isso. Para não parecer mentirosa, fazer uma música sem ter estado no local, comecei a fazer pesquisa. Era como se estivesse num “eterno vestibular”. Pegava os cadernos de escola, um lápis que desse pra pagar, decidia sobre o que ia ser a música e aí separava nome de homem, nome de mulher, nome de cachorro, situações, rios, lugares. A primeira vez que me debrucei (sobre uma obra) para compor foi a de um escritor paraibano, José Lins do Rego. Anos depois fiz um disco só sobre isso. Essa coisa que me torna eterna, que faz com que ninguém consiga dar uma rasteira em mim, é porque tudo meu é em cima de literatura. Minha inspiração vem daí. Foram poucas as vezes em que fiz baseada numa situação. Ponta do Seixas foi uma delas, porque não foi lido de livro. Foi em São Paulo, em 1975, na época dos anos de chumbo, a gente fazendo teatro subversivo, mas que, por fora, era como se fosse um cordel ingênuo. Elba Ramalho fazia parte, Madame Satã, Tonico Pereira – da Globo, d’A Grande Família – eu, Vital Farias, só músicos paraibanos. A polícia na época era a DOI-CODI e ela odiava nordestinos. Uma vez, terminaram pegando a gente na (Avenida) Brigadeiro Luís Antônio, onde era o teatro (em São Paulo). A gente dormia na parte de cima e embaixo era o teatro. Nessa época, aconteceu um incidente na Paraíba, e eu, com saudade, já que fazia muito tempo que não ia, fiz Ponta do Seixas. Que é uma praia e é uma das músicas que as pessoas exigem que esteja no repertório do show.

CONTINENTE Você falou da saudade. A saudade parece estar muito associada com a cultura e, sobretudo, a música nordestina. E essa experiência de saudade também é comum a muitos músicos do Nordeste, nesse processo de migração para o Sudeste. Mas queria lhe fazer uma provocação: como é que a gente faz pra lidar com tanta saudade sem correr atrás do passado?

CÁTIA DE FRANÇA Danou-se, rapaz! Isso aí é um mote pra fazer uma peleja (para um tempo e anota no papel) Rapaz… é impossível você arrancar, entende? Porque senão fica uma coisa sem substância, sem tutano. Eu sou aquilo que vivi, as camadas, os tropeços, as escolhas erradas. Tem mil coisas, não é de uma hora pra outra. Você não tem como ficar num pedestal e dizer “não passei por nenhuma fria”. Não. Eu cheguei para ser datilógrafa. Cheguei com uma carta de apresentação para uma grande emissora de TV do Rio de Janeiro. Tentaram me aproveitar, porque a carta era poderosa, ela respondia pelo setor Nordeste da grande empresa de televisão. Tentaram de todo jeito me botar no jornalismo, me botar em novela, na música, com o pai de Cazuza (João Araujo, da gravadora Som Livre), para gravar. Não conseguiram. O pessoal tinha um pensionato só de nordestinos – não tinham só paraibanos, não, tinha muita gente de Pernambuco – e me colocaram para ser datilógrafa. Fiquei três anos chegando às 8h30 e saindo às 17h30, fazendo datilografia. Na minha cabeça, eu não enlouqueci porque datilografia, naquele tempo, era percussão. Então eu fazia com a maior felicidade do mundo. Não tive curso. Minha mãe me deu um manual da “datilografia sem mestres”. Eu fui (para o Rio de Janeiro) para cantar, mas cheguei em 1972 e só fui gravar em 1979.

CONTINENTE Cátia, você faz parte de uma geração de músicos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Alceu Valença e muitos outros nordestinos que fizeram o movimento de entender o que estava acontecendo no rock e na música pop internacional e, especialmente, na psicodelia, juntando isso com essa nossa tradição regional. O que você acha que o Nordeste tem a ver, na poesia, com a psicodelia?

CÁTIA DE FRANÇA É como se fosse um chá de avelós, é para não enlouquecer. Porque a gente sabe que a seca é um negócio que poderia ser resolvido. O povo conseguiu transformar um deserto, lá em Israel, num oásis. É porque, aqui, eles querem que dê errado, para poder mentir e desviar dinheiro. (A psicodelia) foi um negócio para a gente não enlouquecer. E a gente é uma soma. Eu não acredito numa pessoa que ouviu esse tempo todinho só Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. A gente é uma soma de tudo, desce pela garganta abaixo. Agora tem que ter o senso de sobrevivência, pra não pirar de vez e separar o joio do trigo. Eu ouvia Jorge Ben, Gilberto Gil, assistia à Jovem Guarda, aos festivais da Record, Milton Nascimento, essa coisa toda. A gente ouvia junto. Zé Ramalho, na época, tinha uma banda imitando os Beatles. O Vital Farias não pode mentir, dizer que começou já ligado no esquema de Elomar, uma temática erudita, na praia de Ariano Suassuna. Não, ele tinha uma banda chamada Os Quatro Loucos, vestidos igual aos Beatles, cantando rock com guitarra. Eu não pude fazer isso, que nem a “turma dos cabeças coroadas” que eu chamo, porque mamãe não deixava. Mamãe não permitia que eu me misturasse. Então, era como se fosse assim um Triângulo das Bermudas, ou então uma divisória. Eu ficava olhando, seduzida, mas não ia cantar. Todo mundo morava na área de lá, onde havia casas, mansões, tocando e fazendo sucesso em matinês, tocando para a sociedade da sala. O lance é que eu não sabia ler partitura, minha história toda é de ouvido. Eu estudei música, piano, até os 15, mas odiava. Porque se tem uma coisa que não desce pela minha garganta é matemática.

CONTINENTE Que história é essa da “turma das cabeças coroadas”? Quem são essas pessoas?

CÁTIA DE FRANÇA Quem morava numa zona nobre, na praia. Quem é que ia morar na praia com o aluguel lá em cima, com aquelas casas, mansões? A minha casa era de minha mãe, mas era perto do mercado central. O cara que tocava na banda de Zé Ramalho tinha o baixo de Paul McCartney. Era Höfner, o nome desse baixo. Isso era com um salário de professora? Isso era com um salário de guarda de trânsito? (O pai de Cátia era guarda de trânsito). De jeito nenhum. Era isso. E tinha todo um lastro. Zé já tinha um clube, era como se fosse um culto da personalidade. Deus no céu e Zé Ramalho na terra. Pessoas fanáticas, de levar a mão atrás do palco para ele botar a mão na cabeça do menino. Na criança, para abençoar. Então tinha essa coisa, era tudo gente abastada, com grana.

CONTINENTE Você falou em Zé Ramalho. Quando ele foi pro Sudeste, ajudou na produção de discos de artistas do Nordeste, inclusive do seu 20 palavras ao redor do sol (1979). Como foi fazer um disco que, além da produção de Zé, tinha Bezerra da Silva, Sivuca, Dominguinhos, Amelinha, Elba Ramalho e Lulu Santos fazendo parte dele? Como é que foi entrar num estúdio com esse povo todo de uma vez? E como foi que vocês pensaram nos arranjos?

CÁTIA DE FRANÇA Isso aconteceu porque Zé, com Avôhai (1978), estourou. Zé estava no Brasil inteiro. Eram duas pessoas, era como se fosse uma máfia siciliana, eram dois padrinhos. Fagner – debaixo da asa dele a turma do Ceará, esse pessoal todo – e Zé Ramalho. Quem dava as cartas eram Fagner e Zé. E ele já estava me sondando, acho que Elba vinha conversando com ele e ele procurando ver o que eu andava fazendo, os shows que eu tinha. Eu cantava na noite, no Rio de Janeiro. De segunda a sexta era funcionária pública, mas no sábado e no domingo eu era artista. Cantando com meu violão, não precisava de ninguém. Ele já estava sabendo de mim. A tática dele foi me chamar para tocar sanfona, porque eu também toco sanfona, por causa do meu pai, que me deu não para tocar forró, para tocar tango. Tenho ela até hoje. Eu gosto, viro um personagem. Quando eu toco sanfona, fico pé no chão, fico bem nordestina. Eu já estava tocando com Zé, viajando pelo mundo afora de sanfoneira e percussionista. E, nessa vibe, já estava Bezerra da Silva tocando pandeiro, ele já estava no esquema. É que Zé tem um faro, uma espécie de uma paranoia, ele tem o senso de saber onde é que está o ouro, onde é que está o petróleo. Bezerra da Silva já fazia sucesso cantando as histórias dele, no subúrbio do Rio. Ele chama Bezerra para fazer esse “samba-canto” que é o nome que a gente deu, o apelido, a esse samba de escola de samba. Ele usava como coração da música Bicho de 7 cabeças, o coração da música era isso. No disco, ele coloca Bezerra pra tocar berimbau na música Sustenta a pisada, e ele, Zé, toca baixo. E chamaram Lulu Santos para fazer a guitarra em 20 palavras ao redor do sol. O que ele pedia, a gravadora dava. Eu gravei num estúdio na (Avenida) Gomes Freire, na Lapa (RJ). A gente entrava às 9h30 e não tinha hora para sair. Era uma festa dos melhores sanfoneiros da época: Severo, Dominguinhos, Sivuca. Os percussionistas… Chico Batera, Elber Bedaque. Elba e Amelinha fazendo vocal para mim. E por aí foi, tinha muita gente. Imagina, eu sou uma pessoa extremamente tímida. De repente, entra num esquema e até Geraldinho (Azevedo) aparecia lá também. Tinha toda uma coisa, devido a ele estar vendendo lá em cima, astronomicamente, o Avôhai disparado no Brasil inteiro. A gente nem sabe quanto foi exatamente em termos de grana viva. Sobre os arranjos, ele chamou Paulo Machado, que é parceiro de Ney Matogrosso naquela música América do Sul. Ele já era arranjador de Marina, a roqueira Marina Lima, e de Amelinha. Zé ia levando a carreira dele, a minha, que estava debutando no mundo da música, a de Amélia, que era esposa dele e até na de Elba ele dava pitaco. Ele chama Paulo, e Paulo já estava na esfera, era queridinho dos jornais no cenário carioca. Ele que veio com essa coisa das cordas, do coro. Agora, as minhas músicas já nascem com uma placenta que tem a minha digital. Elas já nascem com introdução, que já está na minha cabeça, é como se fosse um riff. Uma coisa que a gente incentiva bem muito dentro de uma música e aquilo se transforma e as pessoas identificam, fecham os olhos e já sabem do que se trata.

CONTINENTE Já ouvi você falando isso outras vezes e, como a Continente é uma revista pernambucana, não tenho como deixar de perguntar: como é a sua relação com Pernambuco? E qual a influência dos músicos e dos poetas de Pernambuco na sua vida, na sua música e na sua poesia?

CÁTIA DE FRANÇA Eu estou impregnada de Pernambuco. Morei aí de 1990 a 1996, mas antes, já ia. Eu cantava na Conde da Boa Vista, no Acapulco, cantava naqueles inferninhos todinhos. E aí comecei a andar com gente do interior. Na Avenida Caxangá, tinha um lugar onde iam os declamadores de São José do Egito. Tinha a família Marinho. Eu comecei a andar com os declamadores de São José do Egito. Bia Marinho, Zeto. E, até hoje, frequento essas festas que eles dão, que estão no calendário cultural do interior de Pernambuco, em homenagem ao patriarca deles. Vai todo mundo, uma vez estavam até Antonio Nóbrega, Braulio Tavares, num encontro de três dias, sexta, sábado e domingo, como se fosse um Woodstock, a céu aberto. Eu sou do tempo que Miguel, filho de Bia, passava com um velocípede por cima dos meus pés. Menininho, criança. Hoje tudinho está grande, Greg, Antonio e Miguel.

CONTINENTE Nessa época em que você morou no Recife estava surgindo o movimento Manguebeat, que está fazendo 30 anos. Você lembra de ter vivido esse momento?

CÁTIA DE FRANÇA Eu estava onde latejava isso. Essa coisa do mangue, dos caranguejos, de misturar maracatu com linguajar de rock, a história da psicodelia, que você fala. A coisa estava pulsando. E, depois, eu ouço de um cara, que falou “quando você fez 20 palavras ao redor do sol, bebendo nas águas de João Cabral, já era um fiapo do que Chico Science faria mais na frente.” Mas eu, dentro da minha timidez, não me coloco nesse lugar, não gosto de prepotência. Não sei se foi um anjo ou foi um demônio que disse pra mim. Só que na minha equipe não tinha ninguém com essa genialidade de descobrir isso e botar isso em evidência na mídia. E fui chamada para fazer essa maravilha que é essa leitura de Luiz Gonzaga por Jorge Du Peixe, O fole roncou. Eu via Luiz Gonzaga cantando com Elba e me emocionava e, de repente, estava eu, na parte da frente, em pleno palco, com o cara. E pude ver, na Virada Cultural de São Paulo, os 30 anos do Manguebeat. Lá estavam todos eles, Otto, a turma toda. Mas tem que ter um cérebro. Eu sou somente aquela que compõe, sou muito lúdica, mas você tem que ter um pé nos negócios. Anitta, a cantora, aprendeu a falar inglês, espanhol, e está com a carreira lá fora. Zé Ramalho fez isso, ele botava um pessoal filmando quem entrava no camarim para cumprimentar ele. Ele estava cantando, no Teatro do Parque, e tinha um homem fazendo isso, e a gente nem estava nesse advento de WhatsApp, de internet doida, de 5G. E ele já estava pensando. Eu sempre fui meia órfã. Não tinha um advogado comigo, para num momento em que quebrassem um contrato eu ganhar uma grana boa, não tinha. Quebraram meu contrato para fazer o segundo disco pela Epic, o Estilhaços (1980), eles quebraram. Tinham aquelas letrinhas miúdas que diziam que, se alguém não expusesse dizendo que não vai querer mais fazer, ele era renovado automaticamente. Se não quisessem fazer, eu poderia ter recebido uma nota preta, voltado pra Pernambuco, comprado uma terrinha, uns bois, e me aquietado. Não! Eu não tinha advogado, não tinha produtor de respeito. Agora eu tenho, é uma mulher que está cuidando e ela é virada no cão mesmo.

   
Três discos que fazem parte de sua discografia, lançados em 1979, 1980 e 2014, respectivamente. Imagem: Reprodução.

CONTINENTE Chico Science e o Manguebeat falavam de Josué de Castro. Acho que li em algum lugar você dizendo uma vez que Josué era o livro de cabeceira da sua mãe...

CÁTIA DE FRANÇA Dentro de casa era Josué de Castro, um pôster de Dom Helder e de Che Guevara. E não tirava, não tinha essa coisa de “tira, tira, tira, vem aí o camburão, esconde”. Porque ninguém imaginava. Ela era negra, bem pequena, se vestia muito bem. Meu pai deixa a Paraíba e vai embora para Pernambuco, eu recém-nascida. Ele queria era ficar ali na Rua da Aurora, no Buraco de Otília, bebendo e fazendo mil coisas, era boemia que ele queria. Então, ninguém imaginava que, ali dentro, na casa da minha mãe, tinha uma célula pulsante falando em (Francisco) Julião, das cartilhas da zona rural de Pernambuco. Agora, ela não dizia para eu ser de direita ou de esquerda. Ela me impregnava de livros, de situações.

CONTINENTE Você se considera marxista?

CÁTIA DE FRANÇA Vixe Maria, não fale difícil não, que danou-se! (risos). Mas eu estava pegando hoje num livro, não sei onde botei, aqui, mas estava apurando, porque eu digo: “ele vai fazer pergunta difícil para mim e eu vou ficar de calças curtas”. Aqui é difícil, porque eu moro sozinha com vários gatos, então peraí, deixa ver aqui... (procura). Achei! Tem assim: “Na história, como na natureza, a podridão é o laboratório da vida”. E tem o nome desse homem aqui, esse tal de Karl Marx. Eu só sei que eu sei onde dói a história. Eu sei o que é passar por dificuldade. Eu sei, eu convivo, eu procuro, tenho dentro de mim uma coisa latente que não me permite fazer vista grossa. Essa doidice de Vital (Farias) estar elogiando o “capitão”, não é possível. Como é que se explica Sérgio Reis ser de direita? Como é que se explica Elomar nessa cartilha do ódio? Fagner também. Para você ver como esse vírus é o cão. Todo mundo ficou com medo do coronavírus. E claro, temos que estar alertas a ele. Eu tomei quatro doses da vacina, tenho mais de 70 anos e o que vier estou pronta. Mas o maior mal é esse. Como é que a cabeça de um cara que fez Saga da Amazônia diz: “ah, eu vou trabalhar pro capitão”? Esse aí é um vírus perigoso, você nem sente. Quando vê, está uma marionete.

CONTINENTE Uma das principais inspirações na sua obra é a poesia de João Cabral de Melo Neto. Como é que essa influência chegou para você?

CÁTIA DE FRANÇA É a minha petulância de me meter nas coisas de João Cabral. Um cara que nunca ria. Também pudera, com uma enxaqueca crônica, você não consegue rir nunca. Eu peguei a revista piauí, de São Paulo, e ele aparece rindo. Eu queria conseguir essa revista para ampliar a foto e botar na parede de casa, ele rindo. Agora, quem foi que me deu o alvará de transitar nos caminhos cabralinos e me dar bem? Foi por causa da filha dele. Foi nas filmagens… a gente estava fazendo Morte e vida Severina (1977) no Cassino da Urca, com Zelito (Viana), o irmão de Chico Anysio. E isso foi coisa de (Luiz) Mendonça. Ele não tirou ninguém, pegou todo o elenco e levou para a Urca, para a gente fazer Morte e vida Severina. A filha de João Cabral era continuísta. E o genro de Cabral, Régis Monteiro, era quem fazia o cenário. Eu vejo aquele menino fazendo papel de Jesus Cristo e fico: “Rapaz, um calor da moléstia, de quem é esse menino aqui, dentro dessa manjedoura?” Eu nem sabia que era o neto de João Cabral! “Fala baixo, que é o filho da mulher aqui!”, que era Inez Cabral de Melo. Então, ela me viu cantando Kukukaya no set, numa hora de descanso, beber uma cerveja, fumar uma história, um pouco, e ela me viu e disse: “Sou cineasta e quero que você faça as músicas do meu filme.” E aí foi um salto para eu chegar perto de João Cabral. Eu participei, lá no Aterro do Flamengo, de um almoço na casa deles. Quem mandava era ela, a mulher dele. Ele era capricorniano, mas muito encolhidinho, num momento dele de fragilidade. Mas ele era um gavião. Não é à toa que, no tempo em que foi embaixador, ele frequentava aquela coisa passional, daquelas mulheres da dança espanhola. Mas foi Inez que me botou no colo do homem. Ele muito calado, não vinha com “salamaleque” nenhum para a minha direção. Mas eu ganhei o alvará. O procurador dele me autorizou a usar o nome 20 palavras ao redor do sol (do poema Graciliano Ramos, escrito por João Cabral de Melo Neto).

CONTINENTE Zé Ramalho foi produtor do seu primeiro disco que leva este nome, 20 palavras ao redor do Sol (1979), mas você rompeu com ele antes de lançar o segundo disco, Estilhaços (1980). Como foi esse processo? Você acha que esse rompimento prejudicou sua carreira de alguma forma?

CÁTIA DE FRANÇA Rapaz, vai mexer numa casa de marimbondo... Mas vou lhe responder. Zé Ramalho produziu 20 palavras e a tendência era ele fazer Estilhaços. Só que eu já estava muito enfolhada com a filha de João Cabral. Ela tinha uma verve de artista plástica e me disse como seria a capa de Estilhaços. Só que eu não sabia que ela e Zé tinham um entrevero. Teve esse entrevero e parece que o término não desaguou de maneira amena. Então, ficou numa zona de guerra. E Zé Ramalho disse: “Eu não quero ela. Eu não quero ela fazendo a capa, não”. E eu fiquei com quem? Fiquei com Inez Cabral. Eu ia bater de frente? No duro, o procurador ia tirar, confiscar o nome do disco. E Zé não me perdoou, né? Foi ele quem me deu, me fez entrar no mundo fonográfico pela porta da frente, com o que havia de melhor na época. Os melhores percussionistas, os melhores sanfoneiros. Um bando de mulheres famosas fazendo vocal pra mim. Lizzie Bravo, que Deus lhe dê o céu, mulher de () Rodrix. A guitarrista de Rita Lee, Lucinha Turnbull, fazia vocal no meu disco. Essa é a razão da separação minha e de Zé. Foi isso, ele não me perdoou. E também teve uma coisa: Joanna queria cantar Coito das Araras, que é outra música minha icônica. Zé já tinha botado Amélia para cantar, foi um sucesso no disco Frevo mulher (1979). Como é que eu ia? Briguei com Joanna. Consequentemente, com todo o núcleo: Sandra de Sá, Fafy Siqueira, e por aí vai. Briguei com todo esse povo quando eu disse não a Joanna porque Coito das Araras, a música, já estava com Amélia. Tem algumas coisas que você faz que pelo resto da vida tem que pagar o preço. Mas, até hoje, eu consigo dormir. Consigo dormir, não me arrependo, não, Deus me perdoe. Porque imagina onde eu estaria? Onde eu estaria se Zé tivesse produzido Estilhaços? Eu não teria passado por “hiatos”. Teve um momento em que não gravei nada. Só fui gravar CD lá na frente, que foi o Avatar (2014), que era metade de inéditas e metade de meus sucessos. Eu teria dado continuidade a esse caminho de ouro do 20 palavras. Agora eu não sei se ele teria chamado Clementina de Jesus para cantar comigo. Eu fiquei órfã. Não tive produtor de peso, com sangue nos olhos. Quem salvou a lavoura foi Paulo Machado, arranjador dos discos de Zé, Amélia e Elba Ramalho.

CONTINENTE Para terminar: tem muita gente jovem que escuta a sua música. Quem nasceu a partir dos anos 1990 se acostumou com um Brasil que só fazia melhorar. Essa crise, que ainda estamos vivendo, já aconteceu em outros momentos da nossa história, mas foi a primeira vez para a minha geração. O que você teria a dizer para esses seus fãs jovens, que estão passando por tempos tão difíceis, e que escutam bastante você?

CÁTIA DE FRANÇA Eu aproveito uma fala de um vídeo que Lula fez na campanha. Esses filmes com um depoimento, tinha ele dizendo: “É você quem vai mudar. Agora é com você!” É a juventude, são vocês. Pela sua voz, eu dava uma idade menor, para você. Você tem 30 e poucos?

CONTINENTE 29…

CÁTIA DE FRANÇA Então é isso! É 29, é isso mesmo. Você tem uma voz que tem uma urgência. E que maravilha você ser jornalista! E que maravilha ter uma revista que é aquela que cutuca, aquela que diz “olha, você não brinque com o avelós, não, que você cega de um olho.” É com essa determinação. É com pessoas assim, da sua idade e mais jovens, como esses que estão cantando junto comigo. Com Ensacado que tem um apelo pra não desistir. A letra de Sergio Natureza diz isso. “Esquente essa sopa fria, mas não desista!” Quem vai fazer a história é esse voto, com essa coragem, essa pujança.

ANTONIO LIRA, jornalista, músico, pesquisador, mestre em Comunicação e doutorando pelo PPGCOM/UFPE.

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