Perfil

Rainhas pioneiras

No início da década de 1980, surgiu no Recife uma geração de artistas queer, como Odilex, Sharlene Esse, Raquel Simpson e Márcia Vogue, que foram abrindo os caminhos para a cena contemporânea

TEXTO Cleodon Coelho

03 de Julho de 2023

Imagem ARTE DE MATHEUS MELO SOBRE FOTOS DE HANNAH CARVALHO

[conteúdo na íntegra | ed. 271 | julho de 2023]

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Na Rua do Riachuelo, 309, quase na esquina com Rua do Hospício, no centro do Recife, existiu uma espécie de templo, onde os hinos da disco music eram cantados com louvor pelos frequentadores, criando uma atmosfera escapista para driblar o clima obscuro imposto pela ditadura. Era a Misty, que se apresentou à cidade em 1979 como um café-concerto, mas que logo aceitou sua sina de boate. Há quem pense que a palavra signifique em bom português alguma derivação de mistura. O que teria tudo a ver, diga-se, pois a casa juntava numa mesma pista o público gay, socialites e intelectuais. A tradução literal, entretanto, é enevoado. Em um ambiente como o da segunda metade dos anos 1970, não poderia haver metáfora melhor.

Mesmo em tempos de repressão, a noite do Recife sempre foi bastante agitada. Quem é de fato um bom pernambucano, nunca deixou o medo tomar conta de tudo. Mas coube à boate, com sua vocação hedonista, o papel de afastar – ou, pelo menos, diminuir – o ar de marginalidade que cercava as opções de diversão voltadas para o público LGBTQIAP+. É importante lembrar que essa sigla, hoje incorporada ao nosso vocabulário, nem sonhava em existir. Muito menos a já esquecida GLS, que na década de 1990 reduziu todo um universo a gays, lésbicas e simpatizantes. Na época em que a Misty entrou em cena, termos pejorativos como baitola, pederasta e boiola ainda eram falados sem grandes pudores.

Se, por um lado, o mítico Vivencial Diversiones – trupe teatral que revolucionou a cena pernambucana enfrentando a repressão com toda transgressão possível – seguia resistindo na sede do Complexo de Salgadinho, em Olinda, muito do que o grupo trouxe para os palcos foi reprocessado pela boate, que oferecia à freguesia novas possibilidades artísticas durante os momentos de respiro dos discotecários, como eram chamados os DJs. Por alguns preciosos minutos, esquetes de teatro e dublagens transformavam o espaço em um cabaré burlesco, com direito a cenário e iluminação desenvolvidos especialmente para cada número.

A imprensa local foi testemunha importante da movimentação que o surgimento da casa provocou. Na edição de 21 de maio de 1979, o Diario de Pernambuco registrou, naquela linha politicamente nada correta que então imperava: “No pequeno espaço do salão principal da Misty, mil bonecas, amigos de bonecas, personalidades colunáveis da sociedade recifense, curiosos, aprendizes e estagiários do gay power comprimiam-se para ver de perto, quase uma intimidade, o luxo e o requinte dos mais famosos travestis da paróquia.” Sim, naquela época as estrelas das noites eram “os” travestis, como denominavam as mulheres trans, e atores transformistas, os que se “transformavam” em mulher apenas para o show.


No Espaço Mangueirão, nos anos 1980, Odilex comandava o concurso Gatesão. Imagem: Acervo pessoal Odilex/Cortesia.

A névoa até tentava encobrir aqueles tempos difíceis, mas só da calçada da Riachuelo para fora. Não muito tempo depois, em 1982, a boate mudou de endereço, mas o poder de lançar tendências se manteve. Instalou-se na Rua das Ninfas, 125, também na Boa Vista, no mesmo casarão que nos anos 1990 sediou a Doktor Froid e, a partir de 2002, o Club Metrópole. Claro que, assim como a Misty, outros espaços tiveram relevância fundamental para o fortalecimento da cultura gay na cidade, como Opera Bufo (uma extensão do Vivencial), Gosto Caseiro, Mangueirão, Kibe Lanches, Stock e Vogue.

“Uma das grandes ênfases dos estudos que envolvem a noite acaba caindo sobre o universo LGBTQIAP+, que é, na verdade, um epicentro de informação, tendo a pista de dança como um lugar de congregação e também de fuga de uma vida muitas vezes opressiva, de problemas familiares”, situa o professor e pesquisador da UFPE Thiago Soares, doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea. “Na medida em que a festa, para essa cultura, é lugar de organização e de encontro, ela também é local de política. Pensando não só como macropolítica, mas na política como a arte de se aproximar da diferença.”

No meio de toda essa efervescência, surgiu uma geração privilegiada de artistas queer. A Continente reuniu quatro deles – Odilex, Sharlene Esse, Raquel Simpson e Márcia Vogue – para relembrar como esse caminho foi pavimentado. Afinal, são nomes que começaram nos anos de chumbo, com o medo de apanhar da polícia sempre pairando, viveram os tempos de abertura, viram o prazer se transformar em risco com o surgimento (e a desinformação em torno) da Aids, mas sobretudo acompanharam da coxia todas as mudanças de comportamento em torno de uma cena hoje assimilada pelo mainstream. O sucesso inconteste das cantoras Pabllo Vittar e Gloria Groove é a prova disso. E se algum fundamentalista achar que, em 2023, ainda estão ferindo “os bons costumes”, ninguém se cala mais. “Fomos nós que escancaramos essas portas”, brada Odilex. As redes sociais só amplificaram a luta pelo respeito.


Imagem: Acervo pessoal Odilex/Cortesia.


Foi por insistência de amigos que Odilex começou a “incorporar” a diva Maria Bethânia, até hoje o maior sucesso de sua trajetória como ator transformista. Imagem: Acervo pessoal Odilex/Cortesia.

ODILEX

Nascido e criado no Morro da Conceição, Odimir Félix era um adolescente de 17 anos quando entrou pela primeira vez na Misty. Um amigo mais velho e muito bem enturmado foi o responsável pela carteirada que levou aquele menor de idade ao “novo mundo”. E o impacto segue nítido em sua memória: “Mesmo sabendo da minha sexualidade, foi quase assustador encontrar tanta gente igual a mim no mesmo espaço”, recorda ele, que se identifica como um homem gay e garante ter recebido acolhimento da sua família desde sempre. “Lá em casa somos seis irmãos, sendo cinco homens e uma mulher. E nossos pais nos ensinaram a respeitar as opiniões e as escolhas de cada um.”

Quando conheceu a noite recifense, Odimir já fazia dança. Seduzido pelos números que via, decidiu trocar de lugar. Queria ser visto. “Eu era, e sou até hoje, apaixonado pelo filme Hair. Criei então um número baseado na música Aquarius e me aventurei. Comecei fazendo o que chamavam de ‘andrógino’, com uma roupa diferenciada. Só mais tarde é que passei a me apresentar como mulher”, recorda. O musical de Miloš Forman, um sucesso estrondoso no Recife, mais do que em qualquer outra cidade do país, permanecendo 22 semanas em cartaz no mesmo Cinema Veneza, bem perto da Misty, acabou marcando o nascimento de Odilex. “Tenho muito orgulho de poder dizer que, já na primeira vez em que subi em um palco, fui ovacionado. Isso me instigou a continuar. Encontrei uma forma de me expressar e fui bolando novas coreografias”, conta.

O grande salto, no entanto, veio em meados dos anos 1980. “Desde cedo, os amigos diziam que eu era parecido com Maria Bethânia e que eu poderia investir nessa semelhança. Comecei a estudar sua maneira de se movimentar e de interpretar e percebi que tinha tudo a ver. Rapidamente, virou um sucesso”, situa. Um fato curioso acabou fortalecendo a performance. Por conta de uma confusão durante a temporada da turnê de Álibi no Teatro de Santa Isabel, em 1978, a irmã de Caetano Veloso passou nada menos que 17 anos sem pisar no Recife, cidade que ela cantou em músicas como Festa (“Belo é o Recife pegando fogo na pisada do maracatu”) e Frevo Nº 2 do Recife (“Quando eu me lembro o Recife está longe, a saudade é tão grande que eu até me embaraço”). E Odilex ajudou a amenizar essa saudade.

Foi assim que, em 1993, em meio à longa ausência de Bethânia, o funcionário do Tribunal Regional Eleitoral Eduardo Japiassu, fã ardoroso da baiana, ganhou de presente dos amigos, em seu aniversário de 28 anos, um show exclusivo de... Odilex. “Foi uma noite muito especial. A festa aconteceu dentro de um apartamento duplex. Em uma determinada hora, desce aquela figura longilínea pelas escadas, cheia de pulseiras, cantando Reconvexo. Eles prepararam tudo tão bem que nem o vi chegar. Chorei de tanta felicidade”, recorda ele, hoje também ator e cantor. Dois anos depois, quando finalmente os pés descalços da abelha rainha voltaram a pisar os nossos palcos, Eduardo – junto a outro amigo, o produtor Antonio Guido – comprou um ingresso para que o transformista pernambucano realizasse o sonho de ver a musa ao vivo. “Foi uma maneira que encontrei de agradecer pela emoção que ele havia me proporcionado”, resume.

Para o presidente do fã-clube Grito de Alerta, Carlos Albuquerque, um dos pontos-chave para que Odilex garanta o interesse do público em torno de seu trabalho é que ele não ficou preso a um recorte específico da artista, ou – como as novas divas gostam de pontuar – a uma determinada era. “Ele mantém a coerência com a força dramática da Bethânia dos dias atuais. É muito observador e detalhista ao reproduzir seu gestual no palco”, afirma Carlos.

Foi esse detalhismo que o público de todo o Brasil comprovou em agosto de 2022, quando Odilex participou do quadro Caldeirola, no Caldeirão com Mion, apresentado por Marcos Mion na TV Globo. “Fui encontrado por um produtor de conteúdo do programa através do Instagram. Primeiro achei que fosse pegadinha, mas depois vi que era sério, com tanto diretor e figurinista me ligando para combinar a participação. Fui tratado com carinho e profissionalismo extremos”, conta. Só houve um problema: por contrato, Odilex não podia falar ou divulgar nada a respeito de sua aparição. E entre a gravação e a data de exibição, a angústia para manter o silêncio foi grande. “Foram mais de 20 dias calado. Mas valeu muito a pena. Até hoje, tantos meses depois, ainda recebo parabéns”, revela. Para quem já conhecia o perfeccionismo do ator – ou, como disse Mion, os detalhes “bethanísticos” de seu trabalho –, os aplausos são mais do que merecidos.

SHARLENE ESSE

Se Maria Bethânia virou o carro-chefe de Odilex, foi Gal Costa, a outra doce bárbara da Bahia, quem norteou a vida de Sharlene Esse. Natural de Bom Conselho, a cerca de 280 quilômetros do Recife, o menino José Antônio Vieira de Brito viveu uma infância pacata no interior. “Sempre tive trejeitos femininos. Aos 12 anos, percebi que o que eu sentia pelas coisas não era ‘normal’, pois gostava de brincar de boneca, de pegar o batom da minha mãe para passar na boca”, relembra. “Nessa idade, a sexualidade ficou mais aflorada, fui deixando o cabelo crescer, passei a usar roupas mais curtinhas.” A família também serviu como um laço de apoio. “Mesmo sendo ‘diferente’, jamais senti qualquer tipo de rejeição dentro de casa. Me via fortalecido justamente por tê-los do meu lado, ao contrário de algumas colegas que sofreram bastante e até foram expulsas.” José Antônio só deixou a cidade natal porque precisava terminar os estudos no Recife.


No começo da carreira, Sharlene dublava divas internacionais como Donna Summer, Diana Ross e Shirley Bassey. Imagem: Acervo pessoal Sharlene Esse/Cortesia.

Na capital, o marasmo foi trocado pela agitação. Encantou-se pelo mundo do teatro, através do Vivencial, e pela vida noturna. O melhor de tudo: pôde juntar essas duas paixões se lançando como ator transformista. Na Misty, era apresentado como Fernanda, uma homenagem à personagem de Lucélia Santos na novela Locomotivas. Foi Múcio Catão, um dos grandes maquiadores em todos os tempos e figura indispensável nos desfiles de fantasias de luxo da cidade, o responsável pelo nascimento de Sharlene, em 1981. “Ele sempre foi um criador e transformava as pessoas em personagens. Quando a gente começou a trabalhar, eu fazia um número de Donna Summer. Certo dia, enquanto me preparava, Múcio disse: ‘Seu nome artístico não é o de uma estrela. Tem que ser algo mais extravagante’. E contou que havia conhecido uma cantora americana chamada Charlene. ‘Esse, sim, parece com você’”, rememora. Fernanda saiu de cena para dar lugar a Sharlene (com S), que primeiro ganhou como sobrenome Summer e, mais tarde, finalmente Esse.


Imagem: Acervo pessoal Sharlene Esse/Cortesia.


Há quatro décadas, ela interpreta Gal Costa pelos palcos do Brasil. Imagem: Hannah Carvalho.

O maquiador teve outro papel fundamental na carreira da pupila, quando sentiu que ela estava se repetindo e precisava inovar. “Meus números variavam entre Donna Summer, Diana Ross e Shirley Bassey. Não sabia falar inglês, mas metia o carão e arrasava nas dublagens. Eu estava fazendo muito sucesso, corria de uma boate para outra, tinha cenários e figurinos especiais, mas um dia ele me aconselhou a deixar as gringas um pouco de lado para criar uma coisa brasileira”, revela. “Foi praticamente uma ordem: ‘Faça Gal Costa’. No mesmo instante, me mandou decorar a letra de Índia, que era bem dramática, e garantiu que cuidaria do resto. No dia da estreia do novo número, quando me olhei no espelho, fiquei arrepiada: meu rosto tinha se transformado no da Gal.”

Infelizmente, o padrinho não viveu o suficiente para ver sua discípula dar um passo importantíssimo. Não na condição de artista, mas como cidadã: o de se reconhecer como mulher trans e trocar sua documentação, algo concretizado apenas enquanto essa reportagem estava sendo produzida. Mas acompanhou o frisson que Sharlene causava quando entrava em cena, reproduzindo as corridinhas com os braços levantados e o jeito de revirar os olhos da baiana, sempre ao som de hits poderosos como Festa do interior ou Balancê. Múcio faleceu em 1985, no mesmo dia em que completava 62 anos. A sua perda teve um impacto avassalador na vida de Sharlene, sentimento que se repetiu há pouco tempo, em novembro de 2022, com o choque da partida de sua grande diva. “Nessas duas vezes, perdi meu chão. Múcio foi o meu mentor. Me deu a mão e desenhou meus caminhos. E o que falar de Gal? Há quatro décadas eu dedico minha arte a ela”, emociona-se.

A artista pernambucana esteve frente a frente com a cantora pelos camarins da vida, mas sempre se comportou de forma reverente. “Ela não gostava de muito fuzuê, mantinha um certo distanciamento, e eu fazia questão de respeitar isso. Então chegava, cumprimentava e saía”, revela. O que Gal não sonhava era que, nessas horas, não estava diante apenas de uma fã, mas – também – de uma colega de profissão. Durante a pandemia, Sharlene deixou as dublagens de lado para mostrar em público o que quase ninguém conhecia: sua própria voz. A convite do cantor Almério, ela integrou com outras duas artistas trans, Renna Costa e Sophia William, o espetáculo Almério & Elas. “Eu não costumo recusar desafios”, avisa. “Sharlene é uma força da natureza, uma artista imensa. É uma honra pisar o mesmo espaço com alguém que traz em si tanta história”, festeja o cantor.

A primeira apresentação aconteceu online, mas no ano passado o show ganhou plateia presencial no Teatro do Parque. Coube a Sharlene um dos números mais emocionantes, não por acaso aplaudido de pé: a interpretação de Balada de Gisberta, do português Pedro Abrunhosa, sobre uma transexual brasileira que vivia na cidade do Porto e que foi brutalmente torturada e assassinada por 14 menores de idade, crime que chocou o mundo em 2006, com detalhes tenebrosos. A pernambucana conviveu com muitas Gisbertas ao longo da vida e conhece bem aquela dor. “Eu não sei se a noite me leva, eu não ouço o meu grito na treva, o fim quer me buscar”, dizem os desconcertantes versos. Sharlene encarou essa balada com coragem e entrega absolutas. Gal Costa se orgulharia.

RAQUEL SIMPSON

Há quem diga que, no Recife, a terra do boi voador, tudo é possível. Quem via a estonteante Raquel Simpson dublar o hit I am what I am, de Gloria Gaynor, em palcos como o da Misty, não imaginava que na manhã do dia seguinte ela estaria trabalhando como atendente em uma farmácia e, no final da tarde, ainda viraria o palhaço Cebolinha, animando festas de aniversário. Se fosse uma personagem das tresloucadas tramas de Gloria Perez, qualquer pessoa de bom senso acharia que era apenas mais uma invenção insana da novelista.

Raquel Simpson venceu a categoria originalidade, no Bal Masqué, com a fantasia Rainha Pompadour, produzida com papel de beijo. Imagem: Acervo pessoal Raquel Simpson/Cortesia.


Como o palhaço Cebolinha, animou muitas festas infantis. Imagem: Acervo pessoal Raquel Simpson/Cortesia.

Quando menino, José Pinto Cordeiro acostumou-se a ouvir na rua: “Que menina linda!” Com os cabelos escorridos na altura dos ombros, seus traços femininos acabavam acentuados. A mãe corrigia: “É um rapazinho.” O bullying, palavra então ainda desconhecida, mas cujo efeito intimidador sempre existiu, corria solto na escola. “Eu só gostava de ficar com as meninas e, por conta disso, era muito xingado. Para suportar todos esses anos, foi um sacrifício enorme”, lamenta. “Acredito que cada pessoa vem com um carma na vida. E o meu foi passar por isso.” Em casa, preferia brincar de cozinhar ou costurar roupas para os bonecos a jogar bola. A mãe terminou levando o garoto para uma psicóloga, a fim de descobrir o que estava “errado”.

Não havia nada de errado, claro, e José entrou na adolescência com a certeza de que um dia se tornaria mulher. Perto de completar 20 anos, conheceu o Vivencial Diversiones, onde começou a se transformar. “Foi Beto Diniz, cenógrafo do grupo, quem sugeriu que assinasse Raquel. Eu já achava a Raquel Welch linda, e falei: ‘Então vou ser a Welch brasileira’. Ele logo emendou: ‘De jeito nenhum, você vai ser única: Raquel Simpson’. E assim eu fui batizada”, recorda ela.

A modificação corporal aconteceu aos poucos, à medida em que conseguia juntar um dinheirinho. “Fiz muito show fora do Brasil para poder ser valorizada”, afirma ela, que tomou hormônio, aplicou silicone nos seios e depois no quadril, para formar o desenho de um “violão”, e deixou o cabelo crescer até o meio das costas, cacheado e volumoso. Tanta feminilidade a levou para outro tipo de palco. No lugar da Misty e do Opera Bufo, Raquel foi se apresentar em cabarés como Centauru’s e Sul Drinks. “Eram casas de prostituição em que as meninas iam ganhar a vida, mas que mantinham shows para movimentar o bar. Eu entrava no comecinho da madrugada para fazer dublagens e, depois, um striptease. Eu tirava tudo, ficava só com o Emplastro Sabiá escondendo meu órgão. Com a iluminação mais suave, todo mundo achava que eu era operada”, diverte-se. “Os homens piravam.”


Rita Lee ainda estava viva quando Raquel a escolheu como nova homenageada em seu show. Imagem: Hannah Carvalho.

Toda essa exuberância pôde ser comprovada de perto por Silvio Santos em seu programa dominical no SBT, no começo dos anos 1990. A participação, inclusive, pode ser encontrada no YouTube. O apresentador, com aquele jeito bem peculiar, fica impressionado com a beleza da convidada, fazendo perguntas do tipo: “O cabelo é seu mesmo?”, “Jaqueta nos dentes?” e “O busto é enchimento?”. Sem se intimidar, Raquel provoca o homem do baú: “Pode pegar!” Carisma e simpatia de sobra garantiram instantânea fama nacional. Virou estrela de um filme de sexo explícito, da produtora As Brasileirinhas, rodado no litoral pernambucano com o sugestivo título de Nua em Calhetas.

E onde entra Cebolinha? “Eu precisava partir para outra área para reforçar o orçamento. Prendi o cabelo, comecei a pintar o rosto de palhaço e vi que tinha jeito”, conta. A descontração e o cuidado com as crianças foram conquistando os pais. Logo, a sua agenda estava dividida em duas partes: uma para Raquel e outra para Cebolinha. O show foi crescendo e passou a incluir números de mágica e personagens como a Pantera Cor-de-Rosa e os da Turma do Mickey. Transformou-se em uma empreendedora. “Fui eu quem animou a festa de um ano de João Campos, o atual prefeito do Recife”, conta. Com o dinheiro que juntou, comprou um apartamento, cujo aluguel é hoje sua principal fonte de renda. O curioso é que, com o passar dos anos, sua dublagem mais famosa virou Sonhos de um palhaço, música da saudosa Vanusa em que consegue misturar as suas duas artes. Hoje, ela homenageia em cena o ícone Rita Lee, falecida em maio.

Até conseguir mudar sua documentação, Raquel viveu muitas situações curiosas em relação ao nome de batismo. “Cansei de ficar em sala de espera do SUS ouvindo as mulheres me perguntando sobre filhos e menstruação. Eu só desconversava. Mas quando a recepcionista gritava ‘Seu José Pinto Cordeiro’ e eu me levantava, ficava aquele burburinho. Muitas vezes até insistiam: ‘A senhora é esposa dele?’. E eu respondia em alto e bom som: ‘Não, sou o próprio’”. Hoje, ela não precisa mais passar por isso. Na carteira de identidade, no CPF e no título de eleitora, está registrado o nome Raquel Isabelle Pinto Cordeiro.

“Ter acesso a um nome social de acordo com sua identidade de gênero é (re)existir na sociedade. Este é um marco na garantia de direitos das pessoas trans”, reitera a psicóloga Raissa Orlof, especialista em Saúde da Família. “A importância perpassa a construção de sermos quem somos no mundo, pois é através do nome, este primeiro símbolo, que a sociedade nos conhece, e é a partir dele que vamos carregar nossas histórias e existir para o outro, em todas as situações da vida. Para a pessoa que não se identifica com o gênero do seu nascimento, não ter um nome no qual se reconheça é mais uma das dores que marcarão essa existência, pois carregará consigo a sensação de nunca ter nascido para o mundo.” E arremata: “Ter um nome pelo qual a pessoa possa se ver em sua integralidade é existir para si mesmo, compreender sobre sua dignidade, humanidade e direitos.”

 
Márcia Vogue viveu muitos anos na Europa e trabalhou como artista em países como Suíça e Itália. Imagem: Acervo pessoal Marcia Vogue/Cortesia.

MÁRCIA VOGUE

Nascida nos anos 1970, Márcia Vogue é a caçula de uma família de três irmãos, todos meninos. “Minha mãe desejava uma menina, e o destino acabou dando esse presente a ela”, brinca. O pai era da Polícia Militar de Pernambuco, os dois irmãos se tornaram policiais federais, mas mesmo nesse ambiente ela nunca sofreu discriminação. Pelo contrário, cresceu se sentindo protegida. “A aceitação dentro de casa é a melhor arma para enfrentar o preconceito do mundo externo. O amor dos meus pais e dos meus irmãos me deu leveza durante todo o período da minha evolução”, garante.

Desde pequena, Márcia se identificava com o gênero feminino. “Sempre enxerguei o mundo a partir desse olhar. Transgêneros como eu estão distantes do conceito de identidade de travesti ou transexual, que aflora mais na puberdade”, explica. “Em muitos casos, elas não sentem a necessidade de uma cirurgia de transgenitalização. Já um transgênero só se completa com essa operação”, frisa ela, que concluiu sua transgeneridade nos anos 2000.

É bom lembrar que, entre as décadas de 1970 e 1980, assuntos como esse ainda eram pouco debatidos. Mas, na adolescência, Márcia viu surgir um dos maiores fenômenos pop do Brasil em termos de sexualidade: Roberta Close. A aparição da modelo carioca no cenário artístico nacional, por volta de 1984, deu um nó na cabeça das pessoas. Como aquela mulher tão feminina, de beleza espetacular, poderia ter nascido Luiz Roberto? Virou, claro, a grande referência para a recifense. “Eu percebi que era possível concretizar o sonho de me tornar mulher”, conta.

Além de Roberta Close, outras duas musas mereciam a atenção da pernambucana: Luiza Brunet (“minha inspiração em matéria de beleza”) e Madonna (“rebeldia pura, influenciou muito a minha geração a se libertar de tantos rótulos e paradigmas”). Essa mistura começou a formatar a persona pública de Márcia. Mas ainda faltava um sobrenome. E ele apareceu praticamente ao mesmo tempo em que a diva americana lançava Vogue, hit planetário instantâneo e absoluto. Qualquer semelhança entre a música e o nome escolhido, no entanto, era mera coincidência. Na verdade, a rainha do pop revelava para o mainstream uma expressão que dominava a cultura gay nova-iorquina desde os anos 1980, a dança vogue, criada a partir das poses que estampavam as páginas da publicação homônima, esta sim a verdadeira inspiração de Márcia. “Vogue é um nome forte e marcante. Sempre gostei de moda e a revista fazia parte da minha vida”. Strike a pose!

Foi nessa época que, ainda estudante do curso de Eletrônica da então ETFPE, a Escola Técnica Federal de Pernambuco, ela descobriu que haveria um concurso de beleza chamado Miss Tropical. “Decidi me inscrever e acabei faltando alguns dias de aula para me preparar”, detalha. “Ganhei de cara o primeiro lugar, o que serviu como passaporte para o mundo dos espetáculos das casas noturnas”. Com os 1º e 2º graus concluídos, Márcia resolveu abandonar os estudos para se dedicar a uma nova rotina. Colecionou vários outros títulos, como Miss Pernambuco Gay, Rainha do Carnaval, Pantera Gay, Miss Remember, A Bela das Belas… E esses foram só alguns. “Era uma época de muito agito. Trabalhei em todas as casas da cidade”, conta.

Quando soube de uma seleção local para o Show de Calouros, o mesmo programa do SBT que consagrou Raquel Simpson, a pernambucana enxergou ali uma oportunidade para conquistar novos palcos.“Sempre sonhei alto e procurei correr atrás”, acentua. Classificou-se dublando a música Brasileirinho, na voz de Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil), e partiu para São Paulo. Ganhou nota máxima do júri formado por Leão Lobo, Flor e Sônia Lima, entre outras personalidades do imaginário televisivo daquela década. Saiu do palco com 7.500,00 cruzeiros reais, a moeda que circulava naquele ano de 1993, antes do Plano Real. Foi tão elogiada que voltou outras duas vezes à atração.


Prestes a começar uma pós-graduação em Políticas Públicas, Márcia também se dedica à dança do ventre. Imagem: Hannah Carvalho.

Da capital paulista, seguiu direto para o Rio de Janeiro, onde encontrou um mercado fervilhante, que lhe rendeu muito trabalho e a convivência com mitos como Meime dos Brilhos (“minha madrinha carioca”), Eloina dos Leopardos, Isabelita dos Patins e as saudosas Laura de Vison, Jane di Castro e Rogéria. O Brasil ficou pequeno e a pernambucana seguiu então para a Europa. A primeira parada foi em Bienna, onde foi contratada por uma agência de vedetes para grandes shows. Tendo a cidade suíça como base, começou a circular por Alemanha, França, Luxemburgo, Itália, Holanda, Portugal, Irlanda, Grécia e Emirados Árabes Unidos, entre muitos outros países. Hoje, fala fluentemente quatro línguas: alemão, francês, italiano e espanhol.

Durante mais de 20 anos do outro lado do Atlântico, Márcia raramente visitava o Brasil. Mas, da última vez que veio, decidiu prestar vestibular, pois a boa aluna que sempre foi na juventude nunca deixou de existir. “Sentia falta dos estudos”, confessa. Passou, claro, e ficou. Agora é bacharela em Serviço Social, trabalha na área de assistência social e vai começar uma pós-graduação em Políticas Públicas. O lado artístico, é bom avisar, continua ativo. Mas nada de dublagem. É com a dança do ventre que ela segue hipnotizando o público.

ESTATÍSTICAS

Márcia Vogue, Raquel Simpson e Sharlene Esse são, sem dúvida, exemplos de pessoas vitoriosas dentro de um meio bastante cruel. Um recente estudo da Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero, ONG que já soma 30 anos de atuação, revelou que as condições de vida enfrentadas por travestis e mulheres trans com mais de 50 anos são precárias. E estamos falando apenas das que vivem no Recife. No ano passado, Pernambuco ocupou o nada honroso primeiro lugar no ranking de assassinatos de pessoas trans, dentro de um país reconhecido como o que mais mata pessoas LGBTQIAP+ no mundo.

“A partir do levantamento que fizemos, percebemos a dificuldade que elas têm em manter condições dignas de vida”, avalia Jô Meneses, coordenadora de Programas Institucionais da Gestos. “A maioria não concluiu nem sequer o ensino médio, muito em função da dificuldade em se sentirem acolhidas nas escolas, e isso impactou na inserção delas no mercado de trabalho. São indicativos que apontam para um processo de envelhecimento muito sofrido. Embora hoje o Estado reconheça muitas de suas ausências, ainda não há políticas pensadas para o envelhecimento dessa população, em especial o segmento T”.

É impossível tentar reconstruir um pouco da cena LGBTQIAP+ pernambucana sem citar outros nomes fundamentais, que não estão mais entre nós – se a reportagem tivesse sido escrita nos anos politicamente incorretíssimos, no estilo da que resgatamos do Diario de Pernambuco, provavelmente você leria: “que viraram purpurina”. Gente como a atriz Luciana Luciene, cujos números de striptease subvertiam qualquer lógica, já que, depois de tirar toda a roupa, ela se vestia de menino de rua e saía de cena com outra atitude corporal. Ou Marquesa, Primeira e Única, que costumava tirar a prótese dentária quando ia dublar, criando números impagáveis, em que qualquer letra, mesmo a mais carola, ganhava duplo sentido com sua interpretação. Ou ainda Gê Domingues, cantor performático que adorava provocar os limites de gênero com as suas letras. Selvagem Lady até hoje ecoa na lembrança de quem o viu.

Como o show tem que continuar, a geração aqui retratada segue fazendo suas performances clássicas em lugares como o Club Metrópole. “A cultura LGBTQIAP+ foi firmada com a arte transformista e a dublagem. Acompanho o trabalho delas há muitos anos. São artistas extremamente talentosas”, vibra a produtora cultural Maria do Céu, que desde os anos 1990 está à frente do mítico casarão onde funcionou a Misty. “Quanto mais essa cultura pulsar nos corpos, nos palcos, nos teatros, nos cinemas, mais fortalecida fica a comunidade. Nossa casa estará sempre aberta para elas.”

Mas como o sucesso não garante comida na mesa, Odilex também ganha a vida como maquiador, produtor de figurinos e organizador de quadrilhas estilizadas (“sou apaixonado por esse universo”, afirma). Além de se dedicar agora ao próprio canto, Sharlene Esse tem investido no audiovisual, participando de produções para o cinema e a TV, como a segunda temporada da série Lama dos Dias, do Canal Brasil, e o projeto Drag Ataque, do FashionTV. Raquel Simpson segue o mesmo caminho. “Por conta da descentralização das produções, muitas oportunidades apareceram no Recife, na frente e por trás das câmeras”, acentua. Além de se preparar para a pós-graduação, Márcia Vogue tem cuidado dos seus pais. “Dizem que as pessoas quando ficam idosas viram crianças novamente, não é mesmo? Pois estou tomando conta das minhas”, conta, cheia de ternura. Ela, Raquel e Sharlene, inclusive, foram retratadas no longa Filhas da noite, dirigido por Henrique Arruda e Sylara Silvério, em fase de finalização.

E a jornada dessas estrelas ainda tem fôlego para render muitas outras matérias, documentários, peças… Quem achou que o surgimento do movimento drag na cidade, principalmente a partir do sucesso mundial do filme Priscilla, a rainha do deserto, em 1994, ou do aparecimento das rainhas do bate-cabelo, nos anos 2000, as tiraria de cena, caiu do salto. “As novas tendências não precisam apagar o passado para existirem”, ratifica Maria do Céu. “Somos dinossauras, sim, com muito orgulho e muita arte”, arremata Odilex.

CLEODON COELHO, jornalista.

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