Comentário

Karim AÏnouz coloca tempero brasileiro na realeza inglesa

Novo filme do diretor, 'Firebrand', participou do 76º Festival de Cannes

TEXTO Mariane Morisawa

03 de Julho de 2023

A atriz Alicia Vikander vive Catherine Parr, a última mulher do rei Henrique VIII da Inglaterra

A atriz Alicia Vikander vive Catherine Parr, a última mulher do rei Henrique VIII da Inglaterra

Foto BROUHAHA ENTERTAINMENT/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 271 | julho de 2023]

Firebrand, filme de Karim Aïnouz que participou da competição no 76º Festival de Cannes, encerrado no último dia 27 de maio, é uma produção de época que conta a história de Catherine Parr, a última mulher de Henrique VIII da Inglaterra, que reinou entre 1509 e 1547 e ficou famoso por se divorciar de duas de suas esposas e mandar decapitar outras duas. Parece um universo distante para o diretor de Madame Satã (2002), O céu de Suely (2006) e A vida invisível (2019), entre outros. Então o que levou o brasileiro a topar o desafio?

Em conversa no Festival de Cannes, Aïnouz admitiu que hesitou um pouco antes de aceitar o convite, até por não acreditar na instituição monarquia. Mas, pesquisando Catherine Parr, acabou percebendo que tinha uma contribuição a dar sobre a questão de reis e rainhas. “Fiquei com uma dúvida que parece a da personagem: se dava para mudar as coisas de dentro”, disse Aïnouz. Ou seja, se era possível reescrever a história sob o olhar estrangeiro de um filho de uma terra colonizada por europeus.

Mas não é preciso analisar muito para perceber que, embora seja uma rainha inglesa do século XVI, mais precisamente de 1543 a 1547, período em que os portugueses começavam a ocupar o Brasil, Catherine Parr tem elementos em comum com outras personagens levadas à tela por Aïnouz. “Tanto aqui quanto em O céu de Suely, A vida invisível, Madame Satã, são personagens que a história esqueceu, deixou de lado”, disse o cineasta.

É estranho falar isso sobre uma rainha que tem seu nome nos livros de História. Mas o caso de Parr realmente é curioso. Fala-se bastante das outras mulheres de Henrique VIII. Uma rima para os estudantes decorarem a ordem das seis esposas do rei diz: divorciada, decapitada, morta, divorciada, decapitada, sobrevivente (em inglês: divorced, beheaded, died, divorced, beheaded, survived).

O rei ficou famoso como o homem que originou a Reforma Anglicana ao romper com a Igreja Católica depois de o papa não aceitar anular seu casamento com Catarina de Aragão, que durou de 1509 e 1533 e produziu uma única filha, Maria. Como a Inglaterra não tinha tido nenhuma rainha ainda, e Henrique VIII foi apenas o segundo rei da Casa Tudor, a chance de a sucessão ser contestada era grande. Ele queria um herdeiro homem, e Catarina, que ficou grávida seis vezes, perdeu um menino com um mês de idade e teve três bebês nascidos mortos, tinha mais de 40 anos. Nessa época, ele já tinha se apaixonado por Ana Bolena.

Quando ele colocou Thomas Cranmer, um de seus homens, como Arcebispo de Canterbury, criando um cisma com o papa, conseguiu o que queria: seu casamento foi anulado. Catarina de Aragão, que tinha sido sua mulher por 24 anos, foi banida, seu título de rainha cassado, e sua comunicação com a filha proibida. Sua história ficou famosa por ter sido a mulher trocada por outra, a ponto de o rei ter criado uma igreja para isso.

Ana Bolena talvez seja a mais famosa das mulheres de Henrique VIII, por causa de todo o drama. Mas ela também deu à luz uma menina, Elizabeth, que viria a ser um dos maiores nomes da História inglesa. Depois de alguns abortos espontâneos, o rei decidiu se livrar dela. Seu conselheiro Thomas Cromwell provavelmente inventou acusações de adultério e traição, e ela foi condenada à morte, depois de apenas três anos. O rei então se casou com Jane Seymour, que teve um menino, Eduardo, e morreu de complicações no parto. Em seguida, vieram Ana de Cleves, um casamento anulado após seis meses, e Catherine Howard, decapitada após um ano e meio, sob a acusação de adultério.

E finalmente, a última, Catherine Parr, a única a sobreviver a Henrique VIII. Durante os três anos e meio de casamento, que não produziu herdeiros, ela teve uma relação próxima com os três filhos do rei, Maria, Catarina e Eduardo, sendo responsável pela educação dos dois últimos. Foi influente na aprovação do ato que restabeleceu as filhas de Henrique VIII na linha de sucessão. Foi a primeira mulher inglesa a publicar um livro sob seu próprio nome e regente durante uma campanha de Henrique VIII na França. Era defensora do protestantismo, estabelecido de fato na Inglaterra no governo de seu enteado, Eduardo VI. Parr foi responsável por parte da criação de três reis e rainhas: Eduardo VI, Maria I e Elizabeth I.

No entanto, como a Eurídice Gusmão de A vida invisível (2019), o longa de ficção anterior de Karim Aïnouz sobre mulheres esquecidas dos anos 1950, Catherine Parr tem uma existência quase invisível nos livros de História. No próprio site da Família Real Britânica, ela aparece no capítulo sobre Henrique VIII assim: “Henrique casou-se mais duas vezes, com Katherine Howard (executada sob a acusação de adultério em 1542) e Catherine Parr (que sobreviveu a Henrique, morrendo em 1548). Nenhum dos casamentos produziu herdeiros.”

Firebrand insere-se em uma onda de produções que recontam a História com H maiúsculo sob o ponto de vista de personagens que foram invisibilizados, sejam mulheres ou pessoas LGBTQIAP+ e não brancas. Podem ser rainhas ou não. A História, afinal, quase sempre foi escrita por homens brancos cis heterossexuais, que raramente se interessavam por quem não se parecia com eles. Agora, essas personagens são protagonistas dessas histórias, baseadas em fatos ou não, como Dickinson, The spanish princess (sobre Catarina de Aragão), A favorita, The great, Retrato de uma jovem em chamas, Bridgerton, A idade dourada.

O próprio 76º Festival de Cannes foi aberto com um drama de época, Jeanne du Barry, dirigido e estrelado por Maïwenn. A personagem foi uma famosa e influente amante do rei Luís XV (interpretado por Johnny Depp), mas ficou conhecida como uma mulher frívola, sem modos, escandalosa, uma ex-cortesã de origem pobre indigna de estar ao lado do monarca. É uma pena que, apesar de contar a história sob um ponto de vista feminino, o filme não seja feminista. As grandes antagonistas de Jeanne du Barry são mulheres: sua mãe, a esposa de seu protetor, as aristocratas de Versalhes, a princesa Maria Antonieta. Os protetores são todos homens, incluindo um benevolente Luís XV – o fato de ele ser vivido por um ator em meio a uma polêmica adiciona uma camada extra de dúvida sobre o projeto.

Já em Firebrand, que marcou a estreia de Aïnouz na competição de Cannes, depois de participações em outras sessões, Alicia Vikander é uma Catherine Parr com ambições políticas, cuidadosa no trato e na educação dos enteados, mas que precisa caminhar na corda bamba ao lidar com um Henrique VIII (Jude Law) cada vez mais errático e monstruoso. Não há, aqui, nenhum traço do rei bonachão, gordo, que gostava de comer frangos inteiros, como incrivelmente ele ficou conhecido. Ele tem um ferimento na perna que não cicatriza e apodrece aos poucos, causando muita dor – não que isso justifique sua tirania. Todos precisam ter cuidado para não despertar a ira do rei, que baniu ou mandou executar vários de seus ministros mais influentes. No caso de Parr, além da ameaça de divórcio ou execução, havia também a violência física.

É aqui que o diretor brasileiro vai imprimindo sua marca. A violência no ato sexual em Firebrand lembra aquela vista em A vida invisível. Não há traço de romantismo. Nos dois casos, aliás, ele trabalhou com a mesma diretora de fotografia, Hélène Louvart, que ajuda a trazer a luz, a textura, o cheiro. “É importante ver como as pessoas viviam”, disse Aïnouz. Não fazia sentido para o cineasta olhar a monarquia como seres superiores que eles achavam ser, mas como humanos. Gente que escova o dente, que se troca, que tem doenças. Ele faz um retrato intimista, doméstico da corte e da vida daquelas pessoas aproximando-as de nós.

Não há pompa nem cerimônia – a não ser nos cenários e figurinos que seguem à risca as imagens e documentos da época. “Em geral são filmes muito inodoros. Não parece que estamos vivendo ali o dia a dia. Pesquisamos muito o que o Henrique tinha, era muito fedorento, e isso gerava uma irritação nele e nas pessoas à sua volta. O filme é todo febril.” No departamento odores, Aïnouz teve uma ajudinha de Jude Law, que trabalhou com uma especialista em cheiros. Ela criou essências de carne podre, sangue, tecido molhado do curativo. E o diretor se empolgou, espalhando o “perfume” pelo set sempre que sentia necessário. “O resultado foi tão bom que eu não vou dizer que as pessoas se acostumaram, mas elas entenderam”, disse, rindo.

Só o fato de ter um ponto de vista mais feminino – e feminista – sobre a realeza inglesa já traz Firebrand para os dias de hoje. Mas Karim Aïnouz também fez uma relação daquele Henrique VIII com outras figuras de agora. O rei foi um dos nomes mais importantes da História da Inglaterra e do mundo, mas também é um exemplo de masculinidade tóxica, no nível pessoal, e de tirania, como governante. “Quem seria esse cara hoje? É triste que existam pessoas como o Henrique VIII, e muitas delas são eleitas, ao contrário dele”, disse o diretor. “Como personagens tão cruéis, violentos, tóxicos permanecem? Claro que o Trump foi um personagem que veio à minha cabeça, a pessoa eleita no Brasil antes do Lula também, o Putin. É importante ver o filme e ver a ressonância que ele tem agora.”

E foi por isso que, no final, sem dar spoilers, ele quis terminar com uma provocação. Não há confirmação histórica de que aquilo tenha se passado. Mas para ele era o único fim possível para a história dessa relação abusiva entre um homem e uma mulher e entre um rei e seu país: “Ou a gente interrompe esse ciclo de violência e para de achar graça em coisas ultrajantes ou vamos continuar sofrendo, porque essas coisas se autoperpetuam.”

 
Firebrand foi exibido na competição do 76º Festival de Cannes, encerrado em 27 de maio. Foto: Soraya Ursine/Divulgação 

OUTROS FILMES

Firebrand é um dos títulos do Festival de Cannes que trouxe mulheres invisibilizadas no passado ou que enfrentam o patriarcado de maneiras diversas. Essa foi a grande marca do evento, encerrado em 27 de maio: dar espaço para as mulheres não serem apenas vítimas oprimidas, mas pessoas complexas lidando com um sistema desfavorável.

La passion de Dodin Bouffant, que deu o prêmio de direção a Tran Anh Hùng, é a história de amor entre o chef Dodin (Benoît Magimel) e sua cozinheira e braço-direito Eugénie (Juliette Binoche). Ela atua nos bastidores e é fundamental para o sucesso de Dodin. Ele sabe disso, seus amigos, também. Os dois são parceiros de trabalho e de vida. Mas ela reluta em assumir o romance. Sabe que dali para ser considerada apenas a mulher do chef é um pulo. É curioso que, durante o filme inteiro, a expectativa é a de que Dodin ou outro homem vá fazer algo terrível a Eugénie. Mas La passion de Dodin Bouffant não é esse tipo de filme.

Killers of the flower moon, de Martin Scorsese, trata de homens brancos maus – algo sobre o qual o diretor tem lugar de fala. Mas a força do filme é a serena Mollie (Lily Gladstone), casada com um verdadeiro idiota, Ernest (Leonardo DiCaprio), e que vê seu povo Osage sendo dizimado lentamente, com mortes no mínimo estranhas. São os brancos tentando roubar as terras ricas em petróleo dos indígenas, um faroeste que mostra os brancos como os vilões, um filme de gângster que expõe as entranhas do desenvolvimento e enriquecimento dos Estados Unidos, à base do massacre de nativos e africanos escravizados.

No vencedor da Palma de Ouro, Anatomy of a fall, dirigido por Justine Triet, a terceira mulher a ganhar o troféu máximo em Cannes, Sandra (Sandra Hüller) é uma mulher que tenta se defender da acusação de ter matado o marido. Ela sofre no julgamento por não chorar nem se descabelar, por parecer fria. O que ela demonstra serve mais como base da acusação do que os fatos.

O Festival de Cannes foi rico de mulheres ambíguas, difíceis de gostar, até desagradáveis. Como a dupla de May december, de Todd Haynes, Gracie (Julianne Moore), uma mulher que causou escândalo ao manter um romance com um adolescente, e Elizabeth (Natalie Portman), a atriz que vai interpretá-la no cinema. Gracie tinha 36 quando conheceu Joe (Charles Melton), com 13 na época. Os dois se casaram e tiveram três filhos, e os dois mais novos estão prestes a deixar o ninho vazio. Mesmo que Gracie seja uma criminosa, May december coloca no ar a pergunta: como seria se fosse um homem na posição dela? Certamente diferente. Isso não faz de Gracie, que usa diversas máscaras sociais contraditórias, uma pessoa melhor. Elizabeth também é difícil de defender, com seus métodos pouco éticos de mergulhar na intimidade do casal.

Em The zone of interest, Grande Prêmio do Júri, Jonathan Glazer baseia-se no romance de Martin Amis para falar do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss, e principalmente de sua mulher Hedwig (de novo, Sandra Hüller, a estrela do festival). Os dois têm uma vida dos sonhos em uma casa confortável, cheia de empregados, e com um belo jardim, que fica colada ao muro do campo de extermínio. Os gritos, os tiros, a fumaça, o cheiro, as cinzas não incomodam ninguém ali. As roupas tiradas à força das vítimas do Holocausto são distribuídas entre os funcionários ou ficam com a patroa mesmo. A banalidade do mal alcança a todos – inclusive as mulheres. Mesmo essas fazem parte da História e existem no mundo e precisam ser visíveis nas histórias que vemos no cinema e na televisão.

MARIANE MORISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Morou em Los Angeles por sete anos e cobre festivais em todo o planeta.

veja também

Carol Ito

Uma carta para Jane Austen

Ana Teixeira