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Histórias da vida de quem escreve

leia trecho do livro 'Escritores são humanos', de Carlos Costa, publicado pela Cepe Editora

TEXTO CARLOS COSTA

03 de Julho de 2023

Imagem JANIO SANTOS SOBRE REPRODUÇÕES

[conteúdo na íntegra | ed. 271 | julho de 2023]

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Os futuristas estão chegando

Naquele 1897, Euclides chegou a São Paulo para construir pontes, abrir estradas, demarcar limites. Os tempos de cadete nº 308 estavam longe. Havia saído do Exército e agora trabalhava como engenheiro da Superintendência de Obras Públicas do estado. Casara-se havia sete anos com Ana Ribeiro, filha de um general do Exército. Tinha dois filhos e muito trabalho pela frente. Viajava muito pelo interior de São Paulo — Atibaia, Piracicaba, Itu, Araras, Botucatu, Guaratinguetá, e por aí vai.

De temperamento inquieto, doutor-engenheiro de alma cabocla, Euclides queria mesmo era a tranquilidade do interior, como confessava numa carta a um amigo:

Estou outra vez amarrado ao cadáver — à engenharia magra; serventuário público! Não sei quando realizarei o ideal de viver na roça, numa cidade pequena, com um círculo pequeno de amigos, estudando e trabalhando, sendo mais útil à nossa terra.

Abraçou a Engenharia, mas nas horas vagas escrevia seus artigos para o Estado de São Paulo. Colaborava no jornal desde março, ocasião em que publicou um artigo sobre a situação em Canudos. Comparava os conselheiristas aos chouans franceses de Vendeia:

A mesma coragem bárbara e singular e o mesmo terreno impraticável aliam-se, completam-se. O chouan fervorosamente crente ou o tabaréu fanático, precipitando-se impávido à boca dos canhões que tomam o pulso, patenteiam o mesmo heroísmo mórbido difundido numa agitação desordenada e impulsiva de hipnotizados.

Em carta a João Luís, seu amigo, Euclides expressou sua preocupação com os acontecimentos de Canudos. Achava a guerra uma afronta à República.

Creio que como eu estás ainda sob a pressão do deplorável revés de Canudos aonde a nossa República tão heróica e tão forte curvou a cerviz ante uma horda desordenada de fanáticos maltrapilhos…

Era republicano demais para não acreditar no que o governo e o povo diziam sobre Antônio Conselheiro e seus “fanáticos” seguidores: queriam de volta a Monarquia!

Havia poucos dias que as forças do governo haviam sofrido uma fragorosa derrota contra os seguidores de Conselheiro. A guerra arrastava-se desde outubro do ano anterior. Como um simples arraial, perdido nos confins do sertão nordestino, mantinha-se ainda de pé diante do exército do governo? E ainda impondo-lhe uma derrota humilhante como aquela?

O diretor d’O Estado de São Paulo admirava o trabalho de Euclides em seu jornal. Não foi à toa que ele o convidou para ser correspondente em Canudos. Iria cobrir a guerra. Euclides aceitou. Em julho daquele ano, o diretor do jornal envia um telegrama para o presidente da República, Prudente de Morais. Pedia que Euclides fosse nomeado como adido ao Estado-Maior do Ministro da Guerra, que seguia em comitiva para o Sertão. E a resposta veio no mesmo dia. Sem perda de tempo, já no dia seguinte, o jornal paulista noticiava:

O ilustre moço, que é um dos nossos mais distintos colaboradores, partirá para o Rio no vapor em que embarcar o 1º batalhão. Por contrato firmado com esta empresa, o Dr. Euclydes da Cunha nos enviará correspondências do teatro das operações e, além disso, tomará notas e fará estudos para escrever um trabalho de fôlego sobre Canudos e Antonio Conselheiro.

Foram quatro torturantes dias de viagem no vapor Espírito Santo. Vômitos, enjoos, dores de cabeça, mas finalmente Euclides chegou a Salvador. Ansiava partir imediatamente para o palco da guerra, mas não podia. Em agosto, escreveu a um amigo:

Ainda aqui: estou há quinze dias e deves avaliar com que contrariedade. Estou bom, porém, animado. Infelizmente o ministro não permitiu que eu o precedesse e fosse esperá-lo em Canudos; de sorte que temo não ir a tempo de assistir a queda do arraial maldito.

Queixava-se também de sua hemoptise habitual, que voltou a incomodá-lo. Enquanto esperava, assistia à movimentação das tropas que seguiam para o palco da guerra e à chegada dos feridos. Em carta enviada a O Estado de São Paulo, descrevia:

Passam soldados que tornam dos sertões, feridos e convalescentes, tropegos e alquebrados, physionomias pallidas e abatidas das quaes resumbra uma resignação estoica; — acurvados alguns em bengalas toscas, caminhando outros amparados nas muletas ou pelo braço de companheiros mais robustos.

Partindo de Salvador depois de 23 dias de espera, passou ainda por Alagoinhas, Queimadas, Monte Santo, e tantas outras cidadezinhas. Ia anotando tudo em sua caderneta de couro marrom e folhas quadriculadas. Mais de mês desde que saíra de São Paulo, finalmente os olhos positivistas e republicanos de Euclides vislumbraram o “terrível” arraial monarquista que planejava derrubar a incipiente República dos brasileiros…

O arraial não se distingue promptamente, ao olhar, como as demais povoações; falta-lhe a alvura das paredes caiudas e telhados encaliçados. Tem, a côr da propria terra em que se erige, confundindo-se com ella na mesma tinta de um vermelho carregado e pardo, de ferrugem velham, e, se não existissem as duas grandes egrejas á margem do Vasa-Barris, não seria percebida a tres kilometros de distancia. […] Não ha propriamente ruas, que tal nome não se póde dar ás viellas tortuosas, cruzando-se num labyrintho inextrincavel, — e as duas unicas praças que existem exceptuada a das egrejas são o avesso das que conhecemos: — dão para ellas os fundos de todas as casas; são um quintal em commum.

O povoado de Belo Monte, onde ficava Canudos, era rodeado de montanhas e cortado pelo Vaza-Barris, rio que dava vida a tudo ali. Depois de meses de combate, o arraial estava sitiado, sem comida nem água. Os sobreviventes resistiam escondidos e encurralados no pedaço do arraial que ainda não havia sido tomado pelos soldados do governo. Sem comida nem água, a situação era desumana. Desesperados, alguns arriscavam a vida na busca por cacimbas. Em vão: atiradores bem posicionados deleitavam-se em alvejar as pobres criaturas…

No final de setembro daquele 1897, Euclides entrou na parte do arraial ocupada pelo Exército, acompanhando os generais, coronéis e o Estado-Maior.

Nem era mais uma vila, era a visão do inferno.

[…] avançaram até toparem as primeiras casas e, simultaneamente, esparsos, jazentes a esmo sobre montes de esteios, traves e ripas carbonisadas, os primeiros cadaveres insepultos do inimigo.

Caminhando por entre ruínas, “desvios tortuosos e longos”, viam-se “[…] casebres que ainda permaneciam de pé, oscilantes e arrombados, livres ainda das chamas”.

Toda a parte do arraial á direita e na frente estava ainda em poder dos habitantes. Os adversarios acotovellavam-se. Ouvia-se, transudando das paredes de taipa, o surdo e indefinivel arruido da população entocada: vozes precipites, cautas, segredando sob o abafamento dos colmos; arrastamentos de moveis; soar de passos; e uns como longinquos clamores e gemidos; e ás vezes — notas cruelmente dramaticas! — gritos, e choros, e risos, de creanças […]

E por toda parte — cadáveres…

Estavam em todas as posições: estendidos, de supino, face para os céus; desnudos os peitos, onde se viam os bentinhos predilectos; encurvados no ultimo crispar da agonia. […] Em todos, nos corpos emmagrecidos e nas vestes em pedaços, liam-se as provações soffridas. Alguns ardiam, lentamente, sem chammas, revelados por tenues fios de fumaça, que se alteavam em diversos pontos. Outros, incinerados, se desenhavam, salteadamente, nitidos, esbatida a brancura das cinzas no chão poento e pardo, á maneira de toscas e grandes caricaturas feitas a giz […]

Euclides seguia a marcha lúgubre, medonha…

Por entre os becos, viam-se escancarados toda sorte de objetos da vida privada daquele povo: baús, bancos, jiraus grosseiros, redes em fiapos, berços de cipó, balaios de taquara, roupas, vasilhames, pratos, xícaras, garrafas, bruacas de couro cru, alpercatas sem serventia, candeeiros amassados — um sem-fim de coisas. Isso sem falar nos objetos santos, como oratórios, rosários de contas ou ouricuri, benditos em caderninhos costurados, imagens de santos milagreiros, crucifixos, partidos, figas, cruzes, bentinhos. Tudo jogado, abandonado, deixado para trás.

Da igreja onde o povo rezava e entoava aleluias, somente algumas paredes permaneciam de pé. Aliás, como quase todo o arraial. Sobre a terra seca e ocre, a devastação.

Mas ainda resistiam, aqueles sertanejos…

E para terminar de vez com tudo aquilo, para subjugar de vez o “[…] adversario inamolgavel as forças maximas da natureza”, decidiu-se jogar caixas e mais caixas de dinamite sobre o arraial, pois aqueles “[…] sertanejos invertiam toda a psychologia da guerra: enrijavam-nos os reveses, robustecia-os a fome, empedernia-os a derrota”.

E foi então que Euclides ficou diante de um cenário que nenhum olho humano jamais deveria ver:

Vultos desorientados, fugindo ao acaso para toda a banda; vultos escabujando por terra, vestes presas das chammas, ardendo; corpos esturrados, extorcidos.

No meio do fogaréu, “[…] um agitado pervagar de sombras: mulheres fugindo dos habitaculos em fogo, carregando ou arrastando creanças”.

Agonia, agonia, agonia…

Mas nada daquele povo de Deus se entregar!

Havia cerca de 18 dias que o repórter Euclides estava no palco da guerra, anotando tudo em sua caderneta marrom e escrevendo cartas à redação do jornal. Chegou, entretanto, a hora de voltar para casa. Precisava partir, pois estava doente, com acessos de febre.

Um transformado Euclides deixava então Canudos.

E nem chegou a ver mais de 200 prisioneiros serem cruelmente degolados…

Dois dias após Euclides partir, o genocídio finalmente terminou. Foram quatro expedições, “[…] dez mezes de combates e cem dias de canhoneio continuo”, com a ira de “seis mil mannlichers e seis mil sabres; e o golpear de doze mil braços, e o acalcanhar de doze mil cothurnos; e seis mil revolveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de schrapnels; e os degolamentos, e os incendios, e a fome, e a sêde”.

Somente depois disso tudo, Canudos descansou em paz…

oOo

“Qual é a côr da minha fórma, do meu sentir? Qual é a côr da tempestade de dilacerações que me abala?”, indagava Cruz e Sousa, frente a frente com sua dor. E ao lado dessa dor, a revolta contra os homens — “Ah! esta minuscula humanidade, torcida, enroscada, assaltando as almas com a ferocidade de animaes bravios, de garras aguçadas e dentes rijos de carnivoro, é que não póde comprehender-me”. Havia, entretanto, algo que o resto dos mortais podia fazer: “O que tu pódes, só, é agarrar com phrenesi ou com ódio a minha obra dolorosa e solitaria e lêl-a e detestal-a”. Truncar, enodoar, profanar, estigmatizar, blasfemar, era tudo o que eles podiam fazer: “[…] dilacerar, emfim, toda a obra, n’um impeto covarde de impotencia ou de angustia”.

Essas são palavras dilacerantes de um emparedado.

Naquele final de 1897, Cruz e Sousa era um homem completamente isolado, quase sem amigos. O preconceito de raça e suas concepções literárias explicariam muitas coisas, mas certamente sua altivez intransigente, seu amor próprio em demasia, isolavam-no ainda mais.

Lá fora a noite é estrellada e quente. Chego da rua. A vida ferve ainda nos cafés, com intensidade. No Londres, uns imbecis doirados de popularidade fácil, saudaram-me, e, nessa saudação, senti o ar episcopal das protecções baratas que os conselheiros costumam dar aos jovens esperançosos. Eu percebi o conselheirismo e tive uma careta, uma grimace diabólica de ironia… Oh! oh! infinitamente incomparaveis os carissimos imbecis doirados de popularidade facil!

Tais palavras ácidas de Missal ilustram seu estado de distanciamento. A tão sonhada ascensão social ficara há muito para trás. O que restou foi apenas a luta pela sobrevivência — o ter que comer, o ter que pagar, o ter que trabalhar — obrigações prosaicas e diárias. Tinha sua Gavita e três filhos para criar. Trabalhava ainda na Central do Brasil. Após a labuta, muitas vezes sem ter almoçado, voltava para casa, depois de ver alguns amigos. Morava numa casa de varanda com janelas para um quintal. E estando aí em sua casa, no seu canto, entregava-se aos seus escritos, até altas horas da noite.

Havia já algum tempo que Nestor Victor, amigo de Cruz e Sousa, percebera um abatimento incomum no poeta. Aconselhava-o então a se cuidar, não trabalhando tanto. No início do ano, entretanto, manifestou de vez a surda e implacável tuberculose.

Seu estado de saúde era preocupante, assim como a situação financeira da família. Em dezembro daquele ano, Cruz e Sousa escreveu uma carta a Nestor Victor:

Não sei se estará chegando realmente o meu fim; — mas hoje pela manhã tive uma síncope tão longa que supus ser a morte. No entanto ainda não perdi nem perco de todo a coragem. Há 15 dias tenho tido uma febre doida, devido, certamente, ao desarranjo intestinal em que ando. Mas o pior, meu velho, é que estou numa indigência horrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada, para nada! Um horror! Minha mulher diz que eu sou um fantasma que anda pela casa.

No ano seguinte, 1898, começou a sair na imprensa notícias sobre a situação do poeta Cruz e Sousa. Foi então que surgiram em alguns jornais iniciativas para ajudá-lo, através de subscrições. O primeiro a ter a ideia foi Artur Azevedo:

Vejo, por uma noticia d’O Paiz, que o applaudido poeta Cruz e Souza está gravemente enfermo e nas mais precarias condições de existência. Não estou no catalogo dos seus amigos, nunca troquei palavra com elle, conheço-o apenas pelos seus escriptos; não me compete, pois, tomar a iniciativa de um movimento qualquer em seu favor. Mas isso não obsta a que me ponha desde já ao serviço de todas as pessoas que, por meu intermedio, desejarem de qualquer modo manifestar a sua sympathia pelo autor do Missal e dos Broqueis.

As doações em dinheiro começaram a aparecer, de amigos ou não, admiradores ou não. Com o agravamento da doença, Cruz e Sousa viajou com Gavita para Sítio, em Minas Gerais. Segundo seu médico, o clima era recomendável para o tratamento. Tarde demais, pois o estado de saúde só se agravava. No auge de sua agonia, em meio ao delírio da febre, Cruz e Sousa exclamava:

— Ali vai! Ali vai! É um enterro, não vês? Ali vai… Estão levando o caixão… É um caixão preto, enorme. É o meu enterro!

A esposa ainda tentava acalmá-lo, mas o delírio o dominava.

— É a mim que eles vão levando… Não! Não deixes, Gavita, não deixes!

Numa manhã de março, três dias após sua chegada ao Sítio, o poeta de Desterro livrou-se de sua agonia.

Haverá um dia que do corpo negro de Cruz e Sousa não restará nada mais que invisíveis partículas de carbono. Nesse dia talvez, sua obra terá alcançado o reconhecimento tão sonhado por ele, enfim livre dos preconceitos que o emparedaram…

oOo

Em meados de 1899, Graça Aranha, sua esposa e filho desembarcaram em Paris. O jovem advogado maranhense fora convidado por Joaquim Nabuco para trabalhar numa missão diplomática na Europa. Apesar de temperamentos diferentes, Nabuco e Graça eram amigos, havendo respeito e admiração mútuos.

Graça desejava muito conhecer a Europa, e agora estava lá. Por aqueles dias, a França vivia uma forte crise política, social e econômica. Piorando o quadro, havia a polêmica em torno do processo contra Dreyfus. Os ânimos estavam acirradíssimos: a França estava dividida entre os conservadores anti-Dreyfus e as forças de esquerda pró-Dreyfus.

Todo esse clima de euforia política impressionava o jovem e idealista Graça e alimentava suas convicções políticas libertárias. Graça acreditava na solidariedade humana, mas não em Deus. Quando criança, entretanto, era um carola temente à Igreja e aos santos. Sempre que podia ia às missas, rezava novenas e acompanhava procissões. Tomava parte das cerimônias religiosas das irmandades, vestindo suas capas nos atos solenes. E na Semana Santa? O incenso e as flores exacerbavam seu espírito religioso, não saía da igreja o dia inteiro, enfeitava os altares e acompanhava os passos das procissões pelas ruas da cidade. Tudo isso exaltava, extasiava o pequeno Graça.

Mas nem sempre fora assim. Tamanha devoção começou por causa de um caroço de pitomba! Aliás, de vários deles, ficando entupido e resultando-lhe uma tremenda congestão intestinal! Envergonhado, não contou nada a ninguém. Pediu ajuda apenas a São Benedito: caso ficasse bom, tornar-se-ia seu devoto e irmão. O que acontece, porém, é que as crianças crescem e vão deixando muitas coisas pelo meio do caminho. No caso de Graça, uma delas foi essa devoção. A religião ficou para trás quando ele descobriu o conhecimento, a ciência, a filosofia — essas coisas que, dizem, são de adultos.

Agora com 28 anos de idade, tudo o que Graça queria era trabalhar e conhecer a Europa — um sonho antigo, aliás. Antes de começarem os trabalhos, ele, Nabuco e um amigo em comum viajaram pela França e foram até a Suíça, instalando-se num hotel nos Alpes. Nessa época, seu amigo Machado estava às voltas com a publicação de seu mais novo romance Dom Casmurro. Como a impressão estava sob a responsabilidade da Garnier de Paris, Graça teve acesso às provas do livro e o leu. Machado nem sonhava com isso, até porque era costume seu manter em segredo seus novos trabalhos. Mas Graça não apenas leu o romance como escreveu a Machado uma carta, fazendo alusões ao romance, descrevendo uma bela grega que avistara no hotel. Era a própria descrição de Capitu, personagem central da trama de Machado!

Por aquela época, Graça estava escrevendo um romance. Trabalhava nele havia já um bom tempo. Em 1890, quando ocupava o cargo de juiz municipal da pequena Cachoeiro de Santa Leopoldina, no Espírito Santo, ele costumava viajar pelas localidades para conhecer a realidade de cada lugar. Ia tomando nota de tudo para escrever um livro sobre o assunto — a natureza exuberante do país, os brasileiros, os imigrantes. Certa vez, conversando com o presidente do estado de então, este disse a Graça que o Espírito Santo não deveria ser visto como uma terra prometida, como a Canaã bíblica. O jovem juiz discordou, afirmando que era uma Canaã, sim. O Brasil como um todo era uma terra prometida, e ele o mostraria. Pouco antes de viajar para a Europa, escreveu ao amigo José Veríssimo dizendo-lhe que estava confiante no livro, mas o tempo era curto, referindo-se a ele como um “eterno trabalho”.

oOo

1900: início de um novo século…

Nem todas as gerações podem presenciar a virada de um século. Machado pôde, estava lá. Sua vidinha de burocrata continuava; sua vida de escritor brilhante também. Como ele mesmo disse na ocasião em carta dirigida a José Veríssimo: “Vamos indo”.

Os anos se passaram e “Seu” Machado era agora um sexagenário, com barba e cabelo brancos. Era a “verde velhice”, talvez nem tão verde assim, como dissera na carta ao amigo Veríssimo. Ainda magro e com seu inseparável pince-nez, continuava com as crises de epilepsia. E a gagueira também, principalmente quando
ficava nervoso.

Dez anos na vida de um país podem modificá-lo. Durante esse tempo, o cronista Machado observou tudo com seu olhar aguçado através das crônicas: as novidades e boatos da Rua do Ouvidor; a chegada do bonde elétrico; a abertura de avenidas e derrubadas de cortiços etc. Além disso defendeu a eleição de mulheres e satirizou o jogo do bicho. A Academia de Letras fortaleceu-se com o passar do tempo, graças ao trabalho infatigável de Machado. Dedicava-se a ela de corpo e alma. Para ele, a Academia era sua segunda família. Mas a casa definitiva dessa família ainda era um sonho.

Desde o último romance, Quincas Borba, Machado não lançou mais nenhum outro. O livro adquirira popularidade, distinguindo mais ainda o nome do autor. Mas houve algo nesse sucesso que Machado não gostou. Com o passar do tempo, os jornais passaram a mencionar repetidamente a frase de Rubião: “Aos vencedores, as batatas!”. A expressão caiu no gosto popular, o que irritou bastante seu criador. Certa vez, conversando com o amigo Capistrano de Abreu, desabafou:

— Ao vencedor, as batatas! Pois esta gente não vê que o Rubião teve as batatas e não venceu nada?

Naquele início de novo século, Machado achava-se velho e cansado. Suas contribuições para os jornais diminuíram. A crônica sistemática, já a abandonara havia três anos, fazendo questão de se despedir do leitor que o acompanhara por tanto tempo:

Se Deus descançou um dia, depois de seis dias de trabalho, força é que eu descance algum tempo depois de uma obra de annos. Ha cerca de cinco annos que vos digo aqui ao domingo o que me passa pela cabeça, a propósito da semana finda, e até sem nenhum proposito. Parece tempo de repousar o meu tanto. Que o repouso seja breve ou longo, é o que não sei dizer; vou estirar estes membros cançados e cochilar a minha sésta.

Aliás, essa preocupação com a proximidade da velhice já o acompanhava havia algum tempo. Certa vez, em carta a Salvador de Mendonça, um de seus amigos mais próximos, confessou:

Os anos, meu caro Salvador, vão caindo sobre mim, que lhes resisto ainda um pouco, mas o meu organismo terá de vergar totalmente; e as letras, também elas me cansarão um dia, ou se cansarão de mim, e ficarei à margem.

Noutra carta, Machado voltava ao mesmo assunto. Dessa vez era para outro amigo, Magalhães de Azeredo, este bastante jovem, mas igualmente próximo: “Não me sobram anos nem forças para projetos futuros”.

Tolo engano do cético Machado.

Havia alguns anos que vinha escrevendo um novo romance, dividindo sua escrita com o trabalho no Ministério e na Academia. No início daquele 1900, uma tiragem de dois mil exemplares estava no prelo, mas houve atrasos, chegando às livrarias somente no final de fevereiro. Era Dom Casmurro. Diferentemente dos romances anteriores, Machado não o publicou em folhetins, capítulo a capítulo. Preferiu lançá-lo diretamente num volume. Assim como o romance anterior, Dom Casmurro demorou alguns anos para ser finalizado. É que Machado era minucioso, detalhista, perfeccionista, enfim. Escrevia lentamente, com cuidado; sempre corrigindo, reescrevendo, e tornando a revisar. Inúmeras eram as revisões que fazia, tanto nos originais quanto nas provas de imprensa.

A trama gira em torno de um triângulo supostamente amoroso: Bentinho, Capitu e Escobar. O narrador é o próprio protagonista, Bentinho, já velho — porém vivo, ao contrário de Brás Cubas. Ao longo da narrativa, Bentinho conta sua história com o grande amor de sua vida, Capitu, a vizinha de olhos oblíquos e dissimulados. Olhos de ressaca. Suas memórias detalham o namoro entre os dois até a separação, motivada por uma suposta traição de Capitu com o amigo Escobar.

A crítica recebeu muito bem o romance e Machado ficou satisfeitíssimo, pois sentia-se escritor em fim de carreira e preocupava-se com a perenidade de sua obra.

oOo

— Então, tem-lhe agradado a terra? esta verdura de primavera? o esplendor do sol? a vegetação possante?

— Sim, tudo isto é forte e bello, mas eu prefiro os campos europeus com suas mutações, o seu quadro de montanhas, o seu colorido mais distincto.

— A Europa tem a tradição, atalhou Milkau, que nos priva da liberdade de julgamento. Fora d’ella não sei si o Rheno vale o Santa Maria, que, sem lendas, sem passado, reflecte em mim por seus próprios merecimentos tanto encanto, com suas margens incultas, sua água límpida e borbulhante, seus chorões curvos…

— Oh! este sol implacável!… Aqui não há descanço para uma suave matização da côr. Sempre este amarello a nos perseguir… E com um gesto de mão sobre a cabeça, Lentz parecia querer arrancar de si a obsessão da luz omnipotente.

— Breve se acostumará, e ha de amar esta natureza até á paixão. Eu já venho de longe e cada vez a admiro mais.

Milkau e Lentz eram dois jovens colonos alemães recém-chegados ao Brasil. Queriam trabalhar na terra, plantar café. Duas personalidades diferentes que viam de modos distintos o novo mundo onde iam se estabelecer. Milkau era um idealista encantado com a exuberância do lugar, vislumbrando a possibilidade de se construir nessa terra ainda virgem uma nova sociedade, mais leve e justa. Lentz era o contraponto, pois se sentia no exílio, longe das tradições do velho mundo e de tudo que fosse civilizado.

Milkau e Lentz até que podiam ser pessoas reais, daqueles tantos imigrantes que chegaram ao Brasil para aventurar uma nova vida. Mas são personagens de Canaã, romance que finalmente Graça conseguiu publicar em abril de 1902 depois de repetidas e intermináveis escritas, reescritas, revisões e emendas nas provas recebidas da editora responsável, a Garnier de Paris. Percebendo-se que o livro prometido ainda para 1899 insistia em não sair, acabou que a gráfica passou a compor o que tinha em mãos enquanto o exigente autor ia terminando de escrevê-lo… Quase se transformara num livro inacabado!

As considerações de cunho racial e civilizatório são a tônica de Canaã. Aliás, essas questões todas permeavam a mente do jovem escritor. As convicções e valores pessoais de Graça apontavam no sentido daquelas de Milkau. Sua ideia ao escrever o livro era exatamente colocar essas questões ao leitor. Ao lado disso, destaca-se no romance a natureza tropical, valorizada e descrita com lirismo.

Ao final do romance, Milkau e Maria, sua esposa, fogem para a mata em busca de Canaã.

A agonia de Milkau se desmanchava á vista da planície dilatada e bemfazeja, os ruidos desesperados e attrahentes do rio morriam atraz, o abysmo negro e assombroso passava como o tormento de uma vertigem; e agora elles se precipitavam n’uma campina suavemente esclarecida pela noite maravilhosa e limpida. Corriam, corriam… Atraz de si, ouvia ella a voz de Milkau, vibrando como a modulação de um hymno…

— Adeante… Adeante… Não pares… Eu vejo. Channan! Chanaan!

O romance foi muito bem recebido pela crítica, com apenas algumas vozes dissonantes, como Araripe Júnior e Sílvio Romero. Quanto ao público, um sucesso! Graça sentia um misto de surpresa e felicidade com tudo o que acontecia…

Enquanto isso, outro exigente romancista, Euclides, aguardava ansiosamente o lançamento de seu livro, para o qual deu o título Os Sertões. Começara a escrevê-lo logo depois que voltou de Canudos. Reuniu suas pesquisas realizadas nos arquivos da Bahia; revia seu diário e anotações do palco de guerra e, principalmente, tudo o que viveu e presenciou em Canudos. Havia quatro anos que morava com a família em São José do Rio Pardo, pequena cidade de São Paulo. Fora trabalhar na reconstrução de uma ponte que caíra. A rotina de serviço não o impedia de continuar a escrever seu livro, mesmo que num pequeno barraco de zinco à margem do rio, de onde conduzia os trabalhos na ponte. Certa vez chegou a ser visto correndo atrás de seus valiosos escritos levados pela ventania!

O que ia escrevendo mostrava a poucos amigos.

Escrevia e reescrevia, minucioso e exigente que era. Certa vez, insatisfeito com a descrição que dera a um estouro de boiada, pediu ajuda aos amigos. Como nunca tinha visto um estouro de bois, queria vê-lo descrito por alguém que conhecesse do assunto. Um amigo teve a feliz ideia de apresentar a Euclides um boiadeiro, homem acostumado a comboiar gado desde garoto. A descrição que o boiadeiro lhe dera foi eloquente, magnífica. Depois disso Euclides estava à vontade para descrever o estouro épico e sertanejo de “milhares de corpos que são um corpo unico, monstruoso, informe e indescriptivel de animal phantastico, precipitado na carreira douda”. Imponderáveis são as causas do estouro, assim como improvável é a vida que insiste em insurgir-se na secura do Sertão.

Desejava publicá-lo por inteiro, depois de pronto. Mas já havia quatro anos que publicou um trecho do livro no jornal O Estado de São Paulo, apresentando aos leitores uma descrição magistral do homem sertanejo:

Assim, o sertanejo é um forte, cuja energia contrasta o rachitismo exhaustivo dos mestiços enervados do littoral. Surge naquellas páragens com a feição firmemente accentuada de um lidador energico.

A sua apparencia, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrario. Não tem a plastica impeccavel, o desempeno, as linhas elegantes dos luctadores antigos. É sem elegancia e desengonçado. O andar sem firmeza, sem o aprumo dos organismos vigorosos, é quasi gigante e sinuoso, apparentando a translação de membros desarticulados; e a postura, normalmente indolente, semi-curvada, manifesta uma displicencia perenne. […] Mas toda esta apparencia de cansaço e todo esse achamboado, illudem. Naquella organisação, normalmente preguiçosa e como que combalida, opera-se, num segundo, uma transfiguração completa, ao sobrevir qualquer incidente que lhe exija o desencadear repentino da energia adormida apenas. O homem, de golpe, transmuda-se; empertiga-se soberano de força e de audacia; a cabeça firma-se energica sobre os hombros possantes, illuminada por um olhar atrevido; corrigem-se, prestes, todos os defeitos do relaxamento habitual dos orgãos; e, da figura deprimida do tabareo desgracioso, irrompe bruscamente a feição dominadora de um titão bronzeado e potente, num desdobramento surprehendedor de força e agilidade extraordinarias.

Com o passar do tempo, e à proporção que a nova ponte ressurgia sobre o leito do rio, o romance de Euclides
fazia-se realidade.

Depois de pronto, o escritor viu diante de si um calhamaço de 600 páginas! Seria difícil publicar um livro de tantas páginas, ainda mais de um escritor desconhecido como ele. Mesmo assim, procurou um editor, indo bater de porta em porta. Foi a São Paulo e deixou o livro na redação de O Estado de São Paulo, seria publicado em folhetins. Resultado: depois de seis meses, seu precioso trabalho continuava lá, esquecido sob a poeira. Euclides resolveu então ir para o Rio de Janeiro, quem sabe lá tivesse melhor sorte. Negativo: o Jornal do Commercio igualmente recusou publicar Os Sertões. E foi assim que, depois de meses de peregrinação, surgiu uma esperança: através de um amigo, foi bater na Livraria Laemmert e lá apresentou os originais de seu romance. O editor hesitou em publicar aquele volumoso trabalho de um escritor desconhecido. Era um risco, mas resolveu publicá-lo!

Euclides ficou num estado de nervos incrível. Por essa época, ele morava em Lorena, e de lá aguardava a impressão. Meses depois, Euclides é chamado ao Rio para ver as provas tipográficas. Quase teve um ataque de nervos! Quantos erros de revisão, inclusive dele mesmo — quantas crases inexistentes, quantas pontuações indevidas! O que fazer agora? Corrigi-los! E foi exatamente o que aquele minucioso e exigente escritor fez: raspou a canivete 80 erros em cada um dos dois mil exemplares! Foram, portanto, 160 mil erros raspados ao longo de dias e noites, num trabalho gigantesco! Os operários da tipografia simplesmente não acreditavam no que viam, aquele homem debruçado sobre volumes e mais volumes, catando e raspando erros em cada exemplar!

Terminada a revisão, já em dezembro daquele 1902, Euclides voltou para Lorena. O livro seria publicado no dia seguinte. Chegando à cidade, sua ansiedade era tamanha que o impeliu a sair por aí, viajando pelas redondezas. Não via a hora de ver seu livro nas vitrines das livrarias. E se não gostassem de sua obra? Se fosse um fracasso?

Notícias do livro, nada.

— Para que me fui meter eu nisso, senhores! — pensava.

Depois de oito dias andando a cavalo pelo interior de São Paulo, finalmente resolve retornar a Lorena. Na estação de Taubaté, onde pegaria um trem para Lorena, acontece o inusitado. Euclides estava no restaurante da estação quando entrou um homem alto, de guarda-pó. O escritor teve um sobressalto ao perceber o que aquele homem levava debaixo do braço: um exemplar de Os Sertões! Não tinha dúvidas, era seu romance! Aquele cidadão levava consigo um exemplar de Os Sertões!

Não se aguentando em si, interpela o homem:

— O senhor pode deixar-me ver esse livro?

Desconfiado e sério, o homem fitou Euclides, mostrando-lhe o exemplar de Os Sertões que trazia consigo.

Seu ímpeto foi de abraçar aquele cidadão, mas o circunspecto Euclides se conteve.

— Obrigado! — apenas agradeceu, emocionado.

O escritor voltou para a mesa com a cabeça a mil: como seu romance foi recebido? Gostaram? Não gostaram? E os jornais, o que diziam? Como aquele sujeito adquiriu o livro? Teria comprado ou fora presente? Ele estava realmente gostando ou apenas ostentava, andando assim com um livro tão volumoso?

Dúvidas e mais dúvidas de uma mente inquieta e torturada. Mal sabia ele que, em apenas oito dias, já havia se esgotado metade da edição! Cerca de mil exemplares! Mal sabia ele também que seu livro era sucesso de crítica e estava causando espanto e admiração nos meios literários…

ESCRITORES SÃO HUMANOS reúne histórias triviais da vida de alguns escritores brasileiros. Carlos Costa apresenta ao leitor o contexto em que obras clássicas da literatura brasileira foram realizadas e situações particulares e curiosas. Euclides da Cunha, Machado de Assis, Graça Aranha, Cruz e Souza são alguns dos que têm seu cotidiano relatado.

CARLOS COSTA, formado em Psicologia e Letras, atuou como psicólogo clínico e fez pós-graduação em Linguística. Atualmente, é servidor público federal e mora em Olinda-PE. Há alguns anos, começou a escrever sobre a vida dos escritores que fizeram a literatura brasileira, mas com uma perspectiva diferente: o cotidiano de cada um deles da porta de casa para dentro.

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