Curtas

'Mêike rás fân', terceiro álbum solo de Lirinha

O artista pernambucano dedica suas músicas às questões de humanidade

TEXTO Camila Estephania

03 de Julho de 2023

Lirinha transformou seu novo álbum num laboratório de criação artística, no qual a palavra tem ainda mais força

Lirinha transformou seu novo álbum num laboratório de criação artística, no qual a palavra tem ainda mais força

Imagem THAÍS TAVERNA/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 271 | julho de 2023]

Assine a Continente

Quando Lirinha se encontrava isolado em casa por conta da pandemia, deparou-se com as fotografias do buraco negro e teve uma inspiração. Tal enredo levou o compositor a escrever a música Estrela negríssima, que lembra os versos de Terra, em que Caetano Veloso admira a vastidão do mundo depois de ver as primeiras imagens do nosso planeta durante seu cárcere na ditadura militar. A música do pernambucano idealiza uma conexão pela poesia com todo o universo, quando ninguém podia sair do seu microcosmo particular. Depois de cinco anos focado no retorno do Cordel do Fogo Encantado, o vocalista da banda partiu dessa canção para a criação do seu terceiro álbum solo, intitulado Mêike rás fân, lançado em maio deste ano e disponível para audição nas plataformas digitais. O disco é assinado pelo artista como José Paes de Lira.

A centelha que deu luz à proposta foi a informação de que as fotografias do fenômeno espacial em questão haviam sido reveladas através de ondas de rádio. “Não são as ondas do rádio que a gente escuta, mas elas têm o mesmo conceito, que é a transmissão de informações. A partir daí eu comecei a entender que poderia existir uma estação interplanetária que seria receptora, transdutora e transmissora de mensagens entre a Terra e todo o universo. Para mim, é uma metáfora de ser artista, que interliga o micro ao macrocosmo”, explica o arcoverdense. Para concretizar esse canal, Mêike rás fân dá nome à rádio cósmica que ouvimos no álbum e também no podcast que está previsto para ser lançado este mês para completar o projeto, traduzindo velhos e novos anseios para outras dimensões.

Em busca de decifrar questões da humanidade, Lirinha propõe a criação de novos termos que deem significado a nuances comportamentais e sociais ainda indizíveis. Um exemplo é a faixa Oyê, cujo título foi inspirado na expressão “oie” – uma variação mais efusiva que os jovens criaram para o simples “oi”. Na canção, o compositor se dirige ao pai já falecido e fala que “a história não acabou, há palavras para inventar e te contar”, em um diálogo com o passado que revela a realidade como algo aberto à construção constante pelas palavras. “Palavras precisam ser inventadas, assim como movimentos artísticos, para a gente dar outros rumos aos nossos objetivos como sociedade. Eu espero por isso para que metáforas sejam criadas e a gente consiga compreender uma nova construção de existência”, observa Lirinha, que inventou o neologismo que dá título ao disco.

ARTESÃO DA PALAVRA

Apesar de palavras como “oyê” e “mêike rás fân” remeterem a expressões de origem afro-indígena, a associação não foi proposital. A formação dos termos é resultado da busca por uma sonoridade musical brasileira a partir da língua portuguesa, evidenciando a influência natural das culturas afro-indígenas no imaginário musical nacional, além de um trabalho de artesania literária que permeia toda a obra e faz parte de um longo processo de pesquisa em que Lirinha explora a lusofonia brasileira como comunicação. “As palavras limitam os nossos sonhos e construções futuras. Essas indagações todas participaram da minha escolha de ter a língua portuguesa como protagonista”, reforça o artista, que provoca os brasileiros a criarem palavras para significar sua realidade e, a partir disso, transformá-la, se preciso.

Embora a palavra sempre tenha tido um destaque especial nos projetos de Lirinha, neste álbum ela está mais forte do que se vê no Cordel do Fogo Encantado e nos seus discos solos anteriores. Após mais de 25 anos dedicados à fusão entre música, poesia e teatro, desta vez, ele conseguiu borrar ainda mais as fronteiras entre as linguagens artísticas e concluir o que considera o seu “disco dos sonhos”. Para chegar até aqui, parece-nos que Lirinha criou os trabalhos anteriores propondo transições que preparassem o público para este momento, em que canto e fala se fundem numa paisagem sonora.


Imagem: Divulgação

“Eu comecei como declamador de poesias; portanto, as minhas primeiras visões sobre arte nasceram e se solidificaram nesse ambiente. Amo muito esse lugar, tanto que nunca me desliguei da tradição dessa área”, explica ele, cujo início da vida artística em Arcoverde o levou à criação do espetáculo Cordel do Fogo Encantado. Ao misturar récita com uma trilha sonora focada, sobretudo, na percussão, o projeto foi um sucesso e deu origem à banda de mesmo nome. O primeiro disco homônimo do grupo foi lançado em 2001, sob a produção de Naná Vasconcelos. A escolha de um dos maiores percussionistas do mundo para conduzir o trabalho de estreia evidencia a importância que os tambores tinham para a sonoridade do grupo naquele momento.

Anos mais tarde, Lirinha rompeu com essa estética quando encerrou as atividades do Cordel do Fogo Encantado e lançou seu primeiro álbum solo, intitulado Lira, em 2011. O disco veio para dar mais espaço às bases harmônicas e aos arranjos melodiosos que ressaltam a poesia das letras. O título, trazendo o seu sobrenome tal como consta no documento de identidade, indica que o álbum é mais subjetivo do que o público já estava acostumado a ouvir. Essa proposta permaneceu em O labirinto e o desmantelo, seu segundo álbum solo, lançado em 2015, somando também referências eletrônicas que, depois, ganharam mais ênfase em outros projetos, como o espetáculo Poesia eletrônica.

Com a retomada do Cordel do Fogo Encantado em 2018, Lirinha parece finalmente ter se sentido à vontade para dar o salto de ousadia poética que vinha amadurecendo nos últimos anos. Enquanto a banda dá vazão à sua poesia mais musical, o Mêike rás fân é seu laboratório de criação artística mais radical. “Assumi a produção musical desse disco para chegar exatamente no que eu planejava e assim consegui trazer mais elementos dessa experiência de declamação, explorando o corpo da voz, o grão da voz. A música aqui é como uma sonoplastia dessas poesias”, observa o compositor, que desenvolveu os arranjos tendo como referência o uso da música na Rádio Arte.

ÁLBUM-PERFORMANCE

A partir dessa perspectiva, o som surge quase como uma ambientação para o teor cênico do texto. Para reforçar a expressividade do material, o músico convidou vozes que acrescentassem sentido ao projeto. Entre elas, está a atriz pernambucana Nash Laila, em Bebe, o coral Dan Maia, em Oyê, e as cantoras Iara Rennó, em Amor vinil, e Sofia Freire, em No fim do mundo. A única regravação do disco é Mesmo, do guitarrista Martin Mendonça, que ganhou letra de Lirinha. A faixa expressa os sentimentos de um músico durante as turnês e chega para ele como uma mensagem da rádio cósmica, quando sintonizada na estrada.

Outra assinatura presente no trabalho é a da escritora Micheliny Verunschk, na composição de No fim do mundo. O texto foi escrito quando o atentado ao World Trade Center, em Nova York, completou 15 anos. No disco, é uma metáfora sobre as mudanças socioculturais que o mundo viveu desde então. “Eu e Micheliny crescemos em Arcoverde juntos e ela sempre foi muito inspiradora para mim”, pontua Lirinha, que busca encontrar um ritmo próprio para a poesia dentro da música. No entanto, a canção que mais se aproxima desse objetivo no disco é O campo é o corpo, em que ele reflete sobre a conexão entre o espaço e o corpo. “É a consciência de que as transformações de um reconfiguram o outro”, resume.

A experiência de Lirinha como diretor e intérprete de peças teatrais, como Mercadorias e futuro, e sua colaboração na direção musical, assinada por Jorge Du Peixe e Berna Cepas, do espetáculo de dança O cão sem plumas, de Deborah Colker, cria expectativas sobre uma montagem especial para Mêike rás fân. Para levar o projeto ao palco, o artista está desenvolvendo um espetáculo performático que pretende ficar na fronteira entre artes cênicas, poesia e música. O caráter teatral do trabalho deve contar com o reforço de outras narrativas e com a participação de atores nos episódios do podcast homônimo que o artista planeja colocar ao ar.

CAMILA ESTEPHANIA, jornalista e mestranda em Comunicação pela UFF.

Publicidade

veja também

Carol Ito

Uma carta para Jane Austen

Ana Teixeira