Memória

Sonia Braga, uma história contada por imagens

Fotobiografia da atriz celebra a trajetória de um dos maiores ícones do cinema e da TV do Brasil

TEXTO Márcio Bastos

02 de Maio de 2023

Ensaio para a revista 'Vogue Brasil', em setembro de 2019

Ensaio para a revista 'Vogue Brasil', em setembro de 2019

Foto Henrique Gendre/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 269 | maio de 2023]

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Sonia Braga se inventou e reinventou muitas vezes diante das câmeras, seja como ela própria, a artista, a mulher, ou enquanto suas várias personagens marcantes, a exemplo de Gabriela (da novela homônima, de 1975), Dona Flor (Dona Flor e seus dois maridos, 1976), Júlia Matos (Dancin’ days, 1979), Leni Lamaison (O beijo da Mulher Aranha, 1985) e, mais recentemente, Clara (Aquarius, 2016) e Domingas (Bacurau, 2019). Sua trajetória funde-se à própria história do audiovisual brasileiro a partir da segunda metade do século XX, com papéis importantes também no teatro, marcando a cultura nacional de forma indelével. Instigado pela força imagética da atriz e de sua representatividade, o designer e jornalista pernambucano Augusto Lins Soares organizou o livro Sonia em fotobiografia, publicado pela Cepe Editora e Edições Sesc.

O desejo de debruçar-se sobre a vida e carreira de Sonia Braga move Augusto Lins Soares há tempos. Responsável pelas fotobiografias O santo revelado (Cepe Editora) e Revela-te, Chico (Bem-Te-Vi), ele se interessava pela complexidade da figura da atriz e sentia falta de uma obra que tateasse (sem necessariamente solucionar) o mistério e magnetismo que ela inspira. Quando, em 2019, Sonia veio ao Recife para lançar Bacurau, filme dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, ele conseguiu apresentar-lhe o projeto e ganhou o aval dela.

“Após a coletiva de imprensa de Bacurau, passamos duas horas falando sobre o livro. Mostrei para ela meus livros anteriores, inclusive a ideia que coloquei em prática no de Chico Buarque, no qual pedi para artistas plásticos fazerem sua própria leitura de retratos do artista. Ela achou a ideia bacana, mas disse que, no dela, gostaria que só estivessem imagens públicas e de acervo. Ela também quis que seus depoimentos fossem garimpados de entrevistas que deu ao longo da vida. Então, foi um processo, também, de garimpo desse legado, sempre com muita liberdade, pois Sonia não impôs qualquer tipo de restrição”, conta Augusto em entrevista à Continente.

Se, normalmente, o fio condutor das narrativas biográficas é o texto, neste projeto, foram as fotos que guiaram o processo. Na sua pesquisa, Augusto partiu de investigações digitais (no Google Imagens, site da Biblioteca Nacional, entre outros) e analógicas (arquivos públicos e, principalmente, o acervo da própria Sonia, guardados em suas propriedades em Niterói e em Nova York, onde reside) para começar a fazer uma espécie de storyboard, um quebra-cabeça a partir do qual poderia trabalhar com mais flexibilidade vários caminhos narrativos. Nesse percurso proposto pelo organizador, o leitor tem acesso a vários dados biográficos da artista, da infância em Maringá, no Paraná, até 2022, passando pelos seus principais feitos artísticos, além de fatos importantes de sua caminhada. Os textos são escritos pela jornalista Melina Dalboni, com trechos de falas de Sonia em entrevistas publicadas em diversos veículos ao longo da sua carreira, como solicitado pela biografada.

 


A atriz protagonizou o filme Tieta do Agreste (1996), que teve trilha
sonora de Caetano Veloso. 
Imagens: Acervo Sonia Braga/Divulgação;
Luiz C. Ribeiro/Divulgação

Como o próprio formato pressupõe, o livro não pretende ser um relato definitivo sobre a vida de Sonia. Sua força está na reunião cuidadosa de imagens, algumas de foro íntimo, mas, a maioria, tornadas públicas ao longo das últimas cinco décadas. Como fragmentos que, reunidos, formam um expressivo mosaico, essas fotografias enfatizam a importância cultural da artista, um ícone do cinema e da televisão, cujo impacto atravessa gerações.

Através das imagens, são reveladas passagens ilustres e também pouco conhecidas da carreira de Sonia, como o fato de que, após fazer amizade com Rita Lee, no período em que era assistente de palco no programa de Ronnie Von, Sonia foi chamada pela roqueira para ser a quarta integrante da banda Os Mutantes. O convite foi recusado pois a jovem, até então uma modelo em ascensão, buscava expandir seus olhares sobre o mundo, adentrando o universo da atuação através do teatro, e também dando seus primeiros passos no cinema, cuja estreia aconteceu em 1968, no filme O bandido da luz vermelha, de Rogério Sganzerla, no qual interpretava uma das vítimas do assassino.

“Como ela já falou, ela não é só Sonia Braga, a atriz, mas também Maria Sonia Campos, a mulher longe dos holofotes. Neste livro, tentei abordar esses dois aspectos, mas sem a obrigação de dar conta de toda a vida. Às vezes, uma foto era selecionada não por ser um marco artístico, mas por sua força plástica. Sonia tem um magnetismo muito forte, se sente à vontade em frente às câmeras, gosta de ser fotografada e também de fotografar”, ressalta o organizador.

Sonia, Richard Gere e Elizabeth Taylor em Nova York, 1987. Imagem: Acervo Sonia Braga/Divulgação

Além das imagens da infância e da juventude e também de seus trabalhos no audiovisual, entre cenas de novelas e filmes e seus bastidores, a fotobiografia também reúne registros de Sonia como personagem e observadora de momentos importantes da história brasileira e mundial, a exemplo do movimento das Diretas Já, quando discursou na histórica manifestação realizada na Praça da Sé, em São Paulo, em 25 de janeiro de 1984, na Ocupação Povo Sem Medo de São Bernardo, em 2017, que celebrou os 20 anos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MTST), e nas ruas do Rio de Janeiro, em 2019, em um ato em defesa da Amazônia.

TANTAS EM UMA
Com alguns de seus papéis, Sonia ficou imortalizada como uma espécie de síntese da brasilidade. Sua beleza sempre foi evidente, mas nunca óbvia. O magnetismo exercido por ela fascinou milhões de espectadores e também inspirou vários artistas, como Caetano Veloso, que para ela escreveu Trem das cores, música presente no álbum Cores e nomes (1982), diretores, como Bruno Barreto, Arnaldo Jabor e Héctor Babenco, estilistas, como Valentino Garavani, e fotógrafos renomados como Annie Leibovitz, Bob Wolfenson, Deborah Turbeville, Marco Glaviano, Marisa Alvarez Lima, Michel Comte, Paulo Vainer, Robert Mapplethorpe e Steven Meisel.


No longa-metragem Gabriela, cravo e canela (1983),
contracenou com o ator italiano Marcello Mastroianni. 
Imagem: Acervo Sonia Braga/Divulgação

“Sonia é muito conhecida como um ícone da beleza, o que de fato ela é. Mas ela também tem uma conexão com a moda. Estampou vários editoriais e foi solicitada por muitos estilistas. Essa relação dela com a moda se mantém até hoje, como se vê em eventos como a estreia de Aquarius, em Cannes (2016), quando usou um vestido assinado por Narciso Rodriguez (estilista americano de quem Sonia é amiga). No livro, busquei enfatizar essas relações às vezes de forma explícita, como nas imagens de ensaios, e também a partir dos encontros dela com figuras desses vários universos pelos quais transitou e transita”, comenta o autor.

Nem sempre conseguir as imagens para o livro foi um processo simples. Ainda que a atriz tenha um acervo robusto e conservado, outras imagens de interesse do pesquisador, achadas em sites, revistas e outros documentos, muitas vezes não eram encontradas em alta resolução ou enfrentavam algum outro tipo de entrave, como no caso das fotografias de Antonio Guerreiro (1947-2019), com quem ela foi casada. Por questões relacionadas ao espólio familiar, esses registros não puderam ser incluídos na obra.


Com Antonio Fagundes na novela Dancin’ days (TV Globo, 1978),
de Gilberto Braga. 
Imagem: Acervo Sonia Braga/Divulgação

“Em alguns casos, não consegui algumas imagens que eu queria, como da participação dela (no seriado estadunidense) Sex and the city. Então, encontrei outros caminhos, como, por exemplo, utilizar fotos de Sonia com as atrizes Sarah Jessica Parker e Kim Cattrall, protagonistas da série. Às vezes, para conseguir uma imagem, era preciso passar por até 20 pessoas, conversar com muita gente, fazer um verdadeiro trabalho de investigação e garimpo. A memória no Brasil, infelizmente, está cada vez mais ameaçada, com muitos arquivos importantes sendo tratados com descaso e, portanto, muitas imagens acabam se perdendo nesse processo”, lamenta.

Nas fotos resgatadas pelo livro há registros de encontros de Sonia Braga com artistas como Jorge Amado (que afirmou, em texto publicado na Playboy, em 1986, e reproduzido no livro, que o segredo da beleza única da atriz é “ser ela, Sonia Braga, filha do povo brasileiro, ou o próprio povo, quem sabe?”), Nelson Rodrigues, Gilberto Gil, Bibi Ferreira, Marcello Mastroianni, Federico Fellini, Elizabeth Taylor (Sonia namorou Christopher Wilding, filho da diva hollywoodiana), Bill e Hillary Clinton, entre outros.

No livro, além da ilustre carreira de Sonia Braga no audiovisual e no teatro brasileiro, reforça-se a expressividade da brasileira no cenário internacional, desde meados dos anos 1980. Durante sua carreira, além do aclamado O beijo da Mulher Aranha, indicado a quatro Oscars e vencedor na categoria de melhor ator, para William Hurt, a intérprete atuou em vários filmes e séries no exterior, como Lei & ordem (2003), Alias: codinome perigo (2003), Olhar de anjo (2001), Cidade do silêncio (2007) e Casamento armado (2023) – estes três últimos contracenando com Jennifer Lopez.

Com Lia de Itamaracá, no set de Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Imagem: Victor Jucá-Cinemascópio/Divulgação

Sobre esse longa-metragem mais recente, Lopez exaltou em entrevista recente o trabalho da colega brasileira, chamando-a de “uma atriz absurdamente incrível”. Também parte do elenco, o músico Lenny Kravitz postou em suas redes sociais uma foto com Sonia, dizendo-se abençoado por trabalhar com a brasileira. A imagem logo chamou a atenção do organizador Augusto Lins Soares, que conseguiu incluí-la no livro.

Além das imagens dos filmes, eventos, ensaios para revistas e ações publicitárias, chama a atenção no volume a reunião de registros feitos pela própria artista, como a imagem que fez de sua câmera das torres do World Trade Center após o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, em Nova York, cidade onde vive desde 1990. Ou ainda os cliques feitos na Índia, onde participou da série What’s going on?, promovida pelas Nações Unidas.

Uma das fotografias mais poderosas do trabalho foi compartilhada pela própria Sonia em seu Instagram, em 2020, para marcar a chegada dos seus 70 anos. Com os cabelos brancos e esvoaçantes, ela celebra a vida, sua caminhada, e também ajuda a revelar um pouco mais da sua subjetividade. Sai do lugar de ser representada para se representar, a partir do seu olhar (ainda que, em frente às câmeras, Sonia nunca pareça ser apenas fotografada, mas parte ativa da construção da imagem, com sua presença impactante).


Ensaio para a revista Marie Claire, junho de 2006. 
Imagem: Murillo Meirelles/Divulgação

“Vou completar 70 anos, mais de 50 deles dedicados à arte – cinema, televisão e uma rápida passagem pelo teatro. Há ainda muitas outras coisas que gosto de fazer, mas não são públicas – escrever, desenhar, fotografar, passear são alguns desses meus outros prazeres. Às vezes, compartilho uma foto, um pedacinho do céu, e assim revelo o meu olhar e deixo entrever o que vai na minha alma. São apenas ensaios e um olhar diferente de um ponto de vista sem controle, sem censura, sem direção… Apenas o meu olhar vendo o mundo com amor e esperança”, escreveu, na legenda da imagem.

Sobre o resultado final do livro, ela, que não participou da seleção das imagens, oferecendo apenas ajuda para elucidar alguns fatos e checar algumas fontes, quando necessário, se mostrou surpresa e emocionada. Ao organizador Augusto Lins Soares, escreveu uma mensagem expressando a sensação de ver sua história reunida ao longo das 256 páginas. “Augusto querido, que trabalho lindo, imagens (e quantas) que eu não conhecia. Só via as fotos, e depressa, com ansiedade. Você pode imaginar?”, escreveu. “É um mergulho muito profundo.”

MÁRCIO BASTOS, jornalista.

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