Portfólio

Rafael Bqueer

O desvio do desvio

TEXTO Bárbara Buril

02 de Maio de 2023

A obra 'Vestido-língua' foi usada em ensaio fotográfico no barracão da Acadêmicos do Grande Rio, em 2022

A obra 'Vestido-língua' foi usada em ensaio fotográfico no barracão da Acadêmicos do Grande Rio, em 2022

Foto Íra Barillo/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 269 | março de 2023]

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A dissidência dentro da dissidência é o que torna autêntico o trabalho da artista paraense Rafael Bqueer, habitante de um corpo preto não binário (ou, em linguagem não androcêntrica, de uma corpa preta não binárie), cuja condição de existência depende de um questionamento constante das normas sociais. O que significa dizer que um trabalho “desvia o desvio”? Seria este um arranjo bonito de palavras que poderia ser aplicado à arte no geral?

Não. O que é particular às criações de Rafael Bqueer são conversas com a divergência, ao mesmo tempo em que o que se cria destas pesquisas é um novo desvio. A artista, como ela mesma diz, “hackeia” tudo o que toca. Para servir ao lugar de onde veio e para onde quer ir, ela subverte o que pedem as normas das drag queens, da cultura pop, do campo da arte, do Carnaval.

O desvio não tem fim.

Mas ele começou em 1992, em Belém do Pará, onde nasceu. Neste lugar ao Norte, tido como periferia nacional, mas onde a vida cultural pulsa a despeito da ignorância dos outros, Rafael cresceu sob a influência encantada dos desfiles de moda, do Carnaval e da cultura pop. Quando adolescente, desenhava fantasias e postava os croquis no Orkut. Até que, aos 15 anos, é chamada por um carnavalesco de Belém para ser a sua assistente na criação dos desfiles das escolas de samba paraenses Embaixada de Samba do Império Pedreirense e Império de Samba Quem São Eles.

Assim, o seu contato mais forte com a arte – em seu sentido amplo, para além do cubo branco – foi no carnaval de Belém, onde questões políticas se infiltravam pelas camadas de uma festa celebrada por corpos negros e LGBTQIA+ das periferias da cidade. Não era a mera dissidência que atravessava o “carnaval de base”, aquele que não é o do comando branco, mas o da festa popular e preta, como ocorre no Rio de Janeiro, mas era mais do que isso: era isso tudo, só que em Belém. O desvio do desvio.

Foi a experiência do Carnaval – as suas roupas e performances, a sua política e a sua dissonância complexas – que levou Rafael a estudar artes visuais. Como previsto, encontrou-se com as belas-artes na faculdade, mas apostou já de início na fotografia. Isso porque parte dos professores do curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará (UFPA) tinha um envolvimento com a escola de fotografia Foto Ativa, que formou diversas gerações de fotógrafos na região amazônica através da incorporação da geografia deste território em processos de experimentações fotográficas.


Pintura Neon, Salvador-BA, 2020. Foto: Shai Andrade/Divulgação

Rafael decide não seguir a norma artística eurocêntrica que diz que arte é pintura e desenho, por acreditar que a sua arte é outra, mas também pelas influências de professores que incentivavam a experimentação e o desvio. “A professora Zélia Amador de Deus e o professor Arthur Leandro Marajo, corpas pretas no curso de Artes da UFPA, são nomes que precisam ser mencionados como influências naquele contexto”, nomeia a artista. Era uma época especial, que, como sabemos, logo foi envenenada pelos anos seguintes de governo Bolsonaro. “Aquele era o momento no Brasil em que as políticas de cotas autorizavam corpos dissidentes a falar de suas próprias vivências na universidade”, relembra a artista.

Enquanto estudava Artes Visuais na UFPA, Bqueer ganhou uma bolsa de mobilidade estudantil e foi estudar por seis meses na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Era a realização de um desejo antigo de vivenciar o carnaval de escola de samba em sua versão grandiosa, complexa, “central” (o Rio) e industrial. “Eu pensava: é agora que eu vou me jogar nos barracões das escolas de samba do Rio de Janeiro”, conta a artista.

Na prática, a realidade foi um pouco diferente. A bolsa de mobilidade era magra, a artista não tinha família na cidade, a faculdade era basicamente uma faculdade de belas-artes, o Rio de Janeiro se mostrava extremamente pentecostal e, por fim, o Carnaval revelava-se um teatro de desigualdades. Quem movia a moenda da festa eram pessoas negras, mas quem criava, comandava e orquestrava tudo aquilo eram homens brancos. A idealização do Rio de Janeiro meio que foi para o ralo. “Porém, foi a complexidade social dessa cidade que fez com que o meu trabalho fosse político. Ele já era, em certo sentido, politizado, mas foi lá onde ele ficou político”, explica.

Depois dos seis meses de mobilidade, Rafael conseguiu passar mais seis meses na cidade devido a um estágio no Museu de Arte do Rio (MAR) e a uma residência artística no Parque Laje. Como acontece normalmente nos museus de arte no Brasil, o estudante é contratado para integrar o setor educativo, mas, na prática, em vez de realizar atividades de educação de público, o que faz é monitorar os visitantes e realizar pequenas tarefas burocráticas. No Parque Laje, em contrapartida, Bqueer começou, de uma maneira mais intencional, a pensar o seu próprio trabalho artístico.

Durante essa pesquisa, percebeu que fazia parte, sim, de uma tradição, formada por artistas como a performer e transformista Madame Satã, a personagem Vera Verão, de Jorge Lafond, a artista e youtuber Leona Vingativa, entre tantas outras. A seus modos, todas elas questionaram os seus corpos e gêneros e exploraram as possibilidades de questionar normas sociais que residem na cultura pop. A grandiosa e diversa criatividade do carnavalesco Joãosinho Trinta também é uma outra fonte de inspiração para Bqueer.

***

Desse caldeirão de possibilidades, surgiu Alice e o chá através do espelho. Nesse trabalho, Rafael veste o figurino tradicional da personagem Alice, de Lewis Caroll: um conjunto específico inconfundível, em que um vestidinho azul bebê combina-se a um avental branco cheio de rendinhas. Vestida de Alice e com a cabeça raspada como a Vera Verão, Bqueer realiza diversas performances por quatro anos. Passeia por entre as salas do MAR, sobe e desce o Morro Dona Marta, anda pelo Lixão do Aurá, em Belém, limpa as escadarias da Casa França Brasil, entre outros lugares.


Alice e o chá através do espelho, Belém-PA, 2014. Foto: Paulo Evander/Divulgação

Subversão: Bqueer não previu, mas as pessoas viam, no lugar da Alice, uma empregada doméstica. “Veja só, que curioso. Eu tenho certeza de que, se fosse uma pessoa branca com esta roupa, ela não seria confundida com uma empregada doméstica. Eu achei isso fantástico”, conta a artista, para quem Alice foi a sua principal escola de experimentação em fotoperformance. De 2013 a 2017, foram quatro anos de intimidade com um trabalho que não tinha pressa para terminar. “Eu comecei a perceber, depois de um tempo, que esse tipo de mergulho profundo em um trabalho artístico é bem típico do Norte do Brasil. Veja a fotógrafa Paula Sampaio, por exemplo, que, há 30 anos, registra o cotidiano das comunidades que vivem às margens das estradas abertas na região amazônica”, conta Bqueer.

Em 2014, nas primeiras edições das festas do coletivo Noite Suja, Bqueer começou, com outras artistas LGBTQIAP+ da cidade de Belém, a realizar experimentos coletivos de montação, que é a arte de incorporar elementos e adornos que borram as fronteiras pré-concebidas de gênero e sexualidade. Embora a arte drag servisse de inspiração, ainda que remota, para esse laboratório, o que surgiu dele foram as Themônias, versões imperfeitas, “monstras” e tropicais das drags, em um contexto no qual a precariedade e a força de uma comunidade são abraçadas como potencialidades criativas. “Nós não começamos sendo drags, nem com o desejo de ser drags. Estávamos nos montando numa proposta visual mais clubber, andrógina e freak”, explica Bqueer.

“É preciso se lembrar de que as drags são figuras estrangeiras. Elas usam maquiagens que não existem aqui, usam roupas que são quentes demais para o nosso contexto, além de que as drags também buscam uma perfeição eurocêntrica. Já as Themônias são a nossa versão local das drags. Nós usávamos o que estava ao nosso alcance e ali inventávamos. As Themônias são a representação daquela loucura que faz com que realizemos algo do nada”, explica Bqueer, mostrando, mais uma vez, o que é subverter a subversão, pois, se ser drag já significa tensionar a norma, ser Themônia é mais do que isso: é subverter a drag.


Themônias, Mercado Ver-o-Peso, Belém-PA, 2022. Foto: David Pacheco/Divulgação

Bqueer saiu de Belém, mas as Themônias continuaram lá e hoje elas são mais do que um coletivo. São “um movimento artístico no inferno amazônico”, como se definem. Além disso, a relação de Bqueer com elas não é apenas de fundação, mas também de cultivo e projeção: a artista realizou, em 2022, uma série de quatro curta-metragens com ações performáticas realizadas pelo coletivo/movimento nas cidades de Belém e Manaus.

A “montação” de Alice e das Themônias também se faz presente em outra fotoperformance, chamada de Super Zentai, realizada de 2017 a 2019. Neste trabalho, a artista convida às ruas do Brasil os Power Rangers em versão “zentai”, ou seja, usando roupas de práticas sexuais fetichistas, que deixam descobertas as partes do corpo de quem está fantasiado, ao mesmo tempo em que preservam o seu anonimato ao cobrir seu rosto. Por que alguém do Pará faria uma performance com Power Rangers? Primeiramente, porque a cultura pop japonesa influenciou toda uma geração de jovens brasileiros que cresceram nos anos 1990 assistindo televisão.

Existe algo mais afetivo do que lembrar os nomes dos Pokémons e Digimons? Quem não queria ter um em casa? E as enquetes sobre “quem você seria se fosse um Power Ranger?” e a resposta sempre revelava identidades de gênero desviantes ou conformes. Secundariamente, porque o Pará é o terceiro Estado do Brasil em maior número de imigrantes japoneses, depois de São Paulo e Paraná. No Pará, a cultura dos animes, séries, cosplays e mangás simplesmente bomba.


Super Zentai, São Paulo, 2017. Foto: Gustavo Damas/Divulgação

No dia 13 de maio, Rafael Bqueer inaugura uma nova exposição em São Paulo, onde hoje vive. Desta vez, no espaço expositivo Lanterna Mágica, anexo ao Projeto Vênus, de Ricardo Sandberg. A curadoria é de Eli Sudbrack. Chamada de Ex-cêntrica (e aqui se denuncia novamente a tensão com a norma), a artista continuará a trazer narrativas periféricas, com bandeiras, objetos e esculturas que aludem à cenografia da cultura ballroom, surgida nos subúrbios de Nova York, mas disseminada para vários outros lugares do mundo através da cultura pop.

Aliás, são a cultura ballroom e a dança voguing que têm mais interessado Bqueer nos últimos tempos. Se, em Belém, as Themônias brilham em termos de subversão e arte, as drags de São Paulo já soam, para ela, normativas demais. “Aqui, as drags são perfeitas porque querem ser cooptadas pelo sistema, pela televisão, pelas festas mais renomadas e assim vai. Assim, no momento, o que mais tem me provocado em São Paulo é a cultura ballroom, que tem ficado muito forte aqui”, justifica a artista. Em posição crítica com o sistema e com a crítica ao sistema, Bqueer vê para além do que é normativo e não normativo, pois ela vê das margens e do centro e, se é do centro que se é visto, é das margens que se vê melhor.

BÁRBARA BURIL, jornalista e doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Filosofia e graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco. Além disso, vegana e amante da natureza.

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