Memórias interrompidas – Testemunhos do sertão que virou mar
TEXTO Yuri Euzébio
02 de Maio de 2023
Lianne Ceará registra as memórias da população de Jaguaribara (CE), cidade que teve sua área original transformada em açude
Foto Acervo pessoal/Cortesia
[conteúdo na íntegra | ed. 269 | março de 2023]
O líder religioso Antônio Conselheiro bradou, em 1833, ainda no século XIX, a profecia de que o sertão ia virar mar, quando o beato cearense de Quixeramobim fundou o Arraial de Canudos, no sertão da Bahia, que viria a se tornar o histórico palco da Guerra de Canudos, relatada por Euclides da Cunha em Os sertões.
Mal sabia ele que no seu próprio estado de origem, o Ceará, a cidade de Jaguaribara iria cumprir a profecia, ao ser inundada para dar espaço ao açude Castanhão. O processo todo foi documentado na obra Memórias interrompidas – Testemunhos do sertão que virou mar (Editora Caminhar, 100 pp), da jornalista Lianne Ceará, que foi criada no município projetado a partir da implementação do Castanhão, a “nova” Jaguaribara”, a 250 km de Fortaleza, que completa 22 anos em 2023.
“Eu vivi a minha vida toda em Jaguaribara e fui pra Fortaleza fazer a faculdade, sempre me perpassaram muito essas questões da mudança de cidade. Eu lembro que várias vezes, eu pequena, perguntava para os meus pais como era na antiga cidade”, comentou. No livro, que é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso de Lianne, a autora une jornalismo, antropologia e historiografia para construir, ou melhor, ir tecendo como em um novelo, a memória de um povo e de um local e assim salvaguardá-la.
A obra conta – a partir dos testemunhos de quem morava na “velha” Jaguaribara e foi (ou não!) para a “nova” cidade – como foi todo o processo, as perdas, dificuldades e saudades que fizeram parte da mudança. “Uma das primeiras aulas que eu tive foi de Antropologia e que ficou muito marcada em mim; tanto é que é um instrumento que eu uso no livro, em que a professora falou sobre a cultura ser uma teia de significados e também sobre algumas quedas de cultura, mortes culturais e tal e já ali falei de Jaguaribara.”
De acordo com a jornalista, naquela mesma aula, a professora falou que ela tinha a obrigação de colocar essa história no mundo. Isso a fez refletir sobre o quanto as pessoas não conheciam a história da sua cidade. “Eu estava em Fortaleza, capital do Ceará, e mais da metade da minha sala e a professora não conheciam a história de Jaguaribara, isso me acendeu uma luz.”
A população de Jaguaribara foi realocada para a construção do Açude Castanhão, que é o maior reservatório de água doce do Ceará, com uma capacidade de armazenamento total de 6,7 bilhões de metros cúbicos. Uma obra faraônica do então governador Tasso Jereissati (PSDB) visando acabar com a seca no Estado. Para isso, ele simultaneamente construiu a nova Jaguaribara, primeira cidade totalmente planejada do Ceará, aonde os moradores da cidade foram. Ou seja, toda a população da cidade foi realocada numa ruptura com a sua própria história, deixando para trás suas vivências, memórias e identidade em nome de um suposto progresso.
O livro tem ilustrações da artista plástica Aryane Siebra. Imagens: Reprodução
Após uma temporada de intercâmbio em Portugal, onde se aprofundou nos estudos em Antropologia, Lianne voltou decidida a contar essa história com o apoio dessa área de estudo. Inicialmente, pensava em tomar uma abordagem mais focada no jornalismo investigativo. “Aí entrei na revista Piauí como estagiária e aprendi a fazer esse jornalismo de narrativas que é perfeito para o livro, porque ele é feito, sobretudo, para a população de Jaguaribara e por essa gente também.”
A ideia de Lianne foi fazer jus à memória do povo de Jaguaribara contando a história sob a ótica deles, que ao longo do processo pouco puderam participar das decisões. “Eu não queria dar voz às pessoas que sempre são ouvidas e essa é uma outra questão que sempre me perpassou, porque todo ano era assistir televisão no aniversário de Jaguaribara, a primeira cidade planejada do Ceará, e quem era entrevistado? Tasso Jereissati. Ele nunca esteve em Jaguaribara velha, a não ser em época de campanha eleitoral”, esclarece.
Segundo Lianne, houve mais de 100 reuniões na cidade durante o processo em que a população tentou se organizar para resistir à mudança e o político nunca esteve presente ou mostrou disponibilidade. “Isso me afetava muito, ele nunca estar lá e as pessoas só darem ouvidos a ele como um representante da cidade.” O valor da memória e das relações das pessoas com o local em que moram não foram levados em consideração pelas autoridades, quando decidiram tirar todos os moradores de Jaguaribara para a construção do açude Castanhão e isso espelha muito a baixa importância que o país, em geral, dá a essas dimensões.
“Muita gente acha que porque Jaguaribara é uma cidade muito pequena no interior do Ceará, com 11 mil habitantes, está descolada do país; e não está. O processo de ruptura que aconteceu na cidade, a morte cultural que houve, o extermínio dos índios Jaguaribaras lá no começo é um retrato puro do Brasil”, afirmou.
Os relatos no livro comprovam que Jaguaribara é um caso de cidade que foi arrasada pelo progresso, se é que é possível classificar assim. “Progresso para quem? Desenvolvimento para quem? Essa é uma questão que me norteou durante todo o processo do livro”, pontuou.
Para se ter uma ideia, a nova sede da cidade foi projetada para 75 mil habitantes, cerca de sete vezes mais que a quantidade de moradores da antiga. Resultado: hoje, o município é repleto de espaços de convívio social vazios, enquanto que na “velha” Jaguaribara as praças eram movimentadas e faziam parte da rotina dos moradores.
No livro, a história é dividida por capítulos bastante sugestivos: As casas, As ruas, As praças, Os rios, As igrejas e As cidades. E cada capítulo abre com uma ilustração da artista plástica Aryane Siebra, que também assina a capa do livro.
Em cada um desses capítulos, a jornalista vai desvelando a história da cidade e retratando diferenças entre a “nova” e a “velha” Jaguaribara a partir da ótica dos atores sociais desses lugares. Para o capítulo Os rios, por exemplo, entrevistou uma lavadeira; para As igrejas, uma freira que foi líder comunitária da resistência contra o Castanhão. “O processo de escolha dos personagens foi difícil, porque o que eu pensava era colocar todo o mundo de Jaguaribara no livro. Só que, ao longo da faculdade, fui fazendo vários trabalhos sobre Jaguaribara e aí, com o tempo, eu fui filtrando”, detalhou.
De acordo com Lianne, foi um processo ao mesmo tempo doloroso e gratificante mergulhar em cada vivência dos personagens, mas tudo foi por um motivo maior. “Eu fiz esse livro também para ele ser incorporado na base curricular das escolas de Jaguaribara, sabe? Porque eu acho que as crianças e jovens têm que conhecer a história da cidade. Se a gente só conhece o macro da história de Jaguaribara, mas não associa com o micro, é como se estivéssemos apagando a nossa própria memória, que é o que acontece até hoje em Jaguaribara”, definiu a jornalista, cujo livro está à venda nas suas redes sociais e no site da editora.
YURI EUZÉBIO, jornalista