Heinrich Böll: Diários de guerra
TEXTO Kelvin Falcão Klein
02 de Maio de 2023
Heinrich Böll
Foto Böll Bavarian/State Library/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 269 | março de 2023]
Nascido em 1917, Heinrich Böll era apenas um bebê quando terminou a Primeira Guerra Mundial; quando eclodiu o segundo conflito, contudo, Böll já era um rapaz plenamente apto para o combate. Ele é convocado ainda em agosto de 1939, antes mesmo da invasão da Polônia por parte da Alemanha, que ocorre em setembro. Contrariando as expectativas, Böll sobrevive até sua libertação de um campo de prisioneiros mantido pelos Aliados, ocorrida em setembro de 1945. Além da sobrevivência, outro feito marcou os quase sete anos da experiência bélica de Böll: ele conseguiu manter um diário da guerra, apesar das marchas forçadas, dos tiros, dos bombardeios e da vida precária nas trincheiras, nos vagões de trem e nas enfermarias. As cadernetas que sobreviveram, do período 1943-1945, foram transformadas no livro Às vezes dá vontade de chorar feito criança – Os diários de guerra de 1943 a 1945, organizado pelo filho do escritor, René Böll, lançado recentemente no Brasil pela Carambaia, com tradução de Maria Aparecida Barbosa.
Autor de uma vasta obra, tendo publicado romances como Onde estiveste, Adão?, de 1951, e A honra perdida de Katharina Blum, de 1974, Böll foi bastante celebrado ainda em vida, recebendo o Prêmio Nobel de Literatura em 1972. Ele se consolida como autor no contexto alemão do pós-guerra, um período de tensão entre as forças do esquecimento e as forças da responsabilização – o que fazer diante do legado do nazismo? Como construir um futuro que não seja paralisado pelo peso traumático do passado? Um testemunho dessa tensão está na publicação póstuma de um dos romances mais conhecidos de Böll, O anjo silencioso, concluído em 1950 e só lançado em 1992: conta a história de um soldado que volta para casa e encontra uma quantidade quase insuportável de destruição e desespero. A paisagem doce da infância é, agora, um amontoado de escombros; o odor do pão recém-feito e das compotas recém-abertas é substituído pelo cheiro da fumaça e dos cadáveres em decomposição.
O anjo silencioso foi recusado pela editora – depois de meses de hesitação – quando Böll o apresentou, na década de 1950. Por conta da carga autobiográfica do romance, ele pode ser lido com proveito em paralelo aos diários de guerra. Um dos pontos mais controversos do romance, por exemplo, diz respeito à falsificação de documentos feita pelo soldado, para que pudesse ficar mais tempo de licença – uma manobra utilizada pelo próprio Böll e detalhada nos diários. As naturezas muito distintas dos textos também contribuem para uma leitura conjunta: aquilo que o diário tem de imediato, o romance tem de expansivo, detalhista; aquilo que o diário tem de enigmático, o romance tem de explicativo. O contexto de fundo, no entanto, é o mesmo, aquele da devastação da guerra e da onipresença da destruição (ainda que o romance se concentre na cidade de Colônia, enquanto os diários acompanham Böll do litoral da França ao litoral da Ucrânia).
A edição da Carambaia torna visível a materialidade do acervo de Böll, as cadernetas, sua caligrafia. Imagens: Editora Carambaia/Reprodução
O material que lemos hoje é apenas uma parte do que foi escrito por Böll – as cadernetas anteriores a 1943 foram perdidas ainda durante a guerra. “Por sorte tenho o suficiente para fumar, mas nada de fósforo desde que toda a nossa bagagem foi perdida”, escreve ele em uma carta para a família de 23 de novembro de 1943. Os registros nas cadernetas, com frequência, são sempre velozes, difíceis de entender, razão pela qual a edição, em alguns momentos, indica passagens ilegíveis. Durante as ofensivas, Böll ainda assim escreve, mesmo que breves palavras, nomes ou expressões. O nome da namorada, depois esposa, “Anne-Marie”, é recorrente, bem como menções a Deus – “Deus vive!”, “Deus me ajude!”, “Somente Deus pode me ajudar!”, “Sim, Deus existe!”, “Deus tenha piedade de nós!”, “Valha-me Deus!”. Em paralelo, igualmente sucintas descrições da precariedade da situação durante o conflito: “Desgraça! Aflição, sujeira e miséria”, “Bebi água de charco!”, “Fogo cerrado”, “Desembarque no Ocidente!”, “Piolhento, sujo, miserável, febril, com dor de cabeça!”.
O que primeiro impressiona, já na abertura dos diários, é a extensão da viagem que o soldado precisa fazer para chegar ao fronte de batalha. A Divisão de Böll está estacionada na Normandia, em outubro de 1943, e precisa chegar até Kalinovka, na Ucrânia, para daí partir, de avião, saindo de Odessa, até a península da Crimeia, para entrar em ação em Querche. O percurso total chega perto dos 4 mil quilômetros de extensão, da beira do Canal da Mancha até a ponta da península que leva aos Montes Cáucasos, disputada pelos exércitos alemães e russos. “Os russos ocupam à noite o alto à nossa esquerda”, escreve Böll nos diários em 13 de novembro de 1943. Dois dias depois: “Durante o dia, artilharia, lançadores de granadas e metralhadora direcionados ao nosso deplorável buraco”. “Completamente sujo e miserável”, ele anota outros dois dias depois, até que no dia 21 de novembro Böll é ferido: “no dedão do pé direito um buraco da espessura do polegar. Minhas meias, o cheiro de 14 dias de sangue velho”.
Em 23 de novembro de 1943, Böll fala de um “exército de piolhos” que o está levando à loucura, impedindo o sono e o repouso, causando feridas na pele por conta da coceira. De quando em quando, os diários registram a atividade de “despiolhamento”, que visava prevenir os surtos de tifo: “finalmente sem piolhos e para a sala de cirurgia!”, escreve em oito de dezembro de 1943, só para ser ferido de novo três dias depois (um tiro “transpassando as nádegas”). Essa sequência é muito representativa de uma dinâmica entranhada não só no diário de Böll, mas na guerra de uma forma geral – uma dinâmica de “enxugar gelo”, de “trabalho de Sísifo”, ou seja, de atividades repetitivas que muitas vezes levam ao mesmo ponto de partida (como o ferido que passa por cirurgia, retorna ao fronte e é ferido novamente). “Pobreza total no hospital de campanha”, escreve Böll, e completa: “noite horrível cheia de dores e diarreia”; “a noite e o frio, a latrina”.
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A vida do soldado, no entanto, não é feita apenas de piolhos e ferimentos. Os diários registram alguns momentos de suspensão e distração, especialmente quando as tropas são liberadas para frequentar os cinemas: “o primeiro filme em sete meses”, escreve Böll em 10 de janeiro de 1944, quando assiste Tonelli, de Viktor Tourjansky. Vinte dias depois, Böll vai a um cinema ucraniano por acaso, “correndo o risco de não entender nada”, mas tem uma surpresa, já que o filme foi projetado em alemão com legendas russas – “chorei de tanto rir”, ele escreve. Nesses momentos, é possível observar a parte da personalidade de Böll sobreposta à experiência da guerra, como uma espécie de teimosia diante da imposição brutalizadora do contexto. Ele não apenas se esforça para continuar a ver filmes e ler livros – sempre que possível –, mas intensifica o esforço no próprio exercício da escrita do diário e das cartas. Böll parece querer mostrar para a família, e para si próprio, que existe ainda uma pequena parte de “independência” em seu cotidiano, de manutenção de uma “vida do espírito” que existia antes (e existirá depois) da convocação, da guerra, das batalhas e das trincheiras.
Outro aspecto luminoso dos diários de Böll está em sua insistência no registro dos sonhos – mais uma vez se nota o esforço do escritor de apresentar uma dimensão da experiência alheia às “tempestades de aço”. “Sonho maravilhoso com uma livraria e com Anne-Marie”, ele escreve em seis de março de 1944. “Sonho confuso com papai”, em 13 de dezembro de 1943; “Sonho: confuso, estou trabalhando com Alfred numa obra importante em uma posição superior”, em 22 de dezembro de 1943; “Sonho: estou fazendo compras de Natal numa livraria”, em 24 de dezembro de 1943; “Sonho: conto para Alois as vivências da guerra e nisso torno a vivenciar as 4 semanas na Crimeia”, em 25 de dezembro de 1943; “Sonho: abraço Anne-Marie”, em 28 de dezembro de 1943; “Sonho maluco: num transporte perco a minha bagagem, sou deixado para trás pelo sargento Genreith”, em cinco de janeiro de 1944; “Sonho: um casal idoso atravessa um rio rastejando”, em seis de janeiro de 1944.
Os sonhos de Böll agora fazem parte de uma sorte de repositório onírico da Segunda Guerra Mundial, um tema levado à superfície pelo excelente, e já clássico, livro de Charlotte Beradt, Sonhos no Terceiro Reich: com o que sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler. Theodor Adorno também anotou seus sonhos durante a guerra, quando vivia no exílio nos Estados Unidos, registros que mostram a relação estreita entre trauma, inconsciente e resistência (o livro Sonhos foi publicado postumamente em 2005). É possível também relembrar o caso de Primo Levi, sua experiência nos campos nazistas e seu sonho recorrente, relatado no livro É isto um homem?: ele volta para casa, sentindo uma “felicidade interna, física, inefável”, conta sua história para a família, mas percebe que ninguém escuta, “parecem indiferentes”, “falam entre si de outras coisas, como se eu não estivesse”. Com isso em mente, os sonhos de Böll ganham nova luz: a insistência do registro é um sintoma de resistência, de tentativa de fuga de uma realidade homogeneizada, militarizada, bestificada.
Por fim, é preciso enfatizar o acerto da edição brasileira em sua materialidade, o modo como torna visíveis, ao leitor, as cadernetas de Böll, sua caligrafia, suas lacunas, a feição do papel, das capas, das guardas. As cadernetas estão reproduzidas em seu tamanho original, com todas as páginas visíveis, acompanhadas da transcrição e tradução das anotações. Notas informativas dão detalhes sobre o contexto, ampliando e aprofundando as menções feitas por Böll. As anotações sucintas do diário são contrabalançadas pelas informações detalhadas do aparato crítico, muitas vezes retiradas dos relatórios das forças armadas alemãs (“o inimigo atacou com o apoio de um total de quarenta tanques as posições às alturas 34,0 e 133,3”). O esmero da edição transforma a experiência de leitura: as imagens evocam um mergulho nos arquivos, uma celebração crítica dos espectros do passado e de seus resíduos.
KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de O olho Sebald (2021).