Araguaia, memórias de lendas e sangue
Em seu novo livro, 'Araras vermelhas', a poeta Cida Pedrosa faz um remonte da Guerrilha do Araguaia, com um memorial das vítimas da violência do Estado brasileiro na ditadura
TEXTO Romero Rafael
02 de Maio de 2023
'Postcards from Brazil' (2016-2020), Gilvan Barreto, série de arte postal
Imagem Fotografias e recortes em dimensões variadas/Cortesia do artista
[conteúdo na íntegra | ed. 269 | maio de 2023]
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Junto à revoada das Araras vermelhas de Cida Pedrosa só se levanta voo de ida. Em toda poesia em que a gente, de fato, embarca, talvez seja possível apenas partir e jamais retornar – nesta, particularmente, a viagem não tem volta porque é feita até um horizonte que, embora desenhado para ser alcançado, foi borrado pelo Estado brasileiro. A Guerrilha do Araguaia é um lugar onde só se faz resgates. De pessoas transformadas em lendas, movimentos convertidos em vultos, sonhos vertidos em sangue.
Nesta obra, um (longo) poema-voo de 140 páginas, a autora nos leva à floresta amazônica, mais precisamente ao curso do Rio Araguaia de quando araras vermelhas de espécie humana pousaram nas suas margens, entre os anos finais da década de 1960 e os iniciais da seguinte. Para voarem, e libertarem outros, da gaiola que detinha este país.
Um poema-voo para ser feito num bom fôlego, preferencialmente sem paradas – senão curtas conexões em Bodocó, quando a escritora puxa lembranças de criança na cidade sertaneja e também referências culturais que se deitam naquele mesmo tempo, para embrenhar sua realidade particular na coletiva, e assim dizer que, por mais que se voe, o mundo é todo ele um só.
Araras vermelhas – que, no rastro de seu lançamento, pela Companhia das Letras, conviveu com a vertigem da ameaça à Araguaia, a obra de Marianne Peretti que passou raspando pela depredação na Câmara Federal, no inacreditável 8 de janeiro de 2023 –, é um contra-ataque à completa deterioração da pouco registrada e evocada Guerrilha do Araguaia.
O trabalho de Cida é, então, um remonte dessa história recente com um memorial das vítimas da violência do Estado brasileiro nesse período da ditadura. Neste resgate, ela ressuscita mortes, mortas memórias, de pessoas tornadas lendárias; seres encantados da floresta.
“as araras vermelhas chegaram ali para ser parte misturar-se ao outro cultivar o campo caçar a comida por peixes à mesa colher castanhas florir auroras”, escreve Cida Pedrosa, sempre em minúscula, sem qualquer pontuação, jogando com a fluidez da palavra e da vida, e, especialmente, descansando a guerrilha de seu predicado de uso mais maniqueísta, que é a luta armada, termo já reescrito como resistência armada contra a ditadura.
Para que serve a poesia de Cida? A poesia de Cida tem servido para dar ou devolver nomes, rostos, vidas; para que acontecimentos públicos e intimidades infiltrem-se mutuamente, neste momento em que a gente reivindica alteridade, a lembrança versus o esquecimento, as histórias laterais de vozes dissonantes e oprimidas, outros testemunhos. Assim ela fez em Solo para vialejo (Cepe Editora, 2019), vencedor nas categorias poesia e livro do ano do Jabuti em 2020, e faz no de agora, eleito pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) o melhor de poesia de 2022.
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Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, aquele que primeiro chegou ao Araguaia entre todas as araras vermelhas, homenzarrão preto de 1,98 m de altura, comandante de um destacamento, conhecido pelo carisma e o temor que igualmente emanava, é reafirmado pela escrita de Cida, tanto pela sua delicadeza quanto pela força. Conta, em seu poema, que ele “sonhava o outro” – e também que “os caboclos diziam que era capaz de sumir ao vento desaparecer no verde transformar-se em pedra ou animal silvestre”. Assim mitificando-se ao ser assassinado.
“Nunca acreditou na falta de vagas e viandou e varou e volteou até vislumbrar outras verdades que pudessem verdejar a vida”, poetiza, em outro trecho, atenta à racialidade para ler o comandante que, em outras terras, jamais teria comando, porque lhe eram negados sonhos.
Antes de chegar às bordas da Guerrilha do Araguaia, a autora volteia a Amazônia e vai povoando a região. Recorda a primeira vez em que viu a floresta, num álbum de figurinhas enviado do Recife a Bodocó pela irmã mais velha; recupera a admiração da mãe ao ver a figurinha do papagaio-verdadeiro; relembra os boatos misteriosos sobre a onça-pintada que devorava os trabalhadores, sobretudo nordestinos, sumidos na construção da estrada Belém-Brasília.
Reintegra à história os suruís-aiqueuaras, da terra indígena sororó, povo oriundo de quando “a floresta habitava no povo há centenas de anos”, até que outros povos foram chegando, com desejos diversos – desde achar ouro, possuir terra ou, no caso das araras vermelhas, “a busca por um tempo novo a busca por um templo em que a pluma pudesse ter espaço igual ao espaço da pedra em que o arco-íris fosse apenas o afã das cores e a botija de ouro fosse a sobremesa da mesa posta para todos”.
Identificada pelas nossas sinapses mais velozes e rudes ao embate entre os membros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e o Estado ditatorial, a guerrilha encontrou naquele trecho da Amazônia mais do que uma geografia ideal para a formação de uma resistência armada que sustentasse o levante popular que planejou. Ainda que ali fosse só a partida dos propósitos, a floresta foi também para aquelas pessoas a terra para gestar o sonho de outra vida, fazer chão e conectar-se à natureza e ao povo.
Outra personagem mítica da guerrilha, Dinalva Conceição Oliveira Teixeira, conhecida como Dina, subcomandante de um destacamento, “comandante-ave”, “ave-comandante”, é ratificada pela escritora pela lenda de que “era invisível aparecia e sumia sumia e aparecia”, “e que se transformava em borboleta”.
Em seu novo livro, Cida Pedrosa apresenta um longo poema que
remonta a história da Guerrilha do Araguaia.
Foto: Roberto Jaffier/Divulgação
É como se, ao recuperar essas vidas/memórias/lendas, Cida reflorestasse não somente a história sobre o Araguaia, mas também aquele pedaço da floresta, onde convivem horizontalmente espécies e pessoas humanas e não humanas, das pedras aos bichos.
Mas o poema também sangra, ao relatar as violências executadas pelo Estado brasileiro. Durante o processo de edição do livro, Cida Pedrosa me disse que este seu trabalho “é muito doloroso” – “eu estou falando da morte de muitas pessoas que foram executadas pelas forças de repressão entre os anos 1972 e 1974”. Período em que o movimento foi descoberto e, então, antes do tempo ansiado, fez marchar a guerrilha, em reação aos ataques feitos pelos militares.
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Estamos agora há 51 anos da primeira investida militar, a Operação Papagaio, iniciada em abril de 1972, com um efetivo que, se calcula, era de 50 homens para cada guerrilheiro (estes cerca de 80), considerada derrotada pelo baixo número de alvos abatidos.
Da segunda investida, a Operação Sucuri, estamos há 50 anos, quando em abril de 1973, agentes das Forças Armadas se misturaram entre os moradores para colher informações, mapear a região e localizar guerrilheiros e moradores vistos como aliados. Esse levantamento levou à terceira operação, Marajoara, a mais sangrenta, em outubro de 1973. Durou um ano, até o assassinato da última guerrilheira que resistia na floresta, Walkiria Afonso Costa, em outubro de 1974. Toda a gente capturada com vida, mesmo em rendição, foi morta.
A floresta adubada pela vida de seres diversos e sonhos muitos é também floresta adubada de sangue. É “a amazônia barriga placentária do mundo cortada por veias e vasos varizes (...) veias vasos valas velas e vultos”.
Nomear as forças de repressão, com seus instrumentos de tortura e seu esmero em ser cruel, reuni-los agora, na nossa ressaca da recém-saída de um governo afeito à ditadura e que se desfazia da floresta, dos seres e sonhos dissidentes a ele, é fazer uma poesia que tem desejo de ser política. Araras vermelhas, nesse sentido, poderia ser livro didático. A poesia de Cida dá conta de instruir.
“Para mim, a memória é revolucionária, como iluminação do presente e do futuro”, disse, recentemente, José Genoino, em entrevista ao site Revista Ópera, ressaltando sua dedicação na contribuição de livros sobre a Guerrilha do Araguaia. Genoíno era um dos membros, preso logo no início da ação, tendo ficado no cárcere até 1977, condenado pela Lei de Segurança Nacional por ser filiado ao PCdoB – naquele momento, o governo não fazia ideia do que propunha aquele grupo; imaginava que se dedicava apenas a uma formação socialista.
A poesia de Cida, então, clareia, se não os apagamentos, os vazios. Ajuda a iluminar o arquivo obscuro das Forças Armadas, onde não se encontram registros; ajuda a preencher caixões esvaziados, porque os corpos desapareceram (em 1975, já exterminada a guerrilha, a Operação Limpeza desenterrou e queimou restos mortais, tendo antes arrancado partes que dariam reconhecimento aos mortos, como arcadas dentárias, para afundá-las no mais profundo do rio).
Foto: Reprodução
Embora seja sobre uma memória coletiva, esta poesia jorra também de um afeto particular da autora. Não é autobiográfica, mas dá registro ancestrais seus; dá registro àqueles que vieram antes no partido político a que é filiada, PCdoB, e pelo qual foi eleita vereadora do Recife nesta legislatura. É, ainda, uma homenagem ao centenário da sigla, completado no ano passado junto com a Semana de Arte Moderna.
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Rica em aliterações e numa escrita concreta das palavras, verbivocovisual, para ter um leitor cúmplice dos sons e das imagens que evoca, Cida Pedrosa elastece o poema ao beliscar outros gêneros literários e textuais. Pratica uma prosa poética, espalha informações até mais do que alguns jornalismos, bebe de fontes diversas, inclusive da Wikipédia, e portanto é enciclopédica.
“Eu gosto de misturar. É tanto que eu abro e fecho (o livro) com poesia metrificada, depois vêm os cantos em prosa, às vezes até ‘jornalística’; e depois, eu construo um poema bem visual, moderno, bebendo até da poesia concreta, na desconstrução total do verso. Acho que nesse eu radicalizo mais do que no ‘Solo para Vialejo’”, me disse, recentemente.
“Mas, acho, que, para dizer dessa tortura toda, dessa dor toda, se eu fosse escrever um poema mais linear, tradicional, talvez caísse no cru da realidade ou numa coisa piegas. Eu queria que o leitor se sentisse cúmplice de cada guerrilheira e guerrilheiro; que ele os colocasse no colo, mas também desse ombro a ombro e se instigasse para a revolta também.”
As referências de pesquisa estão todas listadas nas últimas páginas. São consultas realizadas entre 22 de janeiro e 12 de fevereiro de 2022, os 21 dias que ela levou para escrever a obra, num jorro de palavras que ficaram represadas durante todo o ano de 2021, o primeiro de seu mandato parlamentar, logo após o Jabuti, quando alguma angústia ou bloqueio a visitou.
Extra:
Leia trecho de Araras Vermelhas bit.ly/3NFafJA
Entre este e o premiado Solo para Vialejo, ela lançou no ano passado Estesia (Editora Cepe, 2022), uma reunião de haicais e fotografias criadas durante passeios com seu cão lhasa apso, Bob Marley, na fase mais rígida da pandemia, como registros de um tempo da vida em exceção. Mais do que fazer sentir, a poesia de Cida tem diversificado o gênero literário e registrado histórias.
ROMERO RAFAEL, jornalista e ex-editor-assistente de Cultura do Jornal do Commercio.