Entrevista

“Não temos o direito de baixar a guarda”

Marcos Nobre, professor e autor de livros como 'Limites da democracia', analisa os últimos 10 anos da cena política nacional, tocando em temas como a Lava Jato e a ascensão de Bolsonaro

TEXTO Erika Muniz

03 de Abril de 2023

Foto JARDIEL CARVALHO/UOL/FOLHAPRESS

[conteúdo na íntegra | ed. 268 | abril de 2023]

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Desde 2013, têm sido muitas as interpretações que nos ajudam a desvelar o cenário político nacional. De lá para cá, acumulamos episódios turbulentos que modificaram a relação de parte da sociedade com as instituições democráticas e acontecimentos que mudaram rapidamente os rumos e resultados de eleições. Entre as vozes que vêm sendo convocadas a apresentar suas reflexões e diagnósticos acerca dos tempos recentes, seja no ambiente acadêmico ou no debate público, está Marcos Nobre.

Professor do Departamento de Filosofia da Unicamp, Nobre é presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e autor de títulos como Lukács e os limites da reificação (2001), A dialética negativa de Theodor W. Adorno (1998), A teoria crítica (2004), Como nasce o novo (2018), além do mais recente de todos, Limites da democracia (2022), no qual ele analisa a última década na política brasileira. O autor desenvolve suas interpretações a partir de acontecimentos como as manifestações de junho de 2013, o impeachment de Dilma Rousseff, a operação Lava Jato até a eleição de 2018.

Em Imobilismo em movimento (2013), Marcos já lançava um olhar sobre o cenário político brasileiro a partir do período de redemocratização, além de apresentar uma de suas principais teses, a do pemedebismo enquanto uma das características do sistema político nacional. Por conta do volume de materiais produzidos nas últimas décadas, que lhe permitem acompanhar e analisar a política a partir de um viés bastante crítico, Marcos Nobre é um dos pensadores que vem contribuindo nas reflexões acerca deste tempo, em que uma construção democrática forte urge em nosso país.


Obra, que faz uma análise da cena política nacional,
foi lançada em 2022. 
Imagem: Divulgação

De Berlim, na Alemanha, onde estava a convite do Mecila – projeto de estudos em Ciências Humanas e Sociais realizado por pesquisadores da América Latina, Caribe, Alemanha e outras regiões do mundo –, Marcos Nobre conversou por videochamada com a Continente. Entre os temas trazidos, estão algumas de suas interpretações sobre o desenrolar da política brasileira; sobre como a disputa no campo das ideias exerce papel importante na consolidação democrática; o que as eleições de 2018 e 2022 evidenciam sobre o sistema político nacional e qual o cenário que viabilizou a ascensão da extrema direita e do bolsonarismo nos últimos anos.

CONTINENTE Marcos, suas análises trazem diagnósticos de acontecimentos, muitas vezes, bem recentes do cenário político do país. Quais os desafios de pensar e escrever sobre esses períodos, em intervalos de tempo curtos?
MARCOS NOBRE O desafio é sempre de você tentar entender o que está acontecendo quando está acontecendo. Mas acho que isso só é possível se você tem uma certa perspectiva histórica. Por isso, meus dois livros que fazem meio que um conjunto, o Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma (2013) e o Limites da democracia: De junho de 2013 ao governo Bolsonaro (2022), eles sempre jogam para trás. Começam antes, por assim dizer, para poder chegar ao presente. No caso do Imobilismo em movimento, foi o processo de redemocratização. Eu tinha, ali, quase 35, 40 anos de matéria para poder chegar ao tempo presente. E, no caso do Limites, tinha 10 anos. Acho que só é possível fazer isso por duas razões: primeiro, porque tem essa profundidade histórica. Segundo, porque a intervenção constante num debate público lhe permite ir acumulando material para pensar. Você vai pensando enquanto está acontecendo o tempo todo. Isso também é o que lhe permite depois olhar, nas análises que você vai fazendo, e dizer: “Bom, aqui, acho que esse caminho não foi tão frutífero. Esse caminho foi mais interessante”. Você faz um balanço, no fundo, de você mesmo, das análises que você fez naquele período que vai ser o do livro. Poder fazer essa retrospectiva histórica tem a ver com tentar pensar o que está acontecendo quando está acontecendo. Você precisa dizer: “É claro que posso errar e a minha análise pode se mostrar equivocada adiante”. Mas não ter medo de errar é importante para você arriscar, para dizer: “Não, acho que tenho uma bagagem de análise que me permite ter um pouco de distanciamento da situação”. O que é justamente essa retrospectiva histórica, para poder olhar o que a gente chama de “tendência”. O que é a tendência? A tendência é você olhar para um período histórico um pouco mais longo e ver: “O que está acontecendo aqui? Em vista desse acontecimento específico, da perspectiva dessa tendência, ele significa o quê?” Tem muito disso nesse exercício de diagnóstico de tempo que tento fazer.

CONTINENTE No seu livro Ponto final – A guerra de Bolsonaro contra a democracia (2020), você pontua que “desobrigar a pensar é um dos grandes objetivos do projeto autoritário de Bolsonaro”, e como o xingamento é capaz de despolitizar e tirar as responsabilidades das inúmeras ações que ele teve e tem. Por que, a seu ver, é tão importante essa “disputa”, também, no campo do pensamento? Isto é, esse esforço por não aceitarmos o debate nos termos dele e dos bolsonaristas.
MARCOS NOBRE Essa pergunta tem um fundo muito difícil de responder. Um fundo, vamos dizer, até de posicionamento teórico, para você poder pensar o que a gente estava conversando agora há pouco, sobre a tendência. Claro que existem tendências: descobrir certos elementos estruturais num desenvolvimento histórico. Claro que têm elementos que são da acumulação capitalista que mudam também, que você tem que acompanhar e eles são determinantes, estruturantes etc. Mas a ação sobre a realidade não está limitada a você aceitar ou recusar essas tendências estruturais que são dadas pela acumulação capitalista. Seja para reforçá-las, seja para mudá-las, você precisa ter, também, instituições, por exemplo. E, da mesma forma, para você ter instituições, precisa ter um apoio para essas instituições, uma base na qual elas se sustentam. As instituições não se sustentam simplesmente no poder do capital ou no poder militar, no poder da força, no poder de fazer a guerra. Elas também se sustentam na nossa vida cotidiana ou não. As instituições podem perder a sua legitimidade porque elas não são mais vistas pelas pessoas como legítimas. Isso tem a ver com o fato de elas estarem funcionando de uma maneira que não corresponde à que as pessoas estão interpretando as suas vidas. Tem uma dimensão muito relevante de como a gente interpreta o mundo, de como a gente age sobre ele, que depende de uma disputa no campo das ideias, no campo da cultura, no campo do debate intelectual. Às vezes, isso não tem um efeito imediato. Às vezes, vai ter um efeito muito tempo depois. Você acha que aquela discussão ou aquele debate morreu, mas ele surge mais na frente. Vou dar um exemplo que talvez não seja o melhor, mas é um exemplo. Tiveram algumas pessoas, não muitas, que passaram os quatro anos do governo Bolsonaro dizendo que era preciso fazer uma frente ampla para derrotá-lo. Essas poucas pessoas foram muito estigmatizadas por todos os lados. De repente, faltando dois meses para a eleição (de 2022), a frente ampla se torna uma ideia aceita de maneira generalizada e assim por diante. Então, você vê que, às vezes, meia dúzia de pessoas falando durante quatro anos tem algum efeito em algum momento. No momento político certo, acontece. O que acho importante é quem faz debate intelectual, quem faz a discussão na esfera pública não se render ao que é o aspecto dominante da discussão. Acho que não é essa a função de intelectual. Intelectual tem que seguir o que acha que são ideias transformadoras, independentemente do fato de elas terem ou não acolhida. Seja na Academia, seja no debate público, seja nas instituições. Às vezes, acontece isso, meia dúzia de pessoas que ficaram lá “gritando” sem ninguém ouvir e, “de repente”, a ideia pega e tem um efeito. Um efeito muito importante, que foi a derrota do Bolsonaro. É claro que a frente ampla não aconteceu só porque essas pessoas ficaram quatro anos falando. Mas sem isso você não teria essa base de discussão necessária para poder passar para a ação. Sem essa elaboração teórica e intelectual você não tem como passar para a prática porque você não tem referencial para interpretar a realidade.

CONTINENTE Em 2018, um conjunto de acontecimentos anteriores viabilizou a candidatura de Bolsonaro. No seu livro Limites da democracia, alguns desses fatores são pontuados, como a ausência de uma candidatura viável na direita tradicional, a Lava Jato não ter se institucionalizado, a prisão de Lula… O que, a seu ver, é preciso que seja mais refletido e que fica de aprendizado – embora eu ache que essa lógica compensatória também seja um tanto complicada – para o nosso sistema político, diante do processo de fragilização democrática que vivemos recentemente?
MARCOS NOBRE Não tenho muita certeza que o sistema político seja, de fato, capaz de se autorreformar se não tiver uma pressão social muito intensa. Então, podem ficar com várias lições, e o sistema político pode ignorar todas elas (risos). Como tem feito repetidamente, pelo menos, desde 2013, ele pode perfeitamente ignorar. “Tenho que cuidar da instituição, ou seja, da correlação de poder, da correlação de forças que tem aqui dentro e, enquanto ninguém me atropelar, vou continuar fazendo as coisas como antes.” Dois exemplos que acho que são importantes: primeiro, eu tenho a impressão de que o sistema político aprendeu que fazer uma coisa como o impeachment de Dilma Rousseff é um equívoco muito grave. Não é qualquer tipo de equívoco, é um erro crasso. Ali, justamente tendo uma pressão das ruas e não sabendo como lidar com ela. Porque a última coisa que o sistema político quer fazer é se autorreformar. Se ele se autorreformar, vai ter que mudar a correlação de forças internas e ninguém quer isso, do ponto de vista do sistema político. “Como é que vou sair dessa? Tenho, aqui, a Lava Jato num caos e milhões de pessoas nas ruas querendo ‘a minha cabeça’ para afundar isso. O que vou fazer? A gente entrega o PT e a esquerda, a gente entrega ‘o braço esquerdo do sistema político’, vamos dizer, para poder ‘passar a boiada’.” Acho que o sistema político aprendeu que esse tipo de tática é muito perigosa porque, no fundo, você dá o atestado de que perdeu o controle da política, que foi o que aconteceu. Com a impressão de que a política estava mandando, era o contrário que estava acontecendo, ali, no impeachment de Dilma Rousseff. Ao mesmo tempo, você fala: “O sistema político aprendeu a lição”. É, acho que sim, ao mesmo tempo, a maioria das pessoas foi poupada. A maioria das pessoas no sistema político não foi alcançada pela Lava Jato. Poucas pessoas foram alcançadas relativamente e a grande maioria, da esquerda.

Então, os caras falaram: “Será que deu errado, assim? Tudo bem, a gente teve que aguentar o Bolsonaro. Mas, também, a gente se ajeita com o Bolsonaro”. Ou seja, tem uma ideia de que o sistema político – o brasileiro em especial, acho que é característica nossa – é capaz de se adaptar a qualquer situação, inclusive, uma situação como a do Bolsonaro. O que acontece? Quando o sistema político faz esse movimento de bomba atômica, que foi o impeachment de Dilma Rousseff, e percebe que não deu certo, que continuava ameaçado da mesma maneira, compreende que eles tinham um problema de coordenação. Aí, é o momento que vem com essas teses todas que eu defendo, do pemedebismo como característica de nosso sistema. O pemedebismo tem essa característica de que ele é inerentemente fragmentário. Ele não é só fragmentado, do ponto de vista dos partidos, mas ele tende à fragmentação. O que o sistema político se deu conta é que essa tendência à fragmentação impediu uma ação conjunta de autodefesa. Era disso que se tratava, de autodefesa. Daí, eles aprovam uma reforma eleitoral muito importante em 2017, que vai moldar o sistema político até 2030, que é essa que proíbe coligação para a eleição proporcional, a qual instituía a cláusula de barreira. Juntamente com o financiamento público, fazem o que são hoje as estruturas da competição política.

Então, veja, tem aprendizado? Tem aprendizado, mas não necessariamente um aprendizado que nos impeça, que nos garanta que a gente não terá Bolsonaro outra vez. A esse ponto, o sistema político não chega. O sistema político é capaz de tentar uma “gambiarra”, como foi a do impeachment de Dilma Rousseff, uma tragédia para o país. Ele é capaz de se autoconter fazendo a reforma eleitoral de 2017, mas não topa, por exemplo, dizer: “Olha, Bolsonaro nunca mais. Vamos reconstruir o sistema político de tal maneira que não seja possível o retorno de uma figura como Bolsonaro”. Isso, o sistema político ainda não topou e não sei se vai topar. Difícil a sua pergunta, porque tem coisas que você acha que aprende, tem coisas que acha que não, e tem coisas que aprende, mas não quer fazer.

CONTINENTE Há um tempo acompanhando as suas análises e entrevistas, fico pensando: você que sempre pesquisou e se aprofundou sobre a conjuntura política do Brasil, imaginava que chegaríamos a Bolsonaro da maneira que foi? O seu horizonte chegava ali?
MARCOS NOBRE Para mim, pessoalmente, essa pergunta é muito difícil, porque tem a ver com aquelas coisas que a gente estava falando antes, do que eu, pessoalmente, fui capaz de ver e do que eu não fui capaz. Uma das coisas que mais me intriga, pessoalmente, é como, tendo feito desde 2013 todas as análises, toda estruturação do campo da política de uma tal maneira que Bolsonaro seria uma consequência lógica das análises que eu tinha feito, mesmo assim, eu me recusava a vê-lo como uma real possibilidade até 2018. Isso é uma coisa que me espanta muito. O quanto tem um certo limite que a gente diz: “Não é possível que isso vá acontecer”. E isso foi muito importante para mim, porque eu me disse: “Não, você está deixando que o limite do horror que você não consegue aceitar atrapalhe a sua capacidade analítica”. Foi essa a autoanálise que eu fiz do que aconteceu. É evidente que Bolsonaro era uma das possibilidades de todas as análises que eu tinha feito, porque eu falei: “O sistema político não vai se autorreformar, o impulso antissistema continua aí etc.”. É evidente que 2018 ia ser uma eleição antissistema. Agora também tem o fato de que, para mim, foi inesperada a prisão do Lula. Realmente, isso mudou todo o jogo, porque uma coisa é você ter um candidato como Bolsonaro enfrentando Lula; outra coisa é um candidato como Bolsonaro sem adversários. A não ser a candidatura que representou Lula, que foi a de Fernando Haddad. Então, até abril de 2018, para mim, Bolsonaro não era uma possibilidade. E, no entanto, logicamente, eu teria que ter considerado isso. Acho que mudei muito a partir daí, de sempre me perguntar: “Você está realmente fazendo análise ou tem alguma coisa que é um limite o qual você não quer nem pensar?”. É como se eu tivesse aceitado, para mim mesmo, que tenho que pensar o limite. Isso foi um aprendizado duro, mas importante, porque, se a gente olha para o mundo, nós não estamos isolados. O mundo está indo em direções muito preocupantes. Ora, isso não tem que me impedir de pensar qual é a tendência de desenvolvimento do mundo, mesmo que eu ache que ela é catastrófica. Mesmo que eu chegue a essa conclusão, tenho que ser capaz de pensar esse impensável, esse horror, esse limite do pensar. Acho que essa, para mim, foi a lição de 2018.

CONTINENTE Durante a leitura de Limites da democracia, entre outras coisas, voltei a pensar sobre a relação da Lava Jato, que acabou produzindo uma enorme instabilidade no cenário político. Essa associação, hoje, talvez esteja mais evidente, mas por um tempo a mídia tradicional dissociava a Lava Jato ao governo Bolsonaro. Hoje em dia, parece estar mais evidente, inclusive com as candidaturas de Sérgio Moro (União, PR), Deltan Dallagnol (Podemos, PR) e outros nomes associados a Jair Bolsonaro, na última eleição, mas por um tempo foi pouco falada. Queria que você comentasse sobre essa relação entre a Lava Jato e as eleições de 2018.
MARCOS NOBRE É mais ou menos assim… Milhões de pessoas saem às ruas e dizem: “Do jeito que está o sistema político, ele não está funcionando para a gente”. É o famoso “não me representa”. Nas pesquisas que a gente tem sobre as pessoas que saíram às ruas em 2013, o primeiro tópico mencionado de quase 2/3, 65%, era justamente o modo de funcionar do sistema político. Então, o que acontece? A reação do sistema político é nenhuma, a reação do sistema político é dizer: “Esse pessoal está insatisfeito, mas vai passar”. Não passou, e não só não passou, como a eleição de 2014 não foi capaz de oferecer ao eleitorado e à população, em geral, uma reorganização do sistema político que estivesse de acordo o que era a nova configuração da vida e da sociabilidade. O que acontece? A partir de 2015, você tem duas possibilidades. Ou adere ao sistema político, no sentido de que você diz: “Bom, esse sistema político me representa”; ou, então, você vai buscar uma força extrassistema, extra-institucional que lhe represente. Nesse caso, foi a Lava Jato: a única maneira de organizar esse sentimento antissistema, já que o próprio sistema não o acolheu na forma de uma reforma, de uma autorreforma. Esse impulso antissistema fica solto na rua, porque, muitas vezes, as pessoas perguntam: “Ah, mas o que significaria fazer uma reforma do sistema político?” Significaria você dar para esse impulso, essa energia social que está solta, direção. Isso é o que se chama política. Você fala: “As pessoas estão se manifestando em massa, estão manifestando a sua insatisfação”. O que é fazer política? É você dar sentido e direção para esse tipo de sentimento de insatisfação. Mas não apareceu ninguém. Nenhuma força política estabelecida foi capaz de dar sentido e direção para essa energia social.

Então, aconteceu uma espécie de arquipélago de iniciativas que estavam cada uma tentando dar sentido e direção para esse movimento, mas nenhuma delas foi capaz de unificar esse sentimento de insatisfação. Porém encontraram, ao mesmo tempo, um guarda-chuva na operação Lava Jato. É como se todas as maneiras de organizar a insatisfação pudessem ser abrigadas sob o rótulo “Lava Jato”. Porque ela tinha estas duas características: de representar a insatisfação e, ao mesmo tempo, de ter um pé institucional. Ou seja, como estava no Judiciário, prendendo gente, estava produzindo coisas etc. Assim, a operação Lava Jato se tornou um escudo para essas diversas maneiras de se organizar a insatisfação com a finalidade de impedir o sistema político de retomar o controle da política. Ficou “um cabo de guerra” entre 2015 e 2018, aproximadamente, no qual não se sabia bem onde estava o poder. Porque o sistema político estava permanentemente acuado, pois não conseguia fazer as coisas. Ao mesmo tempo, essa força extra-institucional também não tomou o poder, no sentido de se institucionalizar. Então, ficou nesse cabo de guerra.


Manifestação em favor da operação Lava Jato, em Copacabana, Rio de Janeiro, em 2016. Imagem: Tomaz Silva/Agência Brasil

Em 2018, havia dois caminhos: o do sistema político como estava estabelecido, fadado ao fracasso. Sempre me lembro do (Geraldo) Alckmin dizendo que o que ele precisava para a candidatura dele era ter um cabo eleitoral distribuindo santinhos em Cruzeiro do Sul, no Acre. Quando ouvi ele dizer isso, falei: “Ele não entendeu absolutamente nada. Quer dizer, não sabe sequer o que é Instagram”. Não entendeu que era uma eleição a qual grande medida ia passar pelo digital. Não só, claro, mas uma grande parte dela. Você não podia operar, simplesmente, em um ambiente analógico, tradicional. Então, em 2018, não se tem, justamente, como você mencionou, a transformação da operação Lava Jato em uma candidatura única. Enquanto tal, a Lava Jato não teve candidatura. O que aconteceu foi que, dentro do sistema político, dentro da política tradicional, teve quem quisesse dizer que estava a favor da Lava Jato e, do ponto de vista, vamos dizer, dessas forças antissistema, só tinha Bolsonaro. No momento em que o Lula é preso, tudo mudou de figura. Porque não se tinha mais um competidor à altura para Bolsonaro, naquele contexto. Essa foi a grande virada.

No fundo, acho que, do ponto de vista do sistema político, a ideia era “o Lula vai ganhar a eleição” e vai voltar tudo ao normal. Mas o que acontece é que o Lula é preso e tem o Bolsonaro que atropela. A partir desse momento, a Lava Jato se torna um “puxadinho” da extrema direita. Para chegar na sua pergunta, ela se torna um “puxadinho” da extrema direita e isso é muito significativo da situação atual em que o campo mais amplo da direita é hegemonizado pela extrema direita. E a Lava Jato faz parte disso.

O caso mais emblemático é, no debate, a campanha de segundo turno e a posição que teve o Sérgio Moro nela. Vamos analisar: ele foi um senador eleito, portanto, eleito no primeiro turno. Ele já era senador, então, por que se reaproximar de Bolsonaro no segundo turno? O que ele ganharia com isso? Ele se reaproximou de verdade, estava no debate, aconselhando Bolsonaro. Ou seja, ele (Sérgio Moro) foi humilhado e destruído pelo bolsonarismo, mas voltou feito um capacho para o Bolsonaro. Por quê? Porque justamente não existe, hoje, uma alternativa, dentro da direita, que seja democrática. Qual o cálculo do Moro? “Sou jovem, alguém vai ter que herdar o espólio do bolsonarismo. Quero me colocar como alguém que pode herdá-lo”.

Acredito que foi isso que o motivou a fazer esse tipo de movimento [de apoio a Bolsonaro]. Está muito evidente. A gente pode discutir dentro do sistema político a bagunça que está dentro dos partidos, a falta de coordenação, tudo isso, porque está acontecendo, mesmo. No entanto, do ponto de vista da direita, de uma direita que se considerava, até pouco tempo, democrática, mas que se voltou toda para o bolsonarismo. Hoje, a situação é esta: há uma direita hegemonizada pela extrema direita; e o governo Lula, que está tentando trazer para si o maior número de figuras políticas que conseguir. Essa é a nossa situação atual.

CONTINENTE Como você percebe essa questão de Sérgio Moro? Ele seria, então, um possível herdeiro do bolsonarismo nas próximas eleições? Embora, também, uma parcela de bolsonaristas não queira se associar a Moro.
MARCOS NOBRE A próxima eleição é muito cedo, ainda, para o Sérgio Moro, porque todo mundo precisa esquecer as barbaridades que ele fez, em todos os sentidos. Mas acho que ele tem uma ambição de ser o herdeiro do bolsonarismo, porém de um “bolsonarismo light”, ou seja, de ser uma versão “limpinha”. Essa é a típica ilusão de uma certa classe média brasileira, de que você vai conseguir ser um bolsonarista “limpinho”. Mas, enfim, a pessoa é senadora, tem oito anos lá. Esse é um lado da história. O outro lado é o que você disse: a campanha contra o Sérgio Moro, quando expulso do governo por parte do bolsonarismo, foi com um grau de violência que não tem como voltar. A pecha de traidor pegou, mesmo. Ou seja, não é passageira. Assim, ele só vai conseguir ser herdeiro do bolsonarismo se o próprio bolsonarismo perder, de alguma forma, a hegemonia sobre o campo da direita. Nesse caso, ele pode sonhar. Contudo, a chance de se realizar é baixa. Mas, enfim, por enquanto, o que nós temos, num horizonte próximo, é Bolsonaro. Não tem ninguém para substituí-lo na liderança não só da extrema direita como da direita; porque, como a extrema direita hegemoniza a direita, não tem um substituto.

Muitas vezes as pessoas esquecem. É parecido com o futebol, as pessoas falam: “Ah, tal time foi campeão em tal ano”. Só que você não se lembra que a partida foi definida nos pênaltis, depois de um jogo dramático, com prorrogação etc. e que os pênaltis foram aquela série de 15, 16 pênaltis. Isto é, foi uma coisa decidida quase que pelo cansaço. As pessoas rapidamente esquecem que nós desviamos do iceberg por 50 metros, porque já começa de novo. Durante quatro anos, as pessoas que defenderam a necessidade de uma frente ampla em defesa da democracia para 2022 (porque considerava, evidentemente, Bolsonaro um candidato forte) passaram esse tempo sendo massacradas, cotidianamente, como “vendidas” etc. Conforme o outro lado sempre disse: “Bolsonaro está acabado. Bolsonaro não tem mais nada. Bolsonaro está acuado”.

Mas o que aconteceu? De repente, em agosto de 2022, essas mesmas pessoas se deram conta de que “não é bem assim”. Parabéns, você passou quatro anos dizendo que ele não tinha chance nenhuma, que estava acabado, mas, agora, tem chance? Por incrível que pareça, essas pessoas agora falam de novo: “Bolsonaro está acabado, Bolsonaro está acuado”. Será possível que a gente não aprendeu nada? Foi por 1%, se for contar que o resultado poderia ter ido tanto para um lado como para o outro e a gente poderia ter ido para o abismo de vez. Essa metade que votou no Bolsonaro não desapareceu, ela continua aí. Bolsonaro continua sendo a figura que tem recall. Se eu pudesse pedir uma coisa para as pessoas, seria o mínimo de responsabilidade política. Não sei dizer o que vai acontecer, mas não posso dizer que o Bolsonaro seja cachorro morto. O nome de Bolsonaro tem recall, porque tem uma família, um clã inteiro. Quando você fala “Bolsonaro” remete a muitas coisas. Assim, se eu pudesse fazer um modesto apelo, seria para as pessoas pararem 30 segundos antes de falarem a frase “Bolsonaro está acabado, Bolsonaro não tem força. O bolsonarismo acabou.” Porque isso realmente é irresponsável, do ponto de vista político. Não vou nem dizer que essa pessoa não consegue entender nada do que está acontecendo, porque isso é da vida. Mas essa postura tem consequência política com um grau de irresponsabilidade que, para mim, é completamente insano. Não a entendo.

CONTINENTE Por que, para se pensar o Brasil atual, é preciso pensar, também, sobre os acontecimentos de junho de 2013? Há analistas que se referem a esse período como catalisador da ascensão da extrema direita no Brasil, mas também há quem diga que essa visão simplifica a potência de significados que esses eventos tiveram. Como é que você percebe isso?
MARCOS NOBRE Eu gostaria que essa segunda interpretação que você apresentou tivesse tanto espaço quanto a outra, mas não tem. Gastei quase o livro inteiro para tentar demonstrar que é faticamente falso associar junho de 2013 com a ascensão de Bolsonaro. Isso não quer dizer que não tenha tido algum sucesso em convencer as pessoas da primeira interpretação que você menciona, porque a associação entre junho de 2013 e Bolsonaro é tão imediata para tanta gente que precisamos, sempre, voltar ao princípio. Não tenho nenhum problema de ter uma interpretação minoritária na vida. Só quero dizer que: “Se você, de fato, quer discutir a sério, tem que me dar argumentos, tem que me dar fatos que liguem as duas coisas.” Todos os (argumentos e fatos) que tenho, e que tentei mostrar no livro, me demonstram que não existe essa ligação. Isso é a primeira coisa. A segunda é: por que se liga junho de 2013 com a ascensão de Bolsonaro? A meu ver, essa é uma operação ideológica. Essa operação ideológica justifica duas coisas. Primeiro, justifica o sistema político, em todas as ações que ele tomou de autodefesa, de blindagem, contra a sociedade etc. Então, quem defende essa ligação está, no fundo, defendendo o que o sistema político fez. Em segundo lugar, defende também todas as posições que a esquerda – e em especial o PT – tomou diante das manifestações de junho de 2013 em diante. Porque, se existe um partido que tinha capacidade, elaboração e recursos para poder interpretar a experiência de junho de 2013, para dar sentido e direção a ela, era o PT. Mas o partido não o fez. Em especial, o governo Dilma Rousseff, porque a primeira atitude do governo, diante das manifestações, foi aparecer em público abraçada com Michel Temer. Ou seja, “estou aqui com o PMDB (atual MDB) e nada vai nos separar”. Então, pensa-se: “Está certo, resolveu-se fazer um acordo de cúpula com o sistema político. Parabéns!”. A partir daí, para justificar esse tipo de acordo ou de ação tomada no governo, passa-se a dizer que junho de 2013 foi de extrema direita. O que não corresponde, em absoluto, aos fatos. Mas isso não importa, porque é uma construção ideológica.

Existe, nisso, uma convergência de interesses de autojustificação do PT e de uma parte importante da esquerda. Não toda, porque acredito que tem uma parte que continua querendo ver junho de 2013 como, de fato, foi. Tem essa parcela e, também, a justificação do próprio sistema político, que falava: “Olha, essa era uma verdadeira ameaça à democracia”. Então, ainda bem que o sistema político fez isso. Essa explicação tem um pequeno problema, porque, como você explica o que aconteceu depois do impeachment de Dilma Rousseff? Enfim, as pessoas não estão buscando coerência, mas querendo se justificar. Tem um lado, para mim, compreensível, que é o seguinte: o PT como tinha, historicamente, sempre chamado às manifestações, a rua era do PT. Porém, quando, de repente, a rua aparece sem que o PT tenha chamado, o partido não sabia o que fazer. “O que está acontecendo? A gente sempre liderou isso aqui, mas não está liderando mais. Se a gente não está liderando, só pode ser de direita”. Tem essa interpretação do PT, a meu ver, completamente equivocada. Mas é uma questão ideológica.

Tem um outro lado que, também, é compreensível: a partir de 2015, o PT se coloca, totalmente, na defensiva. Quando você está na defensiva, você tem que fazer uma interpretação da sua situação como de perigo existencial. Ou seja, “estamos ameaçados na nossa existência, querem acabar com o PT”. Para isso, criou-se uma narrativa que pudesse dizer: “Olha, isso começou em junho de 2013”. Porque é a coisa mais perto que você tem. Então, junho de 2013 passa a ser o prenúncio do impeachment, da prisão do Lula e da eleição de Bolsonaro. Mas, para isso, ignora-se o fato de que abraçou o Michel Temer. Ou seja, justificando, no fundo, que aquilo era necessário para a própria sobrevivência do partido. Então, não é que não seja compreensível, mas profundamente triste, porque não nos permite discutir a sério o que aconteceu em junho de 2013. Não nos permite discutir, verdadeiramente, o que aconteceu nos últimos 10 anos do país e, sobretudo, em um momento no qual a sociedade brasileira saiu às ruas em busca de novas interpretações e de novos sentidos para a política. Diz-se: “Não existe outro possível. Ou é este aqui que você tem no governo do PT, ou outro mundo não é possível”. É o PT dizendo para as pessoas que um outro mundo não é possível, a não ser aquele que você abraça o Michel Temer. É bem triste como horizonte teórico; e como horizonte prático, portanto, no caso do PT. Enfim, espero que seja possível uma situação histórica em que junho de 2013 possa ser repensado e reavaliado sem esse tipo de pressão ou de constrangimento ideológico da justificação do que foi feito.


Manifestação contra aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, junho/2013. 
Imagem: Maria Objetiva/Flirck/Divulgação

CONTINENTE Agora que a eleição passou e o presidente Lula conseguiu a vitória no segundo turno, queria que você comentasse o que ficou assegurado a partir dessa última eleição.
MARCOS NOBRE Nada. Nada ficou assegurado. O mesmo risco que a gente corria em 2018, a gente corre agora, igualzinho. Na verdade, o que você tem é uma ameaça à democracia e uma ameaça à nossa vida, como país, ao nosso futuro, muito mais organizada do que você tinha em 2018. Neste ano, Bolsonaro ganhou em uma campanha “gambiarra”, cheia de “puxadinho”. Nesses quatro anos, a coisa se organizou e em sentidos muito relevantes. Não só ao gerar um ecossistema digital que se autofinancia, mas, também, em termos de ampliar as tecnologias de produção de fake news e de propaganda. Você tem 60%, praticamente, dos governos estaduais, no que se refere ao eleitorado, próximos ao bolsonarismo. Então, é possível colocar nesses governos estaduais os quadros que foram formados nesses quatro anos de governo Bolsonaro, de pessoas que são reaproveitadas. Você tem uma multiplicação de gabinetes do ódio, porque cada um desses governos vai ter o seu. Independentemente de quem é o(a) governador(a), sem a pessoa saber que isso está acontecendo. Você tem recurso público, porque Bolsonaro está em um partido que é o maior partido (com representantes eleitos) de todos.

E, sobretudo, acho que teve um aprendizado muito relevante na eleição de 2022, que não aconteceu em 2018, que aponta para tendências no futuro de que as campanhas políticas e eleitorais não serão nem só digitais e nem só da política tradicional. Será uma combinação das duas coisas, que acredito ter sido a campanha do Bolsonaro, este que percebeu um dispositivo digital muito bem arrumado e poderoso, mas, também, que só isso não bastava. Ele precisava de um dispositivo tradicional que funcionasse. Por isso, ele foi buscar uma das pessoas mais competentes em alocação de recursos tradicionais, que é o presidente do PL (Partido Liberal), o Valdemar da Costa Neto. Então, é muito impressionante como os recursos foram bem alocados, em termos de produção de mandato e de ganho de governos, e quase ganhou a eleição (para presidente). E, nos lugares em que Bolsonaro podia se dar ao luxo de liderar a disputa com duas ou três candidaturas – seja para governo, seja para senado, seja para o que for –, havia uma disputa interna entre a política tradicional e a política digital bolsonarista, entre eles, porque eles ignoraram o resto. Às vezes, um ganhou; às vezes, o outro ganhou. Em Brasília, ganhou o partido digital; em Mato Grosso, a política tradicional. Mas, veja, é muito poderoso como modelo. Portanto, acho que nós não estamos em uma situação mais simples, agora. Por isso, não temos o direito de baixar a guarda.

ERIKA MUNIZ, jornalista com formação também em Letras.

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