Memória

Há meio século, 'As meninas', de Lygia Fagundes Telles

Há 50 anos, em 1973, em plena ditadura militar, a autora lançava o seu romance mais célebre

TEXTO Laura Machado

03 de Abril de 2023

Lygia Fagundes Telles, escritora de 'As Meninas'

Lygia Fagundes Telles, escritora de 'As Meninas'

Foto WIKIMEDIA COMMONS/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 268 | abril de 2023]

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Tinha um relógio grande assim na torre e eu queria me agarrar nos ponteiros, segurar as horas, por que é que o tempo não parava um pouco? Queria ficar lá dependurado, segurando o tempo.” (As meninas)

O ano era 1973, Richard Nixon tomava posse de seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos; os líderes das nações assinavam o Acordo de Paris, com o intuito de acabar com a guerra do Vietnam; morria o artista espanhol Pablo Picasso e a brasileira Tarsila do Amaral, precursora do modernismo. Entre os acontecimentos que entraram para a história do mundo e do Brasil, está a publicação do romance As meninas, da paulistana Lygia Fagundes Telles. Neste 2023, a obra completa 50 anos e se mantém atual.

Sensível e atento ao momento de ditadura militar que o Brasil vivenciava naqueles anos 1970, a obra de Lygia é, entre diversas coisas mais, um ato de coragem e de resistência à sanção da liberdade. Em seus 12 capítulos, a escrita exploratória da autora cria personagens táteis, quase reais, que representam uma geração histórica de jovens que descobriram a vida universitária e os primeiros anos da juventude durante um regime ditatorial.

AS MENINAS DE LYGIA
Com as vivências femininas como tema central, As meninas é um romance de formação ímpar, que representa a ambiguidade e os mistérios envolvidos no crescer, através de Lorena, Lia e Ana Clara, as meninas de Lygia.

Lorena é a que primeiro aparece na história. Bem-educada, delicada e ligada às artes, a garota é filha de uma família de classe alta de São Paulo, cursa Direito na USP e deseja se casar. É a dona do único quarto com banheiro do pensionato católico Nossa Senhora de Fátima, onde vive junto às demais protagonistas. Os capítulos narrados por ela contêm explicitações sobre a decadência da burguesia brasileira, o tradicionalismo que, em partes, ainda é regente de suas ações e a disparidade entre sua vida e a de suas colegas.

Lia, ou Lião, como é chamada pelos amigos, é diferente de Lorena. Militante de esquerda, a favor dos direitos à liberdade e contra a repressão política, social e identitária da ditadura militar, a garota cursa Ciências Sociais e, apesar de ser de uma família de classe média, sofre com problemas financeiros. Leitora de autores envolvidos com ideais vanguardistas, é descrita como combativa e, envolvida diretamente na luta contra os militares, é uma personagem que critica o sistema opressor e sofre com as consequências deste, a exemplo da prisão de seu namorado, líder estudantil.

Quem completa o trio de protagonistas é a modelo e estudante de Psicologia Ana Clara. Sem aporte financeiro da família e com muitos traumas ligados a abusos sexuais que sofrera durante a infância e a adolescência, a garota exagera nas bebidas alcoólicas e nas drogas, chegando a precisar trancar seu curso no meio do caminho devido ao vício. A mais ausente das três, Ana se divide entre o amor que sente pelo amante traficante de drogas e pela prospecção de estabilidade oferecida pelo noivo abastado.

Em uma entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo de 1995, Lygia afirmou: “Parti da realidade para a ficção. Sei que em estado bruto as minhas meninas existem, estão por aí. Como ponto de partida tomei-as assim meio informes, sem características mais profundas, os traços ainda indefinidos vieram como nebulosas. Tomei-as e fui trabalhando em cada uma, lenta e pacientemente, sou lenta. Afinal, tudo somado, creio que por mais de três anos convivi intimamente com essas três. Lorena, Lia e Ana Clara. Com qual delas eu fiquei mais? Difícil dizer. Dei a uma um gesto; a outra, um pensamento mais secreto que renasceu na boca de Lorena ou Lia... As personagens são como vampiros, cravam os caninos na nossa jugular e, quando amanhece, voltam ao seus sepulcros até que anoiteça de novo. O fim do livro seria a pedra que ponho sobre esses visitantes. Definitivamente? Não. Um dia, de repente, com outro nome e outras feições e em outro tempo volta mascarada a mesma personagem, elas gostam da vida. Como nós”.

 
Edições diferentes da obra, a primeira de 1976 e a última de 2009. Imagens: reprodução

DÚBIAS, HUMANAS, REAIS
Em sua carreira de escritora, Lygia Fagundes Telles publicou 20 livros de contos, quatro romances, participou de coletâneas e escreveu textos de diversos outros formatos. Porém, mesmo com uma obra vasta assim, As Meninas segue sendo, 50 anos depois de seu lançamento, o livro mais estudado e célebre da autora. Com características literárias tipicamente lygianas, a exemplo da utilização do fluxo de consciência, do foco no feminino e da fragmentação da história, seu romance conta com uma prosa cheia de humanidade e observações acerca das relações pessoais.

Considerada pela historiografia literária como uma autora pós-modernista, Lygia se celebrizou com o livro lançado em 1973, sucessor de Antes do baile verde, coletânea de contos que prenunciou a escritora como uma das mais importantes da literatura nacional contemporânea. Sua obra também é de importância imensa para a literatura brasileira por conta de suas protagonistas femininas, complexas e dúbias, que desafiam as normas vigentes à época em que foram escritas.

De acordo com Sandrine Robadey Huback, revisora de textos e formada em Letras Português-Alemão pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com especialização em Literatura Infantojuvenil pela Universidade Federal Fluminense e mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Mato Grosso, “a literatura tem um impacto muito grande devido à sensibilização ao outro. Vejo muito a literatura da Lygia nesse sentido, porque o feminino na literatura de Lygia é muito forte e presente. E, apesar de não ser uma literatura panfletária, no sentido de ela não panfletar movimentos feministas, por exemplo, através das representações de mulheres que ela constrói nas obras, ela permite que a gente questione muitas coisas em relação ao ‘universo da mulher’. Suas personagens femininas são complexas, muitas vezes ambíguas, no sentido de desobedecer a representação vigente do que seria o ideal feminino. São personagens que trazem várias virtudes, ao mesmo tempo em que trazem características consideradas absurdas para o comportamento de uma mulher”.

A prosa de Lygia tem como característica a capacidade de tomar para si tanto as questões estéticas, relativas à narrativa, quanto o olhar atento à realidade fora das páginas. No caso de As meninas, Sandrine indica que essa relação atenta se faz forte e presente, sendo uma das razões que torna o livro tão valioso. Nos anos 1970, afinal, o Brasil passava pelo período de ditadura mais escancarado, quando torturas aconteciam de maneira cada vez mais frequente e explícita, quando a liberdade era gradativamente cerceada. Foi nesse momento que a escritora teve coragem de erguer a caneta e não só escrever uma denúncia, em forma de personagens mulheres, quanto de levar a obra à frente e publicá-la.

“O contexto sociopolítico da narrativa de As meninas dialoga diretamente com o contexto de publicação da obra, que é o Brasil dos anos 1970, ao mesmo tempo em que Lygia parece não esquecer que As meninas é um trabalho de ficção, uma obra estética. Eu sinto que ela nunca esqueceu ou se afastou disso. (...) Eu só consigo imaginar a coragem da Lygia em escrever um romance como esse, em publicar uma obra como essa nos anos 70. Quando o Brasil vivenciava um período muito complexo de repressão, opressão, tentativa de silenciamento, a Lygia vai e escreve um romance como esse, trazendo um relato real de tortura e discutindo questões superinovadoras para aquela época, falando de morte, de aborto, questionando as crenças e valores religiosos que já se mostravam ineficientes para a felicidade humana, principalmente das mulheres”, pontua Sandrine.

Sobre o livro ter passado pela crítica do regime militar e ter recebido permissão para publicação, Lygia afirmou a O Estado de S. Paulo que o censor responsável por ler e avaliar o livro “deve ter se aborrecido com o livro e nem chegou ao momento da tortura. Comemoramos, Paulo Emílio e eu, com uma boa taça de vinho”.

LER AS MENINAS HOJE
Em uma entrevista a Clarice Lispector, publicada no livro Clarice Lispector Entrevistas, lançado pela editora Rocco em 2007, a escritora de As meninas confidenciou: “Eis o que me perguntam sempre: compensa escrever? Economicamente, não. Mas compensa – e tanto – por outro lado, através do meu trabalho, fiz verdadeiros amigos. E o estímulo do leitor? E daí? ‘As glórias que vêm tarde já vêm frias’, escreveu o Dirceu de Marília. Me leia enquanto estou quente”.

Ao falecer, em abril de 2022, aos 103 anos de idade e de causas naturais, Lygia nos legou com As meninas uma narrativa que arde como uma lembrança íntima e coletiva, como um aviso para jamais permitirmos que o passado de liberdade ameaçada e direitos cerceados bata à nossa porta.

“Eu vejo As meninas na atualidade como um dos instrumentos da manifestação artística que nos dá uma chance de refletir sobre nossos tempos. É uma oportunidade de a gente se sensibilizar, se humanizar e ver para onde não desejamos voltar, em relação a retrocessos de direitos, de liberdade. A literatura é isso, essa potência, essa força de transformação que nos ajuda a ressignificar nossa visão, mas também gera um impacto coletivo, é uma forma de olhar para o mundo e para o outro de uma maneira mais sensível”, sintetizou Sandrine Robadey Huback.

“Quando a morte olhar nos meus olhos e disser: ‘Vamos?’. Eu direi: ‘estou pronta, eu fiz o que pude’.” (Lygia Fagundes Telles)

LAURA MACHADO, jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco, estagiária da revista Continente.

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