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Escravismo na capital pernambucana

Leia o primeiro capítulo do livro ‘Liberdade, rotinas e rupturas do escravismo no Recife — 1822/1850’, de Marcus J. M. de Carvalho, publicado pela Cepe Editora

TEXTO Marcus J. M. de Carvalho

03 de Abril de 2023

Vista da cidade do Recife tomada do Forte do Brum

Vista da cidade do Recife tomada do Forte do Brum

Imagem ACERVO DIGITAL AFRO-BRASILEIRO/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 268 | abril de 2023]

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1. Águas do Recife

Na primeira metade do século XIX, Recife possuía uma série de características comuns a outras cidades escravistas brasileiras, como o Rio de Janeiro e Salvador. Vendedores ambulantes, negros de ganho e negros de aluguel enchiam as feiras e as ruas. Nas lojas e oficinas trabalhavam cativos nos mais diversos ofícios. A escravidão suntuária era a regra nas casas mais abastadas, com suas mucamas, cozinheiras, caseiros, amas de leite, moleques de recado, cocheiros e, por vezes, até guarda-costas.

Também não faltava gente para se alugar para os mais diversos ofícios, desde padeiros, sapateiros, vendedoras de azeite de carrapato (mamona), lavadeiras e até mulheres para o “serviço de homens solteiros”, como anunciavam os jornais da época. Os periódicos falavam de estabelecimentos comprando e vendendo escravizados mediante o pagamento de comissões que variavam em torno de 2% do valor do cativo. O negócio era tão bom que por vezes era dispensado até o pagamento das “comedorias” dos cativos depositados. Existia, portanto, todo um conjunto de atividades que eram compartilhadas por outros centros urbanos escravistas do mundo atlântico.

Mas havia também algumas especificidades no Recife que merecem atenção.

Uma delas era a relação da cidade com as águas, principalmente as do Rio Capibaribe, que emolduravam o espaço urbano propriamente dito, formado então pelos bairros do Recife, Santo Antônio e Boa Vista. Olhando para mapas daquela época, percebe-se um dado simples, mas de grande relevância para a vida social e cultural da cidade. Esses três bairros são três ilhas, ou quase isso. O Recife propriamente dito (onde ainda fica o porto) estava unido a Olinda por um istmo de areia de praia, que nos anos de ressaca braba era atravessado pelo mar. Santo Antônio (a Mauritzstaadt de Nassau) é o nome mais católico, digamos assim, da antiga ilha de Antônio Vaz. Por último, a Boa Vista, de longe o maior dos três bairros. Por estar mais próximo do interior, no começo do período colonial, era comum essa parte ser chamada de “continente”. Todavia, um braço do Capibaribe cortava o sudoeste daquele bairro dos subúrbios. Ao norte, um afluente do Rio Beberibe e os manguezais do local conhecido por Santo Amaro das Salinas iam pouco a pouco separando a Boa Vista da terra firme, até chegar ao Rio Beberibe propriamente dito — a fronteira com Olinda, a antiga capital.

Esses três bairros formavam a cidade do Recife. O resto eram subúrbios, povoações e áreas rurais contíguas, os “arredores do Recife”, na precisa expressão do cronista oitocentista Pereira da Costa.

Na época da Independência do Brasil, havia três pontes ligando esses bairros entre si: uma entre o Recife e Santo Antônio e outras duas saindo de Santo Antônio para Afogados e Boa Vista.

Ao redor desse núcleo estavam as terras de antigos engenhos transformadas em povoações, depois subúrbios, onde havia muitos sítios, alguns tufos de mata e engenhos ainda moentes, formando o que Gilberto Freyre chamaria do complexo rurbano das cidades patriarcais.

Nos seus primeiros anos, a história da capitania de Pernambuco é inseparável do processo de conquista da várzea do Rio Capibaribe, concluída na metade da década de 1550, por Jerônimo de Albuquerque, cunhado de Duarte Coelho, que caçou quantos índios pode na metade do século XVI, perdendo até um olho na luta. A partir daí, a indústria açucareira iria se expandir até Pernambuco igualar a Ilha da Madeira por volta da década de 1560. Logo logo, também, viria a ultrapassá-la, tornando-se a capitania de Duarte Coelho o maior produtor individual de açúcar de cana do mundo.

O crescimento do Recife seguiu esse mesmo trajeto, talhado pelo Rio Capibaribe, principalmente, e secundariamente pelo Beberibe. Invadindo suas margens no inverno e navegável por duas léguas a partir de sua foz, o Capibaribe tornou-se uma verdadeira estrada para o escoamento do açúcar produzido nos engenhos da sua várzea. Engenhos que se transformaram em povoações, e os mais próximos do porto, em bairros da cidade.

No começo, o Recife era apenas o porto donde escoava a produção dos engenhos, cujos donos achavam mais salubre e seguro morar numas colinas ao norte, Olinda. Para a tecnologia naval dos séculos XVI e XVII, era realmente um bom porto natural, que antes de se chamar Recife foi chamado de povo, simplesmente. Mas povo mesmo morava muito pouco por lá, até pelo menos a conquista definitiva da várzea do Rio Capibaribe. Daí em diante o açúcar tomou tudo quanto é lugar ali perto. Quando o corsário inglês James Lancaster atacou a capitania, em 1595, o povoado já era forte o suficiente para lhe oferecer alguma resistência, e também para lhe dar alguma comodidade. A intenção de Lancaster era roubar a carga de um navio espanhol avariado, mas terminou saindo com seus barcos cheios de açúcar e com as fazendas importadas pelos habitantes da capitania. A queima de Olinda pelos holandeses, em novembro de 1631, definiu o destino do Recife, que cresceria seguindo o curso das águas. Depois tomaria até o próprio leito do rio através de sucessivos aterros. À medida que o tempo passava e o Recife se esticava, as suas margens foram sendo ocupadas por moradias de todos os tamanhos, e as ilhotas paulatinamente incorporadas ao espaço urbano. Mas, na primeira metade do século XIX, ainda não estavam em uso os engenhos mecânicos que estreitariam definitivamente o leito do rio.

O açúcar produzido nos engenhos da várzea do Capibaribe era levado por balsas ao porto. E não era somente o açúcar de cana que seguia esse caminho. Com tanta estrada ruim, que as chuvas pioravam ainda mais, não é de surpreender que o rio virasse mesmo um caminho. Caminho perene. O tráfego de pessoas, mercadorias e animais era cada vez mais intenso à medida que o Recife ia se tornando a principal vila da capitania — um dado já inescapável na época em que os mascates brigaram com os mazombos de Olinda, no começo do século XVIII. Por muito tempo, o Capibaribe continuaria a ser uma via de acesso, tanto entre as três ilhas que formavam a parte urbana da cidade, como para os bairros mais distantes. Evaldo Cabral de Mello afirma que a época de ouro das canoas do Recife foi entre o último quarto do século XVIII e o final da primeira metade do século XIX.

Naquele tempo, no verão, entre dezembro e fevereiro, era lá para as bandas das povoações da Várzea, Caxangá, Poço da Panela e Casa Forte — hoje bairros como outros quaisquer — que se realizavam as festas mais populares da cidade. No final do século XIX, um memorialista escreveu com saudosismo sobre o que, para ele, fora a vida social no “Recife antigo”. Os mais pobres iam a pé para aqueles festejos. E, certamente, havia gente endinheirada que preferia ir a cavalo. O viajante Henry Koster gostou desse passeio. Mas, como era verão entre o Natal e o Carnaval, o Capibaribe tornava-se menos caudaloso, facilitando a navegação rio acima. O resultado é que se enchia de canoas, de tudo quanto é tamanho, levando pessoas para as festas, onde havia fandangos, coco, bumbas meu boi, sambas, presépios — e até recitais de poesia, para os enamorados melhor educados.

O caminho do Capibaribe, com suas águas cristalinas — na expressão de Tollenare —, tornou a área conhecida como Poço da Panela o local de veraneio das famílias mais abastadas a partir da virada do século XVIII. Mas, desde 1817, aquele viajante francês observou que aquilo que chamava de “classe média” já começava então a construir também suas casas nas “risonhas margens” do Rio Capibaribe, que o inglês Koster por sinal também achou muito agradável.

O transporte de pessoas e mercadorias era intenso em meados do século, com embarcações apropriadas para as mais variadas atividades. Isso sem falar do trajeto para Olinda, feito preferencialmente de canoas, como testemunharam Tollenare, Koster, Kidder, Gardner e até Charles Darwin, pois, pelo istmo, não havia sombra e era preciso a maré estar baixa para permitir a caminhada perto do mar, onde a areia era menos fofa. Isso quando as ondas simplesmente não o rompiam, como aconteceria várias vezes naquelas marés mais violentas que de tempos em tempos aparecem. Havia ainda mais um caminho, por terra, feito em parte por Maria Graham. Mas era mais longo, tinha que se atravessar a ponte entre Recife e Santo Antônio; depois, na maré baixa, contornar os mangues entre a Boa Vista e a estrada que levava até a povoação de Beberibe; e dali seguir para Olinda.

As mudanças também eram comumente feitas de barco, como bem observou Gilberto Freyre, naquele seu jeito às vezes cronologicamente meio vago, sem dizer se estava se referindo ao começo do século XX ou ao Oitocentos recifense. Isso deve ter sido a regra por muito tempo mesmo, principalmente durante a estação das chuvas — que tanto incomodou Darwin —, que torna as ruas intransitáveis. Da mesma forma, o material de construção, principalmente os tijolos, seguiam em canoas e barcas, pois, nas ruas de terra batida, poderiam quebrar-se facilmente. Por essa razão, muitas olarias localizavam-se próximas ao rio, que também servia para o transporte de areia e barro para aterros e edificações. Uma dessas canoas, empregadas em construções urbanas, foi levada pela correnteza no inverno de 1842. Segundo o seu aflito proprietário, era capaz de carregar 800 tijolos. Tinha a proa chapada de ferro para facilitar a atracação, e na popa um camarote fechado de cortiça.

Um dos problemas da cidade, aliás de qualquer cidade, era o abastecimento d’água. No começo do século XVIII, um “mascate” — daqueles que odiava Olinda e amava mais que tudo o Recife — já reconhecia que a água do Recife só servia mesmo para limpar as casas. Para se conseguir água potável no Capibaribe, era preciso entrar rio adentro por vários quilômetros. Isso não acontecia com o Rio Beberibe que, na maior parte do tempo, era protegido do mar pelo istmo que ligava Recife a Olinda, e mais ao sul por um “varadouro” de pedra, separando a água doce da salobra. Durante muito tempo, a melhor água que se tinha no Recife vinha de lá. Era por ali que os navios se abasteciam no século XVI, como bem observou Gabriel Soares de Sousa. O dique natural do Varadouro seria artificialmente melhorado por sucessivos governadores, formando-se um lago coberto de plantas, no qual havia muitos peixes também. Perto dali: o porto das canoas que iam e vinham do Recife.


Salathé Friederich, 1793-1860. Imagem: Panorama de Pernambuco/Divulgação

Ali eram abastecidas as “canoas d’água” que vinham do Recife. A volta era mais fácil do que a ida. Dependendo da maré, não era nem preciso remar muito, só dirigir a embarcação e seguir a correnteza em direção à foz. Mas o aumento da população ribeirinha foi naturalmente turvando a água do Rio Beberibe, que já chegava no Varadouro sem o sabor ideal. No começo do século XIX, eram muitas as queixas sobre isso. A água boa foi ficando cada vez mais longe. Não era somente a sujeira no dique que estragava a água. A lavagem de roupas tinha o mesmo efeito. Era na povoação de Beberibe onde se lavava a maior parte das roupas da cidade. Muitas dessas lavadeiras eram inclusive escravizadas. Estavam onipresentes nos anúncios dos jornais na primeira metade do século XIX, quando tanto poderiam trabalhar para uma só casa, como viver do ganho. As que sabiam passar bem e engomar eram valorizadas por isso. Tollenare disse que as lavadeiras, vendeiras de ruas, costureiras etc. traziam em torno de seis francos por semana para os seus senhores e eram “ordinariamente muito elegantes e em geral crioulas”.

Havia cacimbas na cidade, mas não era bastante. Na verdade, todo poço cavado dava água salobra. A pior água então era no Bairro do Recife propriamente dito. Os holandeses sentiram isso na pele e talvez tenham entendido a sabedoria dos portugueses ao fundarem Olinda, que além de ser mais perto do Beberibe, tinha boas fontes naturais jorrando no coração da cidade. Teria sido essa falta d’água que levou os batavos a preferirem a Ilha de Santo Antônio para moradia, estabelecendo ali a Mauritsstadt. Num dos extremos daquela ilha, estavam as cacimbas de Ambrósio Machado, defendida pelo Forte das Cinco Pontas. Mas, mesmo lá, o precioso líquido não era grande coisa. Havia água bem mais gostosa rio acima, no subúrbio de Monteiro. Foi ali que os aguadeiros começaram a encher as suas canoas à medida que crescia a população, aumentando a sujeira perto da foz do Beberibe, tornando o dique do Varadouro insuficiente para a demanda.

A higiene dessas canoas não era das melhores, claro. Koster achou-as imundas. Uns trinta anos depois, em 1839, O Carapuceiro queixava-se da mesma coisa. Achava “lastimável” que a capital de Pernambuco recebesse toda a água “quanto consome em nojentas canoas, as quais andam à discrição dos escravos”. Em 1843, um médico higienista pernambucano comentava que durante o verão, nos anos mais secos, para se conseguir alguma água, “é necessário que os pretos das canoas d’água, nus e dentro do pântano junto às bicas, revolvam a água (...) recebendo-se, em vez d’água potável, água lamacenta”.

O comércio de água devia render um bom dinheiro para os aguadeiros do Recife. Um historiador oitocentista documentou que os negociantes que controlavam o fluxo do Riacho do Prata no Monteiro aumentaram extorsivamente o preço do balde d’água nesse período em que a população crescia rapidamente. Segundo uma reclamação ao governo, o balde, que antes custava cinco réis, passou a dez e, em 1830, a vinte. Alegavam os reclamantes que a fonte d’água era realenga e não propriedade privada.

O resultado é que algumas famílias mais abastadas preferiam não depender dos aguadeiros, empregando seus próprios pretos canoeiros para abastecer suas casas de água potável. Em 1841, um interessado queria alugar um desses escravizados, dispondo-se a pagar no final de cada semana o valor de duas patacas por dia de serviço e dar “almoço, jantar e ceia” ao cativo. Permitia ainda que o negro alugado fosse ver o seu senhor “todas as vezes que quiser”, desde que este último morasse na cidade. Duas únicas exigências: tinha que ser bom canoeiro e de boa conduta.

As canoas d’água permaneceram por bastante tempo, mesmo depois que a água encanada chegou à cidade, vinda do Açude do Prata, no Monteiro, até algumas praças selecionadas na Boa Vista, Santo Antônio e Recife. Para os donos daqueles sobradões na beira do rio, devia ser mais cômodo mandar trazer direto da fonte do que mandar buscar nos chafarizes públicos. A bem da verdade, como produtos da expansão urbana, os pontos de distribuição criariam também seus próprios problemas. Cedo tornaram-se pontos de encontro de destituídos, renovando-se as queixas contra os negros e escravizados reunidos, com suas cantorias e algazarras. Mal os chafarizes começaram a ser instalados, já dizia um desses queixosos que a presença de toda aquela gente negra e parda reunida era contra a “moral pública”. Como a água tinha que ser transportada para as casas em barris do mesmo jeito, muitos senhores de escravizados provavelmente preferiam as velhas canoas d’água em vez de mandar os cativos para um local onde fatalmente encontrariam outros negros na mesma situação. A própria Companhia do Beberibe — que construiu o encanamento e os chafarizes do Recife — percebeu a conveniência do velho sistema e, em 1845, mudou o ponto de abastecimento das canoas d’água para mais perto do centro da cidade; da Ponte d’Uchoa passou para o porto das canoas ao lado da ponte que ligava Santo Antônio a Boa Vista.

Por último, outra razão para a permanência das canoas d’água eram os resíduos deixados pelos canos metálicos que distorciam o sabor e a cor da água, manchando as roupas lavadas, como observou até um defensor das enormes vantagens trazidas pela água encanada.

É curioso notar, portanto, que o fornecimento da água consumida pelos donos dos altos sobrados do Recife dependia de escravizados e negros canoeiros. Quanta água sujada, cuspida e até urinada por negro mais afoito não deve ter sido bebida pelos donos de gente que habitavam a cidade.

Na década de 1840, empresas bem estabelecidas faziam o serviço de diligências que ligavam os bairros centrais aos subúrbios e ao interior. Mas a onipresença do rio dava ao transporte fluvial algumas vantagens. Na maior parte do ano, era mais rápido, principalmente na direção interior-cidade, seguindo a correnteza. Quanto à suavidade e aos prazeres dos banhos de rio, nem se fala. Não era sem razão que muitas casas na Boa Vista, Santo Antônio e até nos subúrbios tinham sua fachada voltada para o rio e não para a rua. Vários observadores comentaram esse fato. Algumas poucas casas no Recife, construídas na virada do século XIX e no século XX, sobreviveram ao tempo e ainda testemunham esse momento da história da cidade, quando, lá por volta de setembro, os jornais começavam a anunciar casas para se alugar durante o verão, próprias para os banhos de rio. Há indícios de que foi numa dessas residências, perto de um braço de rio, onde se realizaram alguns daqueles jantares sediciosos que precederam a Insurreição de 1817, nos quais se servia cachaça e tapioca no lugar de vinho e pão.

Havia canoas de todos os tamanhos e tipos. As maiores tinham camarotes para proteger seus ocupantes da chuva e do sol, ou simplesmente para evitar os olhares curiosos, como era a prática entre as damas da aristocracia local, que Tollenare praticamente só viu na missa e, paradoxalmente, no Rio Capibaribe, tomando banho nuas junto com seus empregados domésticos, inclusive escravizados. Desse anonimato das canoas cabinadas também se faziam usos ilegais. Um anunciante, em 1845, procurava o moleque Felix, que fugira e fora visto pescando no Monteiro. Pedia então aos proprietários de canoas que não permitissem nos camarotes a presença de “pretos fugidos, ou pretas, pois já se tirou de uma canoa uma preta da mesma casa”.

A profissão de canoeiro devia ser procurada por muitos libertos, negros e pardos livres, principalmente quando era possível ter uma canoa própria. Um negócio que poderia combinar com a pesca e pega de caranguejo. Os canoeiros do Recife eram tantos que chegaram a ter uma capela própria. Uma capela simples, da qual foi feita uma pintura na metade do século XIX. A atividade era reconhecida pela justiça local, tanto que, das oito profissões discriminadas numa lista de gente que passou pela cadeia de Pernambuco em 1838, uma delas era a de “canoeiros, pescadores e marinheiros”. Todavia, como qualquer trabalho braçal, também era ocupação própria para escravizados.

Como os cativos se prestavam para tudo, aqui e ali encontram-se anúncios de gente que quebrava qualquer galho, exercendo, ao mesmo tempo, uma variedade de funções. José de Benguela, aos 21 ou 22 anos, era “canoeiro e padeiro”, uma ligação meio difícil de fazer, embora, quem sabe, talvez o anunciante quisesse apenas dizer que ele entregava pão de canoa. A profissão de canoeiro, portanto, podia estar também relacionada a outras atividades do seu senhor. Foi assim com o angolano Manoel. Quando fugiu, era “canoeiro e caiador”, dois ofícios aparentemente difíceis de conciliar, se não levarmos em conta que as olarias e os empreiteiros de obras levavam tijolos pelo rio. Não havia porque não treinar um escravizado nos dois ofícios visando assim aumentar sua rentabilidade.

Alguns negros eram realmente versáteis. Um preto à venda, também em 1846, era canoeiro, pescador e um “bom trabalhador de enxada”! Como qualquer currículo, talvez esse fosse um retrato da vida de um cativo que mudara de atividade. Houve aqui um caso típico de mobilidade ocupacional. O escravizado saíra do trabalho braçal no campo para um outro conjunto de ocupações que lhe conferiam uma maior autonomia embora continuasse escravizado.

Todavia, para o exercício permanente da função de canoeiro, era preciso algum treino e especialização. O rio não era uma estrada reta. Ele também tinha seus caprichos. Em alguns locais, afinava-se em trilhas às vezes incontornáveis, sob o risco de se encalhar em algum banco de areia. Quando a água subia, em algumas curvas mais profundas formavam-se redemoinhos, dificultando a movimentação da canoa. Cabia ao canoeiro escolher o lado certo para não ter problemas. Fora isso, havia muito manguezal nas margens, e as plantas se largavam rio a dentro. Antes da poluição industrial vinda das usinas de cana, havia muita vida vegetal no leito do Capibaribe. Devido à correnteza, à água mais rasa na maior parte dos trechos e à essa vegetação, a vara tornava-se mais eficiente do que o remo. Nas gravuras do Recife antigo, onde aparecem canoas menores, o remo é a vara, que se metia no fundo do rio, alavancando então a canoa pra frente. O canoeiro tinha que manuseá-la de pé, o que exigia um molejo todo especial de cintura e bastante equilíbrio. Se a canoa fosse um pouco maior, às vezes se utilizava também o remo, só que colocado atrás, como se fosse um leme. Claro que havia também canoas imensas, com vários remadores em cada lado, transportando carga pelo rio ou passageiros ilustres — como Dom Pedro II quando visitou a cidade. Mas, quando a distância era maior, o que valia mesmo era a vela latina, perfeita para a navegação no trecho mais longo entre Santo Antônio e Recife, ou dali para Olinda, no local onde o Capibaribe e o Beberibe se juntavam numa imensidão de água. Tanto as canoas grandes quanto as pequenas podiam fazer uso da vela nesses casos. Algumas dessas canoas eram chapadas de cobre. Chegavam a dois metros de largura ou mais. Faziam até viagens mais longas. Kidder foi numa canoa cabinada até Itamaracá, navegando por dentro da linha de arrecifes entre a praia e o mar. A tripulação era formada por um pardo no comando e dois negros auxiliares.

O Capibaribe era amigo na maior parte do ano, mas no verão minguava no caminho entre Olinda e Recife. Num dos seus passeios, o pastor Kidder teve que fazer hora em Olinda esperando a maré subir para voltar ao Recife. Para quem estava no meio do rio, o problema era maior. Se desse vacilo, encalhava nos bancos de areia, e aí era uma trabalheira para soltar.

No inverno, o Capibaribe tornava-se mais caudaloso. Ficava fácil navegar, mas o perigo aumentava proporcionalmente devido a intensidade do tráfego de canoas e balsas carregadas de açúcar em direção ao porto. Tinha que se dirigir nesse engarrafamento todo. Isso num rio às vezes violento, cujas cheias têm longa história. Um dique e uma ponte nos Afogados, levantados pelos holandeses na década de 1640, foram arrastados pela correnteza na cheia de 1650. A ponte teve que ser reconstruída de forma mais sólida. Isso sem falar na luta que foi a construção da primeira ponte — entre Recife e Santo Antônio — que hoje leva o nome de Nassau. Os holandeses, que eram tão acostumados a brigar com o mar, subestimaram a força do Capibaribe.

As enchentes também ameaçavam as moradias na beira do rio, onde viviam muitos negros de ganho e despossuídos em geral na primeira metade do século XIX. Os redemoinhos tornavam quase impossível atravessar o Capibaribe a nado durante o inverno. Alguns trechos eram particularmente perigosos. Foi por essa razão que, no período colonial, ganhou o nome de Rio dos Afogados o ponto de encontro do Capibaribe com os rios Jordão e Tejipió — mais riachos do que rios, separando o sul do bairro de Santo Antônio do continente. Morria gente mesmo, e nem precisava de inverno para isso. Depois da derrota do ataque dos praieiros ao Recife, em fevereiro de 1849, boa parte da tropa de jagunços trazida dos engenhos dos liberais tentou fugir a nado e ficou ali mesmo.

O exercício da profissão de canoeiro exigia, portanto, algum conhecimento do rio — com seu fundo irregular, planctum, redemoinhos, bancos de areia, camboas — e um conjunto de habilidades específicas para o manuseio eficiente de vara, remos e velame. Era um trabalho que exigia uma certa especialização. Daí porque, nos anúncios de venda, nem sempre bastava mencionar que o cativo era canoeiro. O que importava é que fosse um bom canoeiro, ou mesmo “ótimo”, ou até “perfeito”, como alguns postos à venda em 1846.

Sendo o treino importante, quanto mais longa a experiência, mais valorizado era o escravizado. O “cabra” Manoel, “canoeiro de profissão”, já estava há uns três ou quatro anos no Recife quando fugiu. Mas, segundo o anunciante, era “filho da província do Pará”. Melhor origem para um canoeiro não podia haver.

Entre esses trabalhadores havia escravizados domésticos, de aluguel e, principalmente, negros de ganho, que geralmente pagavam por semana aos senhores, como notou Koster. É relevante observar a autonomia e mobilidade desses escravizados — quase uma situação limite em termos de liberdade de movimento. O controle devia ser complicado, mas a lógica indica que boa parte deste devia ser feito pelos próprios canoeiros livres — provavelmente também senhores de cativos empregados no negócio.

No final da década de 1830, o pastor Kidder notou que os canoeiros — em geral negros possantes — seguiam uma hierarquia semelhante à militar. Alguns eram eleitos pelos outros para os postos de sargento, alferes, tenente, capitão, major e coronel. Os de maior patente tinham preferência na passagem e eram cumprimentados pelos demais com a vara de remar, dando um determinado número de toques de acordo com a posição de cada um na escala. Essa hierarquia, sucintamente descrita por Kidder, é um exemplo das formas de organização dos negros do Recife, que dividiam-se em grupos, seja por etnia, nação ou profissão. Os chefes eleitos tinham o respeito dos seus pares.

A habilidade exigida do canoeiro era compensada pela renda produzida pela atividade. Faltam-nos documentos mais precisos a esse respeito, mas ao menos Tollenare comentou a respeito do produto dos escravizados do Recife, incluindo aí várias especialidades, entre as quais o trabalho portuário. Os trabalhadores desse ramo, segundo o viajante, “ganham bem sua vida”, fazendo em torno de sete a oito francos por semana. Todavia, o que mais o impressionou foi a renda produzida pelos canoeiros dos rios Capibaribe e Beberibe, que viu ganhar “até 5 francos num dia”. O valor por eles produzido também se refletia nos anúncios de fuga. O moçambicano João já estava desaparecido havia três anos quando foi oferecida uma recompensa de cem mil réis pela sua captura.

Os escravizados canoeiros eram violentamente reprimidos e vigiados com especial rigor. Não apenas pelo valor que tinham, mas também pela mobilidade inerente à sua ocupação, que certamente facilitava a fuga. Um moçambicano que escapuliu em 1843 tinha o nome de André, mas seu senhor informava num anúncio que ele também era conhecido por “Pedro, ou antes o Estrela”. Vê-se, portanto, que havia canoeiros que costumavam mudar de nome quando trabalhavam longe da vista do senhor. Isso confundia o dono do escravizado e as autoridades na hora da fuga. Segundo o anunciante, nesse caso, o fugitivo estava no Recife ou nos seus arredores — uma afirmação que denota que a mobilidade do cativo tornava difícil saber exatamente como e para onde ele se evadira.

A mobilidade própria da função trazia outras vantagens para os cativos. Além de poderem ir para longe com uma certa facilidade, os canoeiros teciam relações com pessoas que moravam longe dos seus senhores. No momento em que decidia fugir, um canoeiro podia se beneficiar dos contatos feitos em outros bairros da cidade. Fidélis, natural do Recife, tinha um “ar sério” e uns 40 anos quando desapareceu. Costumava viajar para o Poço da Panela — a área de veraneio das elites locais. Naquele lugar, conhecia muita gente, segundo informava seu senhor, que entendia que esses contatos serviram na fuga.

Para os senhores, pior ainda era quando esses canoeiros teciam suas malhas de solidariedade, não somente em seu próprio benefício, mas para ajudar outros cativos que não tinham a mesma mobilidade deles. Foi assim que aconteceu na fuga de Tereza, uma africana de 24 anos. Segundo seu senhor, ela teria fugido numa canoa. O responsável pelo delito era o próprio canoeiro, o escravizado Manoel, mais conhecido por Forquilha, que segundo o anunciante teria seduzido Tereza a fugir numa daquelas canoas que faziam o trajeto entre Olinda e Recife.

Quando essas pessoas eram capturadas, pagavam as mesmas penas que quaisquer outros escravizados fugitivos. Mesmo assim, quando surgia a oportunidade, desapareciam de novo. Em 1844, um canoeiro, também africano de nascimento, ao fugir — e não era a primeira vez — já tinha marcas de castigo e “um ferro de gancho no pescoço”.

A própria organização do espaço urbano sofria as consequências da presença desses escravizados. Da mesma forma que os chafarizes eram pontos de encontro de negros, também o eram os locais preferidos para embarque e desembarque das canoas. Havia inclusive negros que moravam perto desses portos fluviais do Capibaribe. Raimundo, capturado no quilombo do Catucá em 1831, era “morador no porto das canoas”, o principal porto fluvial do bairro de Santo Antônio.

Os escravizados canoeiros do Recife constituíram uma categoria relativamente singular entre os cativos da cidade, e foram desaparecendo à medida que a própria escravidão se diluía nas últimas décadas do século XIX. Como quaisquer outros escravizados, muitos fugiam mesmo que temporariamente, e outros tantos permaneceram escravizados a vida inteira. Todavia, se o testemunho de Tollenare tem algum valor, é possível inferir que a profissão permitia amealhar algum dinheiro e que, talvez, os canoeiros estivessem entre aqueles cativos que tinham realmente alguma chance de juntar uma parte do produto do trabalho para algum dia comprar a própria liberdade. Eram exceções e não a regra. Quando dava tudo errado, fugiam como outros escravizados quaisquer, só que tinham uma distância de vantagem.

A importância dos transportes fluviais entre o período colonial e o século XIX pode ser facilmente observada na iconografia recifense. Era o Rio Capibaribe que ligava os três bairros principais da cidade entre si e com os subúrbios. Era atravessando o ponto de encontro do Capibaribe e do Beberibe que se ia para Olinda. Isso tudo permitiu uma integração dos canoeiros à paisagem urbana. Negros e pardos aparecem levando canoas pelo rio nas gravuras feitas da cidade durante todo período da escravidão. Quando Schlappriz desenhou o Recife na década de 1860, já havia mais uma ponte ligando o Bairro do Recife a Santo Antônio, luz a gás nas ruas e trem cruzando o interior. Mas as canoas estão lá, onipresentes — simples, no ir e vir da rotina dos transportes urbanos, ou enfeitadíssimas, em dias de festa, como durante a visita de Dom Pedro II à cidade em 1859.

Essa relação do Recife com as águas do Capibaribe é um dos aspectos mais singulares da cidade e distingue o seu espaço de outros centros escravistas, como Salvador e Rio de Janeiro. Essa imagem dos três bairros centrais — Recife, Santo Antônio e Boa Vista —, separados e unidos pelas águas dos rios Capibaribe e Beberibe, ajuda a entender a história da cidade, cuja demografia também tinha especificidades.

MARCUS J. M. DE CARVALHO, professor titular de História do Brasil da UFPE. Ph.D. em História pela Universidade de Illinois, mestre em História (UFPE), bacharel em Direito (UFPE). Pesquisador nível 1 A do CNPq na área de História. Atualmente, é membro do Comitê de Área do CNPq. Torcedor do Náutico, esquerdopata, envolvido com ensino e pesquisa.

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