Portfólio

Camille Kachani

Deformar o mundo e dele extrair outros modos de ver

TEXTO Bianca Coutinho Dias

03 de Abril de 2023

'Estante V', 2018, técnica mista, 80 x 120 x 30 cm

'Estante V', 2018, técnica mista, 80 x 120 x 30 cm

Imagem GUI GOMES/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 268 | abril de 2023]

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Com uma regularidade exemplar,
o judeu retoma sempre a sua caminhada rumo ao deserto;
Segue em direção a uma palavra renovada,
a palavra que se tornou a sua origem.
Quando crias, recrias a origem, lugar onde te aniquilas’,
escreveu Reb Sanua.”
Edmond Jabès

O encontro com a obra de Camille Kachani provoca uma espécie de iluminação, algo que salta aos olhos perfurando certezas frente a objetos e ao que deles emana como visualidade. Sua origem e questão central residem no fato de ser um judeu apátrida diaspórico, assim como o poeta Edmond Jabès que, criado no Egito, foi expulso e mudou-se para Paris em 1956. Jabès cultivou, na poesia, a mesma inquietação que Kachani.

O percurso do artista – que inclui a pintura, a fotografia e a escultura – chega aos objetos e assemblages que, hoje, constituem o potencial crítico e estético de seu trabalho. Com objetos híbridos e justapostos, Kachani promove uma investigação fascinante que confere certo desatino e retira das coisas suas funções previamente estabelecidas, como em Cadeira madura, de onde brotam galhos e ramos, ou em Sagrado trabalho, em que um martelo retorcido é despojado de seu gesto fundamental para adormecer na poesia dos dias e da natureza.

Três livros fotossintéticos, 2022, técnica mista, 58 x 40 x 28 cm. 
Imagem: Lucas Cimino/Divulgação

A escrita de John Berger – um crítico de eloquência deslumbrante e grande compreensão sobre o campo do olhar – dialoga muito bem com a dimensão epifânica encetada pela obra de Kachani. Em Sobre o olhar, o escritor explora nosso lugar como observadores e revela novas camadas de significado naquilo que vemos. Em Modos de ver, Berger revoluciona a crítica de arte ao apontar as estruturas de poder presentes no processo de criação de imagens.

A obra de Kachani é feita também dessa mesma espessura e seu trabalho possui uma densidade que não se deixa capturar totalmente. Os objetos que o artista elege suportam uma latência, uma temporalidade sobreposta e criam constelações com outras imagens, ramificações que não revelam sua origem exata numa rede de condensações e deslocamentos que, longe de denotarem um estilo formal, reconfiguram o espaço que já não é o mesmo, com a presença das obras. Três livros fotossintéticos, Gavetas vivas ou Inobedientem corpus são criações em que a dimensão do informe introduz uma dobra, a partir de uma violência na forma e na medida. Trata-se de um movimento orgânico em direção à desagregação, um trabalho incapturável que não se deixa aprisionar e é feito de ambiguidades, tensões e contradições. A relação com a língua também se estabelece para o artista como pura estranheza e muitos títulos de obras aparecem em latim ou hebraico, ou mesmo de uma invenção que se dá a partir da mistura de línguas.

Libertas Cogitandi, 2015, técnica mista, 24 x 25 x 30 cm.

Piano solitário, 2021, técnica mista, 202 x 185 x 93 cm.
Imagens: Gui Gomes/Divulgação

Ao inventar cartografias e imaginar outras realidades, Kachani salta da pintura para a relação com a desfiguração e deformação de objetos para revelar a força da crítica, outras possibilidades e elementos significantes, que indicam as interlocuções instauradas pelo seu gesto criativo. Ao transfigurar objetos, seus atos de criação dão forma ao sem forma e expressão ao inexprimível. O artista se aventura, então, na experimentação de novas linguagens e cria outras formas de visibilidade e condições de enunciação, um enigma sustentado por objetos cotidianos redimensionados em escala e funções originais: livros, gavetas, cadeiras, gaiolas e estantes se tornam receptáculos híbridos em que natureza e cultura se fundem. As ramificações e galhos forjados pelo artista revelam que artifício e natureza estão em constante diálogo no pacto civilizatório.

Georges Bataille descreve o momento em que um objeto pode abrir uma fresta para acolher a dessemelhança, seja por contato ou por devoração. A ideia de deformação na obra de Kachani dilacera a função estabelecida, como uma espécie de corte ou desfiguração que coloca nos objetos a surpresa e o espanto do olhar.

De espaços íntimos e caminhadas pelas ruas, o artista recolheu aquilo que foi, ao longo dos anos, incorporado ao seu trabalho. Embalagens descartadas, gravetos, pedaços de máquinas ou de computador: o excedente encontra novo destino no gesto artístico. Em A obra de arte, Walter Benjamin aborda algo que Freud já anunciara: o inconsciente óptico e o inconsciente pulsional. Esse olhar errante que escava no mundo sua matéria é fundamental para a vibração do trabalho de Kachani: restos e vestígios da cultura.

Saxofone esperançoso, 2022, técnica mista, 142 x 68 x 50 cm. 
Imagem: Gui Gomes/Divulgação

O judeu apátrida assume a atopia como maneira de habitar essa espécie de não lugar e funda, aí, sua transgressão como artista: o gesto que assume a errância a qual sempre esteve presente em sua vida a partir do trabalho; a destruição da forma pelo informe; o ato encarnado do fazer e do desfazer, da aparição e da desaparição. De uma relação viva e intensa que começou com uma investigação envolvendo livros – os de sua infância ou outros encontrados em sebos – ele constrói seu vocabulário e uma biblioteca intempestiva que cria léxico e mundo próprios. O artista desmonta os livros, refaz as capas, entorta-os com procedimentos mecânicos, em um processo de deformação que se configura como um procedimento poético vital.

O liame entre natureza e cultura e sua relação com temas heteróclitos como antropologia, paleontologia e arqueologia também comparece na sua criação como encantamento e perplexidade diante das coisas e do mundo. Um espanto que Kachani relata sentir desde as aulas de ciências, território primordial de suas questões, onde diz ter percebido que “não estamos fora da natureza e não existe pureza na natureza”. Somos feitos também dessa matéria impura e violenta e entre a natureza e o artifício há sempre uma interpretação. Dos primitivos objetos utilitários que condensam o registro dos primeiros gestos sublimatórios como a aparição do fogo causado pela fricção de duas pedras, passando por seixos, punhais e desenhos nas cavernas, lidamos com algo que irrompe nesse limite entre natureza e artifício. Kachani demarca essa presença com suas plantas de plástico que assinalam a presença do artifício, essa espécie de “mão do homem” em tudo.

A cultura é a nossa interpretação da natureza e é preciso, aí, evocar a questão ecológica que brota de uma obra que anuncia uma espécie de “futuro ancestral”, como aquele desenhado por Ailton Krenak, ao alertar que precisamos incorporar a floresta como centro pulsante de um verdadeiro avanço que faça contraponto ao que o capitalismo chama de progresso. Na contramão das máquinas de fabricar formas rápidas, Camille Kachani se vale de uma pluralidade semântica e de materiais que sondam o impossível do entrelaçamento de substâncias que se cruzam, se aglutinam, se mesclam. Da tridimensionalidade com restos de peças de eletrônicos, passando por intervenções em retratos e indo à deformação e brotamento como um modo de atualizar em linguagem a presença do indizível, o artista nos surpreende com uma estrutura ficcional rica e consistente, ancorada na sua relação com o saber, os livros e os extremos de uma diáspora subjetiva.

Coisas de dentro, coisas de fora, 2016, técnica mista, 100 x 98 x 19 cm.
Imagem: Gui Gomes/Divulgação

Sua poética se funda em condensações e deslocamentos que portam uma dimensão vibrátil, que se manifesta sem centro e se projeta em uma leitura de mundo que inclui questões ecológicas, existenciais, coletivas e políticas. Trata-se de um trabalho difícil de ser lido, como anunciam seus livros com palavras escritas em línguas antigas e inusuais. E a dificuldade da leitura é parte do jogo que se estabelece com o espectador, como uma aposta crítica de que é possível ler e ver para além das palavras e imagens prontas, como bem ensina Roland Barthes, para quem “ler é fazer o corpo trabalhar”, pois se trata, antes de mais nada, de uma questão corporal, uma desmesura com a imaginação que ressoa no corpo.

***

Podemos então afirmar, a partir de suas políticas da imaginação, a materialidade e o fulgor de um trabalho com margens livres de sentidos que tornam possível continuar realizando e dizendo as coisas de outro modo. Essa deformação é assombrosa, desmedida, e chega a ser desconcertante em seu trânsito entre o absurdo e o sublime, pois nos coloca diante do impossível.

Na obra de Camille Kachani talvez não haja origem. Não haverá, portanto, fim. Para muitos cosmólogos, jamais houve um começo para o nosso universo. A produção de Kachani talvez se faça a partir de um centro obscuro, de lenta gravitação, que se alimenta de seu próprio impulso entrópico: a pulsação da criação vem à tona em diversos momentos em poemas-livros, poemas-cadeiras, poemas-gavetas, poemas-musicais, em imagens mutantes e espasmódicas que chegam como epifania ou como um relâmpago intermitente que apanha o clarão no subterrâneo celeste.

Gaiola inútil, 2020, técnica mista, 78 x 45 x 28 cm. 
Imagem: Gui Gomes/Divulgação

Ou no silêncio de uma orquestra como na série Orquestra assinfônica fotossintética, em que a realidade transfigurada se coloca a partir de uma deformação de sentido que nos permite vislumbrar as possibilidades do real de um instrumento musical que se torna um híbrido de fantasmas, plantas e silêncios – uma sagração em que todas as coisas se identificam e se misturam em doação alquímica. Os instrumentos se tornam vias de acesso ao singular, dispositivo ficcional que consiste em uma montagem que visa esburacar as imagens para inventar uma música “fotossintética” com apetrechos díspares e semelhantes se entremeando e se ajustando, se consumindo como numa festa dionisíaca em celebração à vida e afirmação do ser. São elementos alucinados em estranha harmonia que convocam outros elementos – como a floresta, o ritmo, a plasticidade e a pulsação silenciosa que reverbera em várias direções possíveis, ao flagrar o inapreensível e sobrevoar o impossível.

Em Coisas de dentro e coisas de fora ocorre uma operação de remanejamento das funções simbólicas, que condensa muito da história de Camille Kachani, em que todas as paixões e afetos participam com seus derivados semânticos: o amoroso e o delicado, mas também o cruel e o terrível. São vivências e lembranças do início da guerra civil no Líbano, em que coisas domésticas – como pires e xícaras de chá utilizados pelas mulheres da família em encontros íntimos – se fundem a réplicas de bombas que povoavam a vida das pessoas, numa coexistência de mundos que revelam uma «transfiguração redentora» que fez do menino Camille um artista do som e da deformação que ancora a possibilidade da utopia. Com fina sensibilidade, Kachani encontra a dimensão pulsional mais singular e cria sua orquestra assinfônica: música da forma, da imagem e do sentido.

Paul Celan, outro judeu que extraiu da experiência da guerra e do holocausto a potência de sua poesia abismal, ecoa: “toquem mais sombriamente os violinos/ depois hão de subir em fumo nos ares/ depois haveis de ter uma sepultura nas nuvens onde o espaço não falta”. Pois criar e inventar um mundo possível frente aos impossíveis é, também, uma fuga da morte.

BIANCA COUTINHO DIAS , curadora e crítica de arte.

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