Artigo

Arquivos para o comum, arquivos para o futuro

Novas iniciativas arquivísticas combatem a ideia de história única e as lógicas relacionais coloniais

TEXTO Marina Feldhues

03 de Abril de 2023

Protesto da Comunidade de Novos Alagados, em frente à prefeitura de Salvador, 1993

Protesto da Comunidade de Novos Alagados, em frente à prefeitura de Salvador, 1993

Foto LÁZARO ROBERTO/ZUMVÍ ARQUIVO AFRO FOTOGRÁFICO/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 268 | abril de 2023]

Assine a Continente

Quando pensamos em arquivo, em geral, pensamos num edifício, dentro do qual estão guardados documentos visuais, textuais e sonoros que passaram por um processo de seleção ou eliminação para estarem ali. Diz-se que os documentos dignos de serem preservados são atestados de ações consumadas, isto é, pertencentes ao passado e que, portanto, não podem ser desfeitas. Esses documentos serão classificados por legendas e códigos que os identificarão na ordem estabelecida pelo arquivo. É desse modo que serão preservados, protegidos e tornados públicos pelo arquivo a seus usuários, sob certos protocolos de acesso. Essa ideia de arquivo tem uma origem colonial:

Que uma única concepção de arquivo tenha emergido da diversidade cultural, rivalidade e frequente hostilidade, entre as múltiplas potências imperiais europeias indica que o que estes atores partilharam prevaleceu sobre essa diversidade: o desejo e a prontidão para liquidar os mundos em que eles e outros viveram, de modo a preparar o caminho para a busca do novo. A destruição tornou-se a língua franca por meio dos papéis criados por esta rede de castelos. A velocidade e a intensidade com que os mundos foram produzidos como “não mais” moldaram a compreensão do arquivo como o depósito do passado e moldaram este passado como um reino digno de cuidados para o seu próprio bem. (AZOULAY, 2019, p. 552, t.n.)

Como usuária desse arquivo, chamo a atenção para uma outra ordem, por ele estabelecida, e que diretamente me implica: “a lei do que pode ser dito” (FOUCAULT, [1969] 2008, p. 147). Primeiro, como já mencionado, sou ordenada a considerar os documentos como fatos consumados do passado. Segundo, as legendas e classificações aderem aos documentos como uma segunda pele transparente; de tal modo que, diante de uma fotografia, por exemplo, tendo a enxergar aquilo que sua legenda e classificação afirmam. Com isso, esse arquivo compõe uma ideia do que aconteceu e me ordena como devo contar a história.

Materializado a partir de lógicas relacionais coloniais (colonialidades) de opressões cruzadas de gênero, raça e classe e os pressupostos epistêmicos que lhes dão suporte, esse arquivo exclui as pessoas afrodescendentes e corpo e gênero diversas de seus acervos ou as classificam em categorias identitárias que reduzem suas experiências de vida a estereótipos negativos e violentos. Contra essa história única (ADICHIE, 2019), diversas iniciativas arquivísticas têm surgido no Brasil nas últimas décadas; quero apontar duas delas: o Acervo da Laje e o ZUMVÍ Arquivo Afro Fotográfico.

O Acervo da Laje é um museu-escola-casa organizado pelos professores e pesquisadores José Eduardo Ferreira Santos e Vilma Santos, desde 2010, no Subúrbio Ferroviário de Salvador (BA), no Bairro de São João do Cabrito. O Acervo conta com obras de artistas da região, em geral invisibilizados pelos grandes circuitos artísticos, objetos e artefatos naturais diversos, como conchas, coletados pelo bairro. O Acervo ocupa duas casas, sendo uma também a residência dos professores, além de possuir um site em que é possível consultar a hemeroteca de temas relacionados ao Subúrbio Ferroviário de Salvador, os projetos realizados e uma galeria virtual. Nesta, podemos consultar coleções de objetos e artefatos culturais e, também, obras e biografias de diversos artistas do território.

José Eduardo Ferreira Santos é um dos organizadores do Acervo da Laje, que funciona desde 2010. Foto: Ana Devora/Divulgação

Na entrevista que fiz com José Eduardo, ele me contou que o Acervo da Laje nasceu para valorizar o sentimento de pertencimento dos moradores ao território. Um dos primeiros projetos do Acervo foi o ensaio fotográfico Cadê a Bonita?, feito em parceria com o fotógrafo Marco Illuminati. Nesse ensaio, as mulheres fundadoras do território se deixaram fotografar. José Eduardo me conta sobre elas:

Cada mulher fotografada autorizou o uso da imagem. Há todo um trabalho ético de espera, de respeito, de cuidado. Muitas delas não se achavam bonitas e a gente ficava ali esperando o momento em que elas dissessem: “pode tirar a foto”. Muitas dessas mulheres foram fundadoras desse território, como Dona Epifânia, Dona Tibúrcia, Dona Abigail, Dona Helena e Dona Maria. Algumas já foram pro céu, já foram para a glória. Foram elas que cuidaram de todo esse território, que cuidaram da gente. O primeiro acervo é aquele que está ao nosso redor. A primeira memória foi ter sido cuidado por essas mulheres, foi ter podido andar nesses territórios. Eu acho que o Acervo da Laje nasce muito antes, nasce de uma comunidade, de um território construído por essas mulheres. Elas deram a ideia de fazer a primeira escola comunitária popular sobre palafitas. Elas deram a ideia de cursos para as crianças. Isso tudo na década de 1970, 1980, 1990. (SANTOS, In: FELDHUES (org.), 2023, p. 112)

Noutro momento, José Eduardo me contou do projeto Beleza do Subúrbio, feito com as crianças da região. Elas aprendiam as técnicas básicas de fotografia e depois saíam para fotografar o bairro e os moradores. Mais do que fotos, o que o projeto desencadeou foi a reeducação do olhar dessas crianças, que passaram a enxergar a beleza do lugar em que viviam, o que proporcionou a valorização de sua autoestima. José Eduardo destacou que os encontros entre as crianças e os mais velhos da comunidade foram muito importantes para se trabalhar a memória afetiva, sem a qual não se cria repertório para enfrentar as adversidades da vida. A oficina foi um momento de sensibilizar o olhar dos jovens para o território e suas gentes e de escutar as histórias contadas pelos mais velhos fotografados.

 

As pessoas precisam aprender a cuidar da própria história. Então, eu acho que o primeiro acervo é esse cuidado com essa memória que é nossa, que ajuda a gente a ter repertório para enfrentar esse momento complexo, difícil que a gente está vivendo. (SANTOS, In: FELDHUES (org.), 2023, p. 123-124)

O Acervo da Laje é um exemplo de arquivo comunitário que está vivo e sendo posto constantemente em ativação pela própria comunidade. Ele cuida da memória da comunidade da qual faz parte e, com isso, fortalece os laços afetivos entre as gerações com o território. Nas palavras de José Eduardo (2023, p. 125): “Eu acho que os espaços museais comunitários são muito importantes, justamente por mostrar que nós fazemos a nossa história e que nós podemos contar a nossa história”. Por fim, José Eduardo ainda me deixou o ensinamento de que o primeiro acervo está na nossa casa, na curadoria afetiva que fazemos de nossa ancestralidade.



O Acervo da Laje é um arquivo que “guarda” a memória da comunidade.
Fotos: José Eduardo Ferreira/Divulgação

O ZUMVI Arquivo Afro Fotográfico também está localizado na cidade de Salvador, no bairro Fazenda Grande do Retiro. Primeiro quilombo visual, o arquivo foi criado na década de 1990 pelos fotógrafos Lázaro Roberto Ferreira dos Santos, Ademar Marques e Raimundo Monteiro. Hoje, é gerido por Lázaro e seu sobrinho, o professor e pesquisador José Carlos Ferreira dos Santos Filho. Tive a oportunidade de conversar com eles sobre o surgimento do arquivo, os desafios e projetos.

Lázaro me contou que na década de 1980 ele já falava em fotografar para o futuro. Sua trajetória como fotógrafo foi fortemente influenciada pelo Movimento Negro Unificado e pelo teatro amador do qual participou quando jovem. Ele ia fotografando as vivências das pessoas afro-baianas, anotando os temas e guardando as fotos e negativos em pastas, até que veio a ideia de criar um arquivo: “Aquele lugar em que as pessoas, no futuro, podem ir buscar informação, buscar uma fotografia daquilo que eu estava fotografando. Eu não imaginava que isso chegasse aonde chegou hoje” (DOS SANTOS, In: FELDHUES (org.), 2023, p. 140).

Lázaro me contou ainda das dificuldades de ser um fotógrafo negro numa época em que a sociedade só legitimava as narrativas visuais sobre pessoas negras quando produzidas por fotógrafos brancos. “Aqui, na Bahia, toda a narrativa dos negros, dos corpos negros, é contada pelos brancos. Então, eu não sabia, mas estava fazendo história. Essa ficha veio cair com o tempo” (DOS SANTOS, In: FELDHUES (org.), 2023, p. 140). Diferentemente do fotógrafo branco turista, voyeur, as imagens produzidas por Lázaro não reduzem as experiências de vidas negras às cenas de violência e/ou de sensualidade corporal exacerbada. Lázaro preocupa-se em mostrar o lado político, da memória e da história social vivida pelas pessoas negras na Bahia.

O fotógrafo me contou ainda, com orgulho, de sua primeira exposição sobre as gerações de trabalhadores negros da Feira de São Joaquim; me apresentou algumas das exposições itinerantes que realizou por Salvador, inclusive uma na porta da prefeitura, em apoio a um protesto organizado pela comunidade de Novos Alagados. As histórias de muitos bairros da cidade estão visualmente documentadas no acervo do ZUMVÍ. Apesar de o racismo ter invisibilizado por muitos anos a produção de Lázaro, o fotógrafo não se abateu e me recordou que, mesmo com todas as dificuldades, o importante é guardar a memória e contar a própria história.

Eu estou falando pra você entender a minha trajetória, não foi fácil e não vem sendo fácil. Essa minha invisibilidade, eu sei que não é à toa, é porque eu sou um homem negro e estou no meio da fotografia. Hoje é que as pessoas estão vendo essa documentação, esse acervo de pessoas negras. Parece que somos o único coletivo no Brasil, ou quase o único, a fazer um acervo de pessoas pretas. Nada disso foi assim pensado, isso foi acontecendo. E fui tendo consciência de que as famílias negras não tinham imagem, não tinham seus álbuns de família. É muito apagamento. Tudo eu fui aprendendo. O quanto é importante a gente guardar nossa memória, nossa história. E hoje eu estou vendo o efeito. Eu criei um arquivo, um acervo importante. Hoje, eu já começo a procurar publicar livros e fazer exposições temáticas. Em 2018, fizemos uma sobre os 40 anos do Movimento Negro. Participei, agora há pouco, da , eu nunca pensei participar de uma exposição desse porte. (DOS SANTOS, In: FELDHUES (org.), 2023, p. 144)

José Carlos, por sua vez, me falou dos desafios de se criar e manter um acervo fotográfico independente. Me contou das dificuldades de captação de recursos, das estratégias de captação por meio de editais e financiamento coletivo. Situação também comentada por José Eduardo em relação ao Acervo da Laje. Sem o financiamento de editais públicos e de algumas instituições culturais é quase impossível conseguir manter os respectivos arquivos.


O fotógrafo Lázaro Roberto, um dos criadores do ZUMVÍ.
Foto: Acervo pessoal/Divulgação

Hoje, o acervo do ZUMVÍ gira em torno de 30 mil fotogramas, com a produção de sete fotógrafos. Além de possuir um vasto material sobre o Movimento Negro Unificado na Bahia, o teatro amador, as festas populares, os afoxés, artistas negros, blocos afros, a Feira de São Joaquim, as irmandades negras, religiosidades, os movimentos sociais, moradores de rua, o Subúrbio Ferroviário, universo do reggae, os vendedores ambulantes, a capoeira etc. Se as temáticas fotográficas parecem tão diversas é porque diversas são as experiências de vida das pessoas negras. O ZUMVÍ evoca, com seu acervo, a diversidade dessas experiências de vida – umas boas, outras não –, possibilitando a escrita de histórias plurais e complexas sobre a vida das populações negras no Brasil. Nas palavras de Lázaro:

O objetivo do ZUMVÍ é esse: juntar e guardar acervos e memórias. É o que a gente tem feito. (...) A minha preocupação com esse acervo, partindo de minha própria experiência, é uma questão de memória. A gente, sem nossa memória, não vai a lugar nenhum. A cada dia eu estou me conscientizando mais disso. A gente não vai a lugar nenhum se a gente não tem a nossa memória. Muita coisa acontece porque nós não temos essa memória, entende? Na minha família, mesmo, são 11 irmãos, mas temos pouquíssimas fotos, porque minha mãe não tinha condições de fazer foto. Você tem uma foto só e vários membros da família estão ali. Dos avós, a gente quase não tem foto. Isso gera questões de falta de identidade. Se você for na casa de uma pessoa branca, você vai ver quadros e mais quadros do avô, avó, que a pessoa sai apresentando com aquele orgulho e tal. Mas nas famílias negras, a gente não vê isso. Então, o papel do ZUMVÍ é esse de buscar e guardar nossas memórias. (DOS SANTOS, In: FELDHUES (org.), 2023, p. 155)

O ZUMVÍ é mais uma conquista na autonomia da escrita verbo-visual das múltiplas e complexas histórias de vida de pessoas negras no país. Produzir imagens fotográficas, criar um acervo e possibilitar que pessoas negras possam conhecer suas histórias hoje e no futuro, é o que Lázaro e José Carlos me contaram como desejo e também como prática cotidiana desde a criação do ZUMVÍ. Contra a história única das visualidades criadas pelos fotógrafos brancos voyeurs, o ZUMVÍ se ergue como um lugar de guarda e de possibilidade de histórias múltiplas.


Palafitas, moradia de pessoas negras no bairro de Plataforma, subúrbio ferroviário, Salvador, 1991


Passeata das Lavadeiras reivindicando seus diretos, Salvador, 1992. 
Imagens: Lázaro Roberto/Zumví Arquivo Afro Fotográfico/Divulgação

Penso que uma estratégia contra a exclusão e/ou estereotipação negativa de pessoas afrodescendentes, corpo e gênero diversos dos arquivos organizados por lógicas coloniais está na criação e gestão de outros modelos de arquivos a serem fabulados. O Acervo da Laje e o ZUMVÍ são materializações dessa fabulação que mostram que é, sim, possível criar arquivos para a emancipação individual e coletiva.

Com isso, afirmo que o arquivo não deveria ser aquele guardião que evita que os mortos voltem à vida, que as questões não resolvidas, ou mal-resolvidas, do dito passado possam ser retomadas e postas em discussão na sociedade dos que estão vivos agora (MBEMBE, 2002). Para Azoulay (2019) e Mbembe (2002), o arquivo deveria pertencer a todos, dizer respeito não ao passado, mas às nossas possibilidades de vida em comum, hoje e amanhã:

(...) a questão do arquivo não é, repetimos, uma questão do passado. (...) Trata-se do futuro, a própria questão do futuro, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para amanhã. (DERRIDA, 2001, p. 50)


Senhor Nôca, mestre balaero mais velho do Quilombo Praia
Grande, Ilha de Maré (BA), 1993. Foto: Lázaro Roberto/Zumví
Arquivo Afro Fotográfico/Divulgação

O Acervo na Laje e o ZUMVÍ Arquivo Afro Fotográfico nos possibilitam contar nossas histórias em comum, nos ajudam a compreender o momento de agora, a avaliar as decisões tomadas anteriormente e retomar os futuros que foram impedidos de acontecer pelos poderes coloniais de ontem e de hoje. Em suma, esses dois arquivos são “uma modalidade de acesso ao comum” (AZOULAY, 2019, p. 231, t.n.), cujo destino situa-se nas múltiplas e complexas histórias que possibilitam que sejam (re)montadas e (re)contadas.

Com isso, percebo esses arquivos não como guardiões do nosso passado, mas do nosso futuro. Suas curadorias afetivas, seus acervos plurais e complexos, o engajamento com a comunidade, sua vontade de preservar e de fazer conhecer as histórias dos excluídos da História fazem dessas instituições descentradas um exemplo e uma estratégia a ser seguida por aqueles que se engajam na produção de um mundo descolonizado.

MARINA FELDHUES, professora, pesquisadora, artista visual, escritora, mestra e doutoranda em Comunicação (UFPE).

REFERÊNCIAS

ADICHE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, [2009] 2019.

AZOULAY, Ariella Aïsha. Potential history – Unlearning imperialism. London, New York: Verso, 2019.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo – Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

FELDHUES, Marina (org.) E se? arquivos, fotografias e fabulações - Escutas e aprendizados. Recife: Livrinho de Papel Finíssimo, 2023.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

MBEMBE, Achille. The power of the archive and its limits. In: HAMILTON, Carolyn; HARRIS, Verne; TAYLOR, Jane; PICKOVER, Michele; REID, Graeme; SALEH, Razia (orgs.). Refiguring the Archive. Dordrecht, Boston, London: Springer, 2002.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of World-Systems Research, 2000, v. I, n. 2, p. 342-386.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, 1992, nº 13, p. 11-20.

Publicidade

veja também

“Não temos o direito de baixar a guarda”

Camille Kachani

A redescoberta do gótico nacional