No texto de apresentação do livro, Júlio e Oscar apontam que, dentre os muitos fatores que ajudam a explicar o não reconhecimento da literatura de medo e das poéticas negativas no Brasil, destaca-se a perspectiva assumida pela maior parte da crítica de que a literatura gótica possuiria temas e ambientações estranhos à cultura e ao território brasileiro. Além disso, o Brasil não teve Idade Média e nem antiguidade clássica, o que foi importante para a formação da identidade literária na Europa. “Nós, realmente, não temos, aqui, o que eles (os europeus) têm lá. E esse deve ser um pensamento, justamente, para buscarmos as nossas representações locais para um gótico que seja nosso e não uma cópia”, defende Oscar.
De acordo com os organizadores do livro, foi necessário uma mudança de perspectiva na busca de um gótico brasileiro, de um medo tropical e entender qual é a matéria-prima que produz o horror no Brasil. Para Júlio, obras como Os sertões, de Euclides da Cunha, por exemplo, trazem passagens extremamente góticas, embora sejam ao meio-dia, com um escaldante sol e no meio do sertão. “Aqui o meio-dia é mais assustador do que a meia-noite”, completa Júlio, sobre esta virada do modo de compreender e de se falar de uma literatura gótica no Brasil.
A “COR” LOCAL
O que se chama de literatura gótica é, na verdade, o produto ficcional de uma visão de mundo sombrio. Ela pode ser formada por elementos convencionais dessa tradição e muitas vezes uma definição precisa não é tão fácil de ser atingida. O próprio livro Tênebra traz contos que podem ser considerados góticos, mas outros flertam mais com o horror. Qual a diferença? O horror costuma ser associado mais ao sentimento, sendo relacionado ao medo físico ou psicológico.
No entanto, de acordo com Júlio e Oscar, três elementos se destacam para a identificação de características de uma literatura gótica, justamente por suas recorrências. O primeiro é conhecido como locus horribilis, que significa a ambientação em espaços narrativos opressivos, que afetam o caráter e as ações dos personagens que lá vivem. Esses locus horribilis destacam a sensação de desconforto e estranhamento.
O segundo ponto é a presença fantasmagórica do passado de modo que uma das formas de enredo mais recorrentes do gótico é aquela em que o protagonista é vitimado por atos e ações do passado. O terceiro ponto responde pela personagem monstruosa, que são vilões caracterizados com monstruosidades, podendo estes serem físicos ou mentais.
Oscar completa que, quando se pensa nesses três elementos, se torna fácil reconhecer as obras como parte desse grupo de poéticas macabras, mas um importante detalhe é trazer essas características para a realidade brasileira do século XIX. O locus horribilis, por exemplo, de um conto inglês poderia ser o castelo do barão Frankenstein no meio da noite e localizado no topo de uma colina. Já no Brasil, esse elemento poderia ser uma casa de uma fazenda no meio do sertão, durante o dia.
A partir desse recorte, os contos de Tênebra vão dialogar com cenários facilmente reconhecidos da cultura brasileira. A própria queda d’água do começo deste texto, tão comumente associada a países tropicais e elementos de beleza, no relato de Afonso Celso, vira uma entidade assustadora e devoradora de homens. No locus horribilis brasileiro, por exemplo, podemos destacar florestas, áreas rurais, matagais e o citado sertão. Esses espaços são permeados de ameaças, que vão desde animais e elementos da natureza até pessoas monstruosas e presenças sobrenaturais.
Uma das construções mais comuns do século XIX, no Brasil, eram as casas-grandes e estas podem ser locus horribilis ideais para narrativas macabras. “Tratam-se de construções que abrigavam muito sofrimento, como os dos escravos que tiveram muito sangue derramado, além de crimes pessoais e tragédias familiares que aconteceram naquelas casas”, completa Oscar, sobre como esses elementos são adaptados nos contos brasileiros.
O texto Conto fantástico é um ótimo exemplo da narrativa que dialoga com uma identidade brasileira. Escrito por Américo Lobo e publicado em 1861, o conto acompanha o protagonista Luiz que, em uma Quinta-feira Santa, volta para a fazenda da família. Ao chegar à propriedade, se depara com uma ameaça inimaginável. Américo Lobo, que também atuava como advogado e tradutor, traz nesse conto a realidade das grandes fazendas e plantações com pessoas escravizadas que o personagem testemunha sucumbirem de cólera, como consequência do abandono e da miséria em que viviam.
PESQUISA DE MATERIAL ESCASSO
Dos 27 textos selecionados para o livro, alguns são assinados por nomes já bastante conhecidos da nossa literatura, como Aluísio Azevedo, Bernardo Guimarães, Machado de Assis e Olavo Bilac. Já outros autores podem ser desconhecidos para o público geral. Além do livro, o trabalho da dupla vai além e inclui um site homônimo, que funciona como biblioteca digital, lançado em 2021.
Tudo começou quando Júlio, que é professor de Teoria da Literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, se propôs a fazer uma pesquisa que envolvesse literatura gótica no Brasil. O ano era 2007 e ele não sabia ao certo o que iria encontrar, mas tomou o desafio. “Eu fiquei profundamente intrigado pela ausência de corpus para a minha pesquisa. Era um contrassenso para um país com um passado sangrento como o nosso e com a nossa riqueza cultural não ter uma literatura sombria”, relembra Júlio.
Com uma equipe de pesquisadores, Júlio partiu para procurar e identificar trabalhos que pudessem se encaixar nessa busca por uma literatura de poéticas negativas nacional. Ele conta que, do momento inicial até hoje, foram identificados cerca de 400 trabalhos. Durante essa caminhada, Oscar, que já atuava como pesquisador de literatura de horror, chegou até o trabalho do Júlio e, juntos, decidiram criar o site tenebra.org.
Nele é possível baixar, gratuitamente, narrativas que, de alguma forma, se vinculam às expressões mais sinistras da nossa literatura. A biblioteca digital segue atualizada semanalmente. O livro surgiu quase como uma consequência do site e, nesse caso, Júlio e Oscar precisaram fazer um difícil processo de seleção.
De acordo com eles, o processo de curadoria foi o mais difícil. “Tentamos selecionar contos de diferentes períodos do século XIX, com marcas estilísticas diferentes e com temáticas diferentes, já que o principal objetivo seria criar um panorama. Além disso, também pensamos na diversidade de temas e autores com nomes mais conhecidos e outros praticamente desconhecidos”, comenta Júlio.
Com um resultado positivo do site e do livro Tênebra, atraindo leitores e críticas positivas, Júlio e Oscar já pensam num futuro lançamento com narrativas brasileiras de horror no século XX. “Está nos horizontes e estamos muito animados, da nossa parte e da editora, por essa sequência.” De acordo com os curadores, material não falta.
FILIPE FALCÃO, jornalista e professor universitário.