Resenha

A redescoberta do gótico nacional

A coletânea ‘Tênebra – Narrativas brasileiras de horror’ reúne 27 contos macabros e sobrenaturais mergulhados em cenários e identidades brasileiras do século XIX

TEXTO Filipe Falcão

03 de Abril de 2023

Letras criadas pelo designer Eduardo Belga para o livro 'Tênebra'

Letras criadas pelo designer Eduardo Belga para o livro 'Tênebra'

Ilustração EDITORA FÓSFORO/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 268 | abril de 2023]

Assine a Continente

Rochas à direita, rochas à esquerda, rochas no fundo, rochas em cima, rochas embaixo e na frente de nós, rochas sem-fim. (...) O rugido se aproximava e crescia. Já mal nos podíamos ouvir. Tiritávamos. (...) O estrondo se torna poderoso, pleno, retumbante, com repercussões profundas. (...) A montanha d’água desmorona pesada, rapidamente bruta, volumosa e ampla. (...) Exala fumaça úmida, como hálito salivoso de enorme fera.”

A descrição, acima, é de uma imensa queda d’água, temida por moradores do entorno e que já “engoliu”, ao menos, uma dúzia de homens. Diante de tamanha ameaça, resta aos parentes dos mortos procurarem pelos corpos já destruídos pelas forças das águas. A narrativa em questão foi retirada do conto Valsa fantástica, escrito em 1892, por Afonso Celso. Natural de Minas Gerais, Afonso foi advogado, professor e jornalista. Na literatura, criou narrativas marcadas, justamente, pela ambientação perturbadora com acontecimentos oníricos e sobrenaturais.

Valsa fantástica é um dos 27 contos que compõem o livro Tênebra – Narrativas brasileiras de horror (1839–1899), lançado pela Editora Fósforo. Como o próprio subtítulo deixa explícito, trata-se de contos que dialogam com o horror, escritos no século XIX, embora também incluam categorias próximas, como o gótico e o suspense. Ou, como preferem Júlio França e Oscar Nestarez, a dupla responsável pela organização do livro, contos de poéticas negativas. “Esta definição representa de maneira mais abrangente o que espera pelo leitor”, explica Júlio.

A antologia foi pensada pelos organizadores, principalmente, para desfazer um engano que vem sendo perpetuado como certo ao longo dos anos. A falácia em questão responde pela literatura com temáticas de medo do século XIX ser resumida a uma quantidade pequena de trabalhos no Brasil ou a poucos nomes, como o de Álvares de Azevedo, com o seu Noite na taverna, de 1855.

Para Júlio e Oscar, existe um equívoco sobre a inexistência de uma tradição de literatura de poéticas negativas no Brasil. “No caso dos trabalhos nacionais, há, sim, um grande número de publicações que dialogam com o medo, com o horror e com o sobrenatural. No entanto, alguns desses trabalhos utilizam muito elementos nacionais e parecem se distanciar de um modelo europeu de literatura gótica que era comum na época”, afirma Júlio, explicando que o modo de busca era usado tendo como exemplo modelos importados, neste caso, a literatura gótica europeia, com destaque para a inglesa.

Tais tentativas de comparação não aconteciam por acaso, visto que se trata de regiões que, desde o século XVIII, já colecionavam forte tradição com narrativas macabras. A literatura gótica, por exemplo, tem seu início na Inglaterra e foi marcada por tramas de mistério, questões sombrias, assombrações, mortes e loucura, se distanciando, assim, do romantismo e passando a existir dentro do que ficou conhecido como literatura fantástica. Ou seja, com elementos que não aconteciam na realidade. A literatura gótica tem como obra inicial O Castelo de Otranto, lançado em 1764, por Horace Walpole.

Seus autores mais famosos e celebrados, até hoje, são Edgar Allan Poe, Mary Shelley, Charles Baudelaire, Bram Stoker, Oscar Wilde e Lord Byron, entre outros. Qualquer um desses autores trouxe elementos que se passavam em cenários soturnos, como castelos e casarões velhos com neblinas no entorno, personagens perturbados ou estranhos, elementos de vilania e monstruosidade e ações do passado que impactavam nos tempos então presentes. “O que se buscava era uma reprodução do gótico feito em outros lugares. Como fazer esse tipo de história vir para o Brasil e manter as mesmas características?”, questiona Oscar Nestarez.


Coletânea com 27 narrativas foi organizada por Júlio França e Oscar Nestarez.
Foto: Divulgação

No texto de apresentação do livro, Júlio e Oscar apontam que, dentre os muitos fatores que ajudam a explicar o não reconhecimento da literatura de medo e das poéticas negativas no Brasil, destaca-se a perspectiva assumida pela maior parte da crítica de que a literatura gótica possuiria temas e ambientações estranhos à cultura e ao território brasileiro. Além disso, o Brasil não teve Idade Média e nem antiguidade clássica, o que foi importante para a formação da identidade literária na Europa. “Nós, realmente, não temos, aqui, o que eles (os europeus) têm lá. E esse deve ser um pensamento, justamente, para buscarmos as nossas representações locais para um gótico que seja nosso e não uma cópia”, defende Oscar.

De acordo com os organizadores do livro, foi necessário uma mudança de perspectiva na busca de um gótico brasileiro, de um medo tropical e entender qual é a matéria-prima que produz o horror no Brasil. Para Júlio, obras como Os sertões, de Euclides da Cunha, por exemplo, trazem passagens extremamente góticas, embora sejam ao meio-dia, com um escaldante sol e no meio do sertão. “Aqui o meio-dia é mais assustador do que a meia-noite”, completa Júlio, sobre esta virada do modo de compreender e de se falar de uma literatura gótica no Brasil.

A “COR” LOCAL
O que se chama de literatura gótica é, na verdade, o produto ficcional de uma visão de mundo sombrio. Ela pode ser formada por elementos convencionais dessa tradição e muitas vezes uma definição precisa não é tão fácil de ser atingida. O próprio livro Tênebra traz contos que podem ser considerados góticos, mas outros flertam mais com o horror. Qual a diferença? O horror costuma ser associado mais ao sentimento, sendo relacionado ao medo físico ou psicológico.

No entanto, de acordo com Júlio e Oscar, três elementos se destacam para a identificação de características de uma literatura gótica, justamente por suas recorrências. O primeiro é conhecido como locus horribilis, que significa a ambientação em espaços narrativos opressivos, que afetam o caráter e as ações dos personagens que lá vivem. Esses locus horribilis destacam a sensação de desconforto e estranhamento.

O segundo ponto é a presença fantasmagórica do passado de modo que uma das formas de enredo mais recorrentes do gótico é aquela em que o protagonista é vitimado por atos e ações do passado. O terceiro ponto responde pela personagem monstruosa, que são vilões caracterizados com monstruosidades, podendo estes serem físicos ou mentais.

Oscar completa que, quando se pensa nesses três elementos, se torna fácil reconhecer as obras como parte desse grupo de poéticas macabras, mas um importante detalhe é trazer essas características para a realidade brasileira do século XIX. O locus horribilis, por exemplo, de um conto inglês poderia ser o castelo do barão Frankenstein no meio da noite e localizado no topo de uma colina. Já no Brasil, esse elemento poderia ser uma casa de uma fazenda no meio do sertão, durante o dia.

A partir desse recorte, os contos de Tênebra vão dialogar com cenários facilmente reconhecidos da cultura brasileira. A própria queda d’água do começo deste texto, tão comumente associada a países tropicais e elementos de beleza, no relato de Afonso Celso, vira uma entidade assustadora e devoradora de homens. No locus horribilis brasileiro, por exemplo, podemos destacar florestas, áreas rurais, matagais e o citado sertão. Esses espaços são permeados de ameaças, que vão desde animais e elementos da natureza até pessoas monstruosas e presenças sobrenaturais.

Uma das construções mais comuns do século XIX, no Brasil, eram as casas-grandes e estas podem ser locus horribilis ideais para narrativas macabras. “Tratam-se de construções que abrigavam muito sofrimento, como os dos escravos que tiveram muito sangue derramado, além de crimes pessoais e tragédias familiares que aconteceram naquelas casas”, completa Oscar, sobre como esses elementos são adaptados nos contos brasileiros.

O texto Conto fantástico é um ótimo exemplo da narrativa que dialoga com uma identidade brasileira. Escrito por Américo Lobo e publicado em 1861, o conto acompanha o protagonista Luiz que, em uma Quinta-feira Santa, volta para a fazenda da família. Ao chegar à propriedade, se depara com uma ameaça inimaginável. Américo Lobo, que também atuava como advogado e tradutor, traz nesse conto a realidade das grandes fazendas e plantações com pessoas escravizadas que o personagem testemunha sucumbirem de cólera, como consequência do abandono e da miséria em que viviam.

PESQUISA DE MATERIAL ESCASSO
Dos 27 textos selecionados para o livro, alguns são assinados por nomes já bastante conhecidos da nossa literatura, como Aluísio Azevedo, Bernardo Guimarães, Machado de Assis e Olavo Bilac. Já outros autores podem ser desconhecidos para o público geral. Além do livro, o trabalho da dupla vai além e inclui um site homônimo, que funciona como biblioteca digital, lançado em 2021.

Tudo começou quando Júlio, que é professor de Teoria da Literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, se propôs a fazer uma pesquisa que envolvesse literatura gótica no Brasil. O ano era 2007 e ele não sabia ao certo o que iria encontrar, mas tomou o desafio. “Eu fiquei profundamente intrigado pela ausência de corpus para a minha pesquisa. Era um contrassenso para um país com um passado sangrento como o nosso e com a nossa riqueza cultural não ter uma literatura sombria”, relembra Júlio.

Com uma equipe de pesquisadores, Júlio partiu para procurar e identificar trabalhos que pudessem se encaixar nessa busca por uma literatura de poéticas negativas nacional. Ele conta que, do momento inicial até hoje, foram identificados cerca de 400 trabalhos. Durante essa caminhada, Oscar, que já atuava como pesquisador de literatura de horror, chegou até o trabalho do Júlio e, juntos, decidiram criar o site tenebra.org.

Nele é possível baixar, gratuitamente, narrativas que, de alguma forma, se vinculam às expressões mais sinistras da nossa literatura. A biblioteca digital segue atualizada semanalmente. O livro surgiu quase como uma consequência do site e, nesse caso, Júlio e Oscar precisaram fazer um difícil processo de seleção.

De acordo com eles, o processo de curadoria foi o mais difícil. “Tentamos selecionar contos de diferentes períodos do século XIX, com marcas estilísticas diferentes e com temáticas diferentes, já que o principal objetivo seria criar um panorama. Além disso, também pensamos na diversidade de temas e autores com nomes mais conhecidos e outros praticamente desconhecidos”, comenta Júlio.

Com um resultado positivo do site e do livro Tênebra, atraindo leitores e críticas positivas, Júlio e Oscar já pensam num futuro lançamento com narrativas brasileiras de horror no século XX. “Está nos horizontes e estamos muito animados, da nossa parte e da editora, por essa sequência.” De acordo com os curadores, material não falta.

FILIPE FALCÃO, jornalista e professor universitário.

Publicidade

veja também

“Não temos o direito de baixar a guarda”

Camille Kachani

Juan José Saer