Relato

Não fomos descobertos

Autora conta sobre o processo de construção do documentário ‘Decolonizar-te: O olhar da mulher sobre a memória colonial’, seu trabalho de conclusão no curso em Jornalismo

TEXTO Gabriela Passos

01 de Fevereiro de 2023

Gabriela durante o processo de produção do documentário

Gabriela durante o processo de produção do documentário

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 266 | fevereiro de 2023]

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Era um dia de sol. Eu tinha chegado há poucos dias a Lisboa e ia passear com alguns amigos no parque, estava feliz. Atravessei a rua e escutei uma mulher lançando um “puta” na minha direção. Ela falava em voz baixa e me olhava fixamente. Meses depois, em uma festa, escuto a mesma palavra, dessa vez aos gritos, um homem português me xingava enquanto jogava uma bebida no meu rosto porque eu não queria dançar com ele.

Um tempo depois, cobri uma roda de debate feminista. Várias brasileiras, muitas minhas amigas, trocando comentários sobre suas vivências em Portugal. Escutá-las foi transformador na mesma medida que assustador. Naquela época, eu não entendia como essas histórias mexiam comigo. Uma foi empurrada da bicicleta aos gritos de “volta para sua terra”. Outra era assediada pelo dono do apartamento que alugava, mas tinha muito medo das consequências de uma denúncia.

Comecei a entender os porquês desses ocorridos quando voltei para o Brasil, dentro de uma sala de aula, na universidade – a mesma que me proporcionou esse intercâmbio de graduação em Portugal, aprendendo sobre política, colonização e decolonização. Os livros e os debates eram angustiantes, mas também libertadores. Quanto mais eu aprendia, mais eu queria aprender.

Assim, decidi falar sobre a colonização no meu Trabalho de Conclusão do Curso em Jornalismo. Alguns cursos online me guiaram a trilhar um caminho de leituras de nomes como Grada Kilomba, Djamila Ribeiro, Jota Mombaça, Lélia Gonzalez, María Lugones e Julie Dorrico Macuxi, que me ensinaram que, em um contexto no qual temos um crescimento alarmante da xenofobia e do racismo ao redor do mundo, assim como a ascensão de políticas populistas discriminatórias, é urgente entender e comunicar como esses fatos possuem raiz colonial.

É dessa forma que surge o documentário Decolonizar-te: O olhar da mulher sobre a memória colonial (assista a seguir), buscando apresentar esse debate a partir de provocações de artistas pernambucanas, questionando nossa sociedade patriarcal, refletindo sobre nossas atitudes cotidianas que reproduzem violências simbólicas, ressaltando os vestígios coloniais e entendendo como a arte potencializa o discurso de mulheres e a desconstrução de um olhar colonizador.

HISTÓRIA E DECOLONIZAÇÃO
Não sei vocês, mas quando eu era criança me ensinaram que o Brasil foi descoberto. O que só aprendi durante o desenvolvimento desse TCC é que cerca de 70 milhões de pessoas foram vítimas do genocídio colonial nas Américas, dessas, 4 milhões eram do Brasil (Abya yYala! 2021).

Essa mesma lógica que promove o genocídio indígena inicia a imigração forçada de africanos escravizados, 4,8 milhões chegaram ao Brasil, cerca de 825 mil em Pernambuco (Slave voyages, 2010).

Assim, às Américas chegou o europeu, transformando as diferenças em desigualdades. Pensamento que opera até os dias de hoje e é “ordenado pela supremacia branca, governado pelo ideal machista de silenciamento das mulheres, do genocídio sistemático de populações racializadas, empobrecidas, indígenas, trans” (Mombaça, 2016).

Essa lógica é chamada de colonialidade, a herança da colonização, que nos convence há anos a aceitar a perspectiva eurocêntrica como modelo universal e se estrutura a partir de classificações sociais, sendo a mais violenta, a ideia de raça, como diz Grada Kilomba (2019), “pois no racismo o indivíduo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade”.

A decolonialização, portanto, surge do entendimento de como a colonialidade opera. É reexistir e resistir a essa lógica. É a ação prática e teórica de enxergar a pluralidade e não uma verdade única. Voltar o nosso olhar para os saberes ancestrais, perceber como pensamos a cultura e nos relacionamos em sociedade.

Para aqueles que pensam que o Brasil Colônia foi só um período histórico que chegou ao fim com um suposto grito de Dom Pedro I às margens do Rio Ipiranga, seria possível citar vários exemplos que evidenciam a colonialidade atualmente, como é o caso de Miguel, criança de cinco anos que morreu ao cair de um prédio de luxo no Recife. Ou a situação dos indígenas Yanomami que sofrem com falta de atendimento médico, ameaças e o avanço do garimpo ilegal.

Assim, a colonialidade segue produzindo um mesmo futuro. Novos rostos, novas estratégias, novos formatos, mas a mesma lógica que naturaliza hierarquias raciais, de gênero, culturais e de produção de conhecimento se mantém nas estruturas de poder. Foi com esse entendimento que comecei a compreender muitas coisas que antes não alcançava ou navegava em superficialidade.


O documentário se estrutura nas falas de Íris Campos, Juliana
Xukuru, Bell Puã e Luna Vitrolira. Foto: Reprodução

ARTE, NORDESTE E JORNALISMO
Não há dúvida de que o colonialismo é a política do medo, da invisibilidade e do silenciamento. Para essa lógica, é interessante que o conhecimento não seja questionado e o porquê das coisas não seja devidamente compreendido.

Há muito tempo, eu vinha percebendo como a arte é capaz de trabalhar essas questões, provocando pensamentos e fortalecendo identidades. Não é à toa que vemos um constante ataque às artes e um movimento que insiste em categorizar a produção cultural indígena ou afro-brasileira como inferior.

Nos cursos que fiz, encontrei uma riqueza de informações sobre artistas decoloniais do mundo inteiro. Entendi que a arte decolonial é resistência. Por isso, falar sobre ela no meu TCC foi uma decisão natural.

Porém, nesses mesmos cursos, informações sobre esse debate no Nordeste eram escassas ou inexistentes. Novamente, não é à toa. A colonialidade está em tudo, inclusive na forma como se enxerga as regiões. O Nordeste é entendido pelo resto do Brasil sob essa imagem de sofrimento, pobreza e falta de intelectualidade.

Foi através de Luna Vitrolira, artista que mais tarde seria uma das entrevistadas do projeto, que escutei pela primeira vez o debate em Pernambuco. Em uma live sobre literatura, ela trazia a decolonização para o diálogo. A felicidade de ouvir aquilo em um debate composto por pernambucanas me enchia de gás para fazer esse documentário acontecer.

Em busca de convidadas para entrevistar, comecei a acompanhar assiduamente várias artistas nas redes sociais. Além de Luna, outras três pernambucanas me chamaram a atenção por sempre estarem levando o debate decolonial para as suas artes, redes sociais e eventos que participavam: Bell Puã, Íris Campos e Juliana Xukuru.

Assim, convidei essas artistas para fazer parte do projeto e me aprofundei na arte de cada uma. Uma arte que sensibiliza e suscita questões em suas mais diversas camadas. Presenciei suas exposições, palestras, li e assisti aos seus trabalhos.

As entrevistas foram em suas casas. Lugares escolhidos por elas, onde me receberam com afeto. As perguntas foram elaboradas com base na pesquisa teórica e na trajetória de cada uma. Saí de cada conversa anestesiada por ter tido esses momentos, ainda enquanto estudante, com mulheres múltiplas em suas artes e em seus saberes.


Extra:
Assista ao documentário AQUI.


Na universidade em que estudei, nosso TCC tem que ser um produto individual. Por isso, eu estava à frente de todas as etapas, mas tive muita ajuda durante todo o processo. Nas filmagens, por exemplo, contei com a colaboração de El Hana Filipides, Luís Henrique Bizerra e Geraldo Monteiro, três amigos da comunicação, negros, que também estão interessados nesse debate.

Falo isso porque fui a responsável pela produção, entrevista, filmagem, montagem e edição, mas acho importante deixar claro que a narrativa desse trabalho não é meu lugar de fala, e, sim, o lugar das artistas. Quem escreve este texto e realizou este documentário é uma mulher branca que acaba de se formar em uma universidade privada. Esse trabalho é mais uma forma de comunicar suas artes, suas histórias e a decolonização, entendendo que a produção de conhecimento também parte da experiência de cada uma e se expande para compreender o nosso passado, nosso presente e o futuro.

É por entender que todos os elementos de um documentário são escolhas políticas, que pensar em um jornalismo decolonial foi essencial. Como explica Fabiana Moraes (2022), na história do jornalismo temos uma construção midiática redutora, de enquadramentos desumanizantes e de manutenção de estereótipos.

Assim, fazer jornalismo de forma reflexiva foi importante para pensar nos enquadramentos, nas perguntas, nas pessoas, nas imagens e sons escolhidos. Era pensar o como fazer e o que eu quero comunicar.

A intenção do trabalho é fazer quem assiste ir além e levar o conhecimento das artistas para outras esferas. A ideia é pensar a história, a cidade e a cultura. Explicar certos questionamentos e provocar muitos outros, por entender que essa é uma responsabilidade social do jornalista.

Um exemplo é a utilização de imagens para provocar esse pensamento crítico. As imagens não são inocentes. Por que os livros de história retratam os povos indígenas e africanos como selvagens e incivilizados?

Por que, andando pelos bairros do Recife, vemos fachadas de prédios que carregam nomes, como Vitória Colonial, Aliança Colonial e Casa-Grande? Até Motel Senzala temos. Em Boa Viagem, a escultura de um prédio é uma réplica do Padrão Descobrimento, uma escultura portuguesa que carrega colonizadores exaltando as “conquistas”.

Durante o trabalho comecei a perceber as imagens e a cidade em seus detalhes. As imagens contam histórias e a arquitetura determina quem pode ocupar certos espaços.

CURA
Quando cheguei de volta ao Brasil, eu tinha raiva de certas memórias de Portugal, país que, como diz Grada Kilomba (2019), ou nega ou glorifica sua história colonial. Poucos daqui acreditavam nos relatos que eu contava. Alguns diziam que eu era radical demais e que tinha entendido errado.

Só começaram a acreditar em mim quando viram provas do que eu estava falando. Uma amiga tinha me mandado fotos de várias instituições de ensino, inclusive a que estudamos juntas, que amanheceram com seus muros riscados: “Zucas, voltem para as favelas”, “Viva a raça branca”, “Europa aos europeus”.

A verdade é que eu saí de lá querendo conhecer mais de nós, mais do Nordeste, mais da América Latina, e esse trabalho foi uma forma de buscar isso. Fazer esse TCC, conhecer essas artistas, foi uma oportunidade de crescer como gente e de pensar o jornalismo que quero fazer. Falar da experiência de mulheres pernambucanas também é falar da história e memória de Pernambuco.

REFERÊNCIAS

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flavia Rios, Márcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

GRONDIN, Marcelo; VIEZZER, Moema. Abya Yala! Genocídio, resistência e sobrevivência dos povos originários das Américas.1ª ed. Rio de Janeiro: Bambual Editora, 2021.

HOFMEISTER, Naira; PAPINI, Pedro. Mineração e garimpo disputam área maior do que a Bélgica dentro da Terra Indígena Yanomami. El País, 22 de junho de 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-06-22/mineracao-e-garimpo-disputam-area-maior-do-que-a-belgica-dentro-da-terra-indigena-yanomami.html> Acesso em: 20 out. 2022.

KILOMBA, Grada. Memórias de plantação: episódios de racismo cotidiano. 1ª ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

MEIRELES, Marina. Caso Miguel é citado como exemplo de racismo sistêmico na pandemia em relatório de grupo da ONU. G1 PE, 30 de setembro de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/09/30/caso-miguel-e-citado-como-exemplo-de-racismo-sistemico-na-pandemia-em-relatorio-de-grupo-da-onu.ghtml. Acesso em: 20 out. 2022.

MOMBAÇA, Jota. Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/rumo_a_uma_redistribuic__a__o_da_vi. Acesso em: 20 out. 2022.

MORAES, Fabiana. A pauta é uma arma de combate: Subjetividade, prática reflexiva e posicionamento para superar um jornalismo que desumaniza. 1ª ed. Porto Alegre: Arquipélago, 2022.

SLAVE VOYAGES. Banco de dados do Tráfico Transatlântico de Escravos. 2010. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates. Acesso em: 20 out. 2022. 

GABRIELA PASSOS, jornalista e documentarista.

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