Portfólio

Jeff Alan

Retratos como sonhos de revolução

TEXTO Laura Machado

01 de Fevereiro de 2023

'Posso mudar meu destino', 2021, técnica mista sobre tela, 30 x 29 cm

'Posso mudar meu destino', 2021, técnica mista sobre tela, 30 x 29 cm

Imagem Jeff Alan/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 266 | fevereiro de 2023]

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Tudo vivo aqui, tudo vivo”, diz Jeff Alan, olhando ao redor do próprio ateliê. Nas quatro paredes que formam o cômodo, sua arte é exposta com orgulho: os desenhos a lápis, as telas de médio porte e um trabalho em grandes dimensões que ocupa toda a extensão de um dos lados da sala, ainda inacabado. Na maioria das telas, são pessoas que estão ali, sendo representadas em um jorro de cores e olhares, sendo vistas, tendo vida além da vida. Rostos eternizados nas obras pujantes de um artista que sonha com o protagonismo preto em posições de poder.

Jeff Alan nasceu e foi criado no Barro, bairro limítrofe entre o Recife e Jaboatão dos Guararapes. Foi lá que o artista deu os primeiros passos, onde aprendeu a ler e a escrever – apenas depois, porém, de aprender a desenhar –, onde cresceu e de onde tirou inspiração para sua futura arte. “Sempre gostei de desenhar e sempre quis viver da arte, na escola eu fazia capa de trabalho, fazia desenho no caderno dos meus amigos. Não tive outro caminho: foi arte, é arte e sempre será”, conta, em entrevista à Continente. Alan não tinha mentores e referências de pessoas em seu convívio que vivessem da arte, ninguém indicando o caminho a seguir. Ele precisou trilhar o seu sozinho, numa jornada de deslumbramentos, experimentando meios, formas e cores, até se encontrar na pintura.

Por ser daltônico, condição que interfere na percepção das cores e que foi descoberta pelo artista durante a graduação em Arquitetura, Jeff se apropriou do preto e branco como guias, expressando sua arte através da versatilidade que as duas cores ofereciam. O preto, o branco e seus subtons propiciaram-lhe agilidade para se expressar e rapidez na hora de realizar intervenções urbanas, em que se destacavam formas orgânicas e abstrações. A grafitagem foi um meio de expressão inicial para o artista; por conta disso, a técnica ganhou destaque quando ele se inseriu no circuito cultural institucional. No grafite, Jeff desenvolveu e aprimorou seu estilo.

Desde sua primeira exposição individual, Acúmulo, na galeria recifense Urban Arts, em 2018, o trabalho de Jeff Alan segue numa constante evolução e experimentalismo. No início da pandemia da Covid-19, houve duas mudanças significativas em sua obra: a inserção de cores, numa paleta variada em que sobressaem as cores primárias, e o figurativismo, com o privilégio do retrato. A partir desse momento, torna-se central para o artista a discussão a respeito das raízes colonialistas da nação brasileira. Em suas pinturas, coloca pessoas pretas em protagonismo, com olhares, posturas e objetos de cena que apontam para a resistência ao racismo, numa arte que também se quer revolução.


Povo preto quer viver!, 2021, acrílica sobre tela, 28 x 28 cm.
Imagem: Jeff Alan/Divulgação

A pintura Helena (2021) aponta para isso. Sobre o fundo azul claro, o busto lateralizado de uma mulher negra encara o público. Os olhos penetrantes não aceitam a subalternidade, demonstram o poderio que carrega em si, exigem o respeito que lhe é de direito. A personagem veste uma camisa laranja e usa um grande brinco amarelo, o cabelo preto está penteado num coque alto e, sobre a cabeça, uma tiara em forma de coroa. Na tela, o amarelo representa o ouro que, usurpado historicamente por colonizadores brancos europeus, agora retorna ao trono de uma mulher preta.

Jeff diz que gosta de pintar pessoas reais e a maior parte de suas obras representa homens, mulheres e crianças que cruzaram o seu caminho. Com Helena, contudo, foi diferente. “Aquela imagem não é da minha mãe, mas pode representar minha mãe e tantas outras mães, tantas outras mulheres pretas. O acessório na cabeça é para coroar, colocá-la em uma posição de poder, de rainha. Não é só uma pessoa que está ali, são várias”, explicou o artista. Helena, criada em aquarela e lápis de cor, representa, portanto, um conjunto de faces, de histórias, de vidas.

O processo criativo do artista começa com a observação e o contato com a pessoa que deseja pintar, segue com a captação da imagem fotográfica e, depois, a dedicação para a construção da obra em si. Em seu ateliê, muitos desses retratos vibram na parede e o significado atribuído é revelado à medida que o artista conta um pouco da vida de cada uma daquelas pessoas, suas profissões, enquanto as eterniza em obras de caráter decolonial e plasticidade vibrante.

“Muitas das pessoas que foram retratadas por mim mantêm o nosso país de pé, ativo, firme, são trabalhadores e trabalhadoras. Também são jovens que querem viver seus sonhos, alguns deles vivem nas margens, em situação de vulnerabilidade. Então esse trabalho carrega denúncia, não só pelo valor estético, mas por contar histórias reais. Por isso eu gosto de pintar pessoas que eu conheci, abracei, tive uma troca”, declara Alan.


Dandara, 2021, acrílica sobre tela, 28 x 28 cm. 
Imagens: Jeff Alan/Divulgação

SONHAR OS SONHOS
“Se existe alguma palavra que possa me resumir é sonhos”, afirma. Em suas pinturas, esta relação íntima é exposta através de suas escolhas artísticas, desde a intenção de representar pessoas ao seu redor, que lhe confidenciam desejos e anseios, até o uso do azul anil como uma das principais tonalidades de seus trabalhos. Essa cor foi estudada pela cientista alemã, Eva Heller, que defende a tonalidade azulada como uma cor que evoca equilíbrio e é interpretada como a cor dos sonhos.

Poderíamos acrescentar a palavra combate, para definir sua atuação artística, sobretudo ao observarmos a obra Lave o rosto nas águas sagradas da pia, nada como um dia após o outro dia (2021, 21 x 22,5 cm), cujo título foi inspirado na música Jesus chorou, dos Racionais MC’s. A cor vermelha do fundo da tela representa o sangue, as mortes e a violência institucionalizada contra a população preta. Na expressão do homem retratado, a exaustão toma forma. No seu boné azul, a palavra sonhos, escrita em cor branca, soa como um resquício de crença no futuro, tal qual o fundo branco no topo de sua cabeça. Esse espaço vazio vai ser preenchido de quê? Mais vermelho ou, talvez, um azul anil?

Em Menino na laje quer ganhar o mundo (2021, 24 x 32 cm), o sonhar segue sendo investigado, desta vez, através do sonho em letras vermelhas no estilo grafite pintadas no muro onde uma criança se apoia. Sem camisa e com olhar baixo, o menino está postado diante de um céu noturno estrelado, composto pela junção do azul e roxo. Jeff, que normalmente utiliza cores sólidas como fundo de suas obras, afirmou que a mistura de tonalidades começou como um erro na hora de pintar, mas que decidiu transformar aquilo em um acerto com o fundo que representa a crença em dias melhores. Os elementos e cores concedem à obra aspecto sonhador. Cleberson (2021, 21x29, 7cm) também abraça essa potência de sonhar em sua construção. O rosto manchado de sangue, os olhos vermelhos como os de quem chorou instantes antes, tudo isso em contraste com a firmeza do olhar. Ele encara sem medo, postura erguida, face levantada, como se desafiasse a realidade e ousasse sentir-se livre.


Menino na laje quer ganhar o mundo, 2021,
técnica mista sobre papel, 24 x 32 cm


Akin, 2021, acrílica sobre tela, 27 x 27 cm.
Imagens: Jeff Alan/Divulgação

“Não é só enxergar, é também transmitir. Sonhos vivos é almejar algo, alcançar e continuar vivendo aquilo. Eu consigo transmitir isso, principalmente para as crianças, os jovens, que é o meu público principal. Nossa geração já está em meio caminho andado, já está contaminada (de desesperança), então alcançar as crianças para mim é algo muito sagrado, transmitir isso para as crianças é algo muito sagrado”, explicou Jeff.

Entre os seus diversos trabalhos, a pesquisa Caminho da escola, caminho de descobertas tem sido um ponto de retorno. Desde 2021, o artista pinta crianças com os fardamentos da rede pública de ensino em suas jornadas para o colégio. “Esse caminho da escola é de descobertas, de sonhos, de memórias. Vez ou outra eu refaço o meu caminho para a escola. Foi nele que eu me tornei o artista que sou, que eu senti a necessidade de ocupar as paredes, deixar alguma mensagem. É um caminho de afetos, de sonhos, de descobertas. Muitas vezes ele foi até mais importante para mim do que a própria chegada. Já presenciei coisas ruins, encontrei obstáculos que poderiam me desviar. Para quem é de quebrada e estuda em rede pública, esse caminho é muito desafiador”, indica.

Os estudantes (2021), obra que faz parte do acervo pessoal de Alan, retrata dois meninos a caminho da escola. O artista destaca a importância dessa pintura devido à representação do afeto entre eles. O toque de cuidado através da mão nas costas clama o companheirismo da infância, a convivência amiga em contrapartida à solidão do crescimento, representada pelo artista pela cor cinza. “Era meio-dia, eles estavam voltando da escola e eu achei muito bonito o gesto da mão no ombro, a troca de afeto entre dois jovens negros. Eu sinto falta disso, por parte de mim, dos meus amigos. Não lembro quando foi a última vez que eu abracei um amigo, quando um amigo me perguntou se eu estava bem. Vivemos uma vida tão corrida, que não paramos para nos olhar, para colocar a mão no ombro”, evidencia.

É nas suas andanças pelo Barro que Jeff encontra as pessoas que deseja pintar. O bar do seu tio, próximo de escolas, um campinho de futebol… ele atenta às pessoas que passam por ali. “O que tem de mais bonito nas minhas obras, quem consome sem conversar comigo não vai enxergar, não consegue entender. Além do que está retratado na obra, eu tenho muita coisa a falar, eu gosto de conversar com as pessoas que consomem meu trabalho.”


Os estudantes, 2021, técnica mista sobre papel, 29,7 x 29,7 cm.
Imagem: Jeff Alan/Divulgação

CAMINHOS
Homem negro e periférico, Jeff Alan ocupa hoje um local de destaque na arte pernambucana e brasileira. Porém, ainda que esteja adentrando cada vez mais espaços, o preconceito racial persiste no campo da arte. “O mercado da arte é muito racista e cruel”, afirma ele. “Eu tenho 31 anos, muita gente diz ‘é só o começo’, só o começo nada! Eu faço isso desde pequeno. Talvez, se eu fosse uma pessoa branca de sobrenome, esse reconhecimento teria vindo bem antes. Eu sei que ainda sou muito novo para o mercado da arte, estou expondo com pessoas que têm o dobro da minha idade, mas eu quero que os meus também cheguem lá. Existe uma bolha que eu já consegui furar, mas ainda existem outras que precisam ser furadas. Não faz sentido algum que eu esteja lá e o meu povo não. Tem que ser uma conquista coletiva.”

Com a exuberância em suas obras, os desenhos, as pinturas e as grafitagens de Alan chegaram a espaços de maioria branca e mostraram a incandescência de sua arte. Pra deixar de ser “pra inglês ver” é a mais recente exposição individual do artista, que segue até o mês de julho no Engenho Massangana, em Cabo de Santo Agostinho.

Antes dessa individual, entre agosto e setembro de 2022, o artista realizou Comigo ninguém pode – A pintura de Jeff Alan, na Casa Estação da Luz, em Olinda, sob curadoria de Bruno Albertim. “Precoce, a obra de Jeff Alan é magneticamente descolonizante. É mais que hora de o público conhecer por inteiro o potente discurso indentitário na obra de Jeff Alan, que destrói mazelas da diáspora da escravidão africana no Brasil”, disse o curador ao Diario de Pernambuco. Além das individuais, sua obra pôde ser vista nas edições 2021 e 2022 da CASACOR Pernambuco, além de participações em coletivas no Recife. O artista participou da mostra Resiliência, em parceria com o fotógrafo Giles Duley, que aconteceu na França e na Inglaterra.


Jamie Mendes, 2022, acrílica sobre tela, 41 x 41 cm


Zezé Maria, 2022, técnica mista sobre tela, 50 x 50 cm.
Imagens: Jeff Alan/Divulgação

AUTORRETRATOS
Além de retratos, Jeff Alan também produziu autorretratos, como Espelho (2020), e Posso mudar meu destino (2021). No primeiro, sua pele é representada em um tom mais claro, manchada de sangue, o rosto escondido sob os braços, o corpo curvado, o fundo acinzentado, a joia amarela contrapondo a dor. Pintado em aquarela, o quadro é inspirado na faixa Falcão, de Djonga, que canta: “Olho corpos negros no chão, me sinto olhando o espelho. Corpos negros no trono, me sinto olhando o espelho. Olho corpos negros no chão, me sinto olhando o espelho, que corpos negros nunca mais se manchem de vermelho”.

Quanto a Posso mudar meu destino, há mudanças significativas na sua autorrepresentação. O artista pinta a cor da sua pele mais escura, a postura erguida e fortalecida. De um ano a outro, Jeff Alan transforma a maneira de enxergar a si mesmo e de identificar-se como pessoa negra. “No início, eu me pintava em um tom claro e depois fui escurecendo. Foi um processo de reconhecimento mesmo. Eu sou uma pessoa preta, por muitas vezes tentaram tirar isso de mim”, disse o pintor.


Espelho, 2020, técnica mista sobre papel, 29,7 x 42 cm.
Imagens: Jeff Alan/Divulgação

Com uma obra que dá protagonismo para pessoas pretas, o artista deseja inspirar. Seu trabalho não é feito só para si; cada tela, pintura e desenho tem um propósito de transmitir sentimento, coragem e vida para as pessoas representadas ali e aos que se enxergam em posição majestosa. Olhar as obras de Jeff Alan nos faz sonhar. Tudo ali está vivo.

LAURA MACHADO, jornalista em formação pela Universidade Católica de Pernambuco e estagiária da Continente.

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