Crônica

Caldo de felicidade

TEXTO Clarissa Lima

01 de Fevereiro de 2023

Ilustração Rafael Olinto

[conteúdo na íntegra | ed. 266 | fevereiro de 2023]

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Sempre me ancoro em um verso do jornalista pernambucano Antônio Maria para responder a quem me pergunta de onde venho. Com certo ar imponente, típico de quem veio ao mundo nessas terras, e tentando ser simpática e engraçada ao mesmo tempo, digo: “Sou do Recife com orgulho e com saudade. Sou do Recife com vontade de voltar”. Essa é a frase inicial de Frevo número 3, que integra uma trilogia de canções de carnaval em que o cronista e compositor, que viveu grande parte da sua vida no Rio de Janeiro, entre 1940 e 1960, se derrama de saudade por sua terra natal. Nós, pernambucanos, e megalomaníacos por natureza, recitamos esses versos desde o berço.

Com a convicção de que somos o centro do mundo – “Eu vi o mundo... Ele começava no Recife”, nome de uma obra do artista plástico Cícero Dias – partimos da certeza de que quem nos ouve vai entender, de pronto, a referência a Antônio Maria. Afinal, para quem nasceu em Pernambuco, esses versos são tão famosos quanto os da célebre canção Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

É difícil explicar de onde vem essa crença do pernambucano de que ele – ops–, nós somos o umbigo do universo. Um motivo pode ser o fato de o Oceano Atlântico nascer no Recife. A foz é exatamente por trás do Palácio Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco e local onde os rios Capibaribe e Beberibe se encontram. De lá, formam o segundo maior oceano em extensão no mundo, ocupando um quinto da superfície da Terra. Em 2022, foi inaugurado um monumento na Rua da Aurora para orientar os visitantes sobre onde começa essa pororoca monumental.

Para quem criou tudo isso, é até pouco contar que também fomos nós, pernambucanos, quem fundamos Nova York. Essa história relato outro dia. O espaço apertado concedido pelas editoras não permite que me alongue. Mas, asseguro, tem livro acadêmico contando o feito.

Falar sobre grandiosidade foi, na verdade, um preâmbulo para tratar sobre felicidade, que é o suprassumo da ostentação. Felicidade rima com Recife. Rima com voltar para casa, mesmo sendo a capital de Pernambuco a cidade onde menos tempo morei na vida. Aqui, só vivi oito anos. No Rio de Janeiro, moro desde 2007.

Recife rima com afeto, com sotaque, com querer bem, com riso, com jeito, com gosto e com comida. E, se é para falar em gastronomia, temos aqui uma iguaria particular que os historiadores precisam tomar nota. É o hábito de tomar caldinho na praia. Caldinho é um tira-gosto presente no cardápio de vários lugares. Na praia, no entanto, acho que só mesmo na Veneza brasileira. Sob um calor de não fazer inveja a nenhum Rio 40 graus, o pernambucano frequenta a praia para tomar caldinho. Eu que o diga. Cheguei ontem ao Recife, larguei as malas, botei o biquíni, estiquei a canga na areia e fiquei à espera do ambulante.

Eles carregam duas sacolas, uma em cada mão, cheias de garrafas térmicas com o líquido precioso. Se são muitos? Tem o mesmo tanto ou mais que vendedor de mate na zona sul do Rio de Janeiro. A conversa é mais ou menos assim:

“Um caldinho, moça? Tem de feijão mulatinho, feijão preto, mocotó, peixe e camarão. A freguesa hoje vai querer qual?”

“Me vê um de feijão.’’ Sempre o meu preferido.

“Completo? Com ovo de codorna, azeitona e charque?”

“Com tudo, moço. Com tudo que eu tenho direito.”

A qualquer hora do dia, o caldinho vem fumegando, quente igual sopa saída da boca do fogão. Não importa o vendedor, o caldinho é bom. Tem cominho, sabe? Muito cominho. E coentro. Pode comprar sem medo: não há registro na Vigilância Sanitária de má-digestão ou produto estragado. Desce redondo.

Como tudo que é bom sempre pode melhorar, o petisco pode ser acompanhado por uma dose de cachaça. É o clássico “ele e ela”. Juntos, formam a equação do regozijo, com a seguinte fórmula: quente 1 (praia) + quente 2 (caldinho) + quente 3 (cachaça) = felicidade. É aonde eu queria chegar.

Durante a pandemia da Covid-19, morei no Recife por dois anos. Desde o primeiro dia, jurei que só voltaria ao Rio quando pudesse, com segurança, tomar um caldinho de feijão na praia. Também já fiz promessa, firmada em cartório, de que, se não der certo viver da escrita, vou vender caldinho em Copacabana.

Para escrever essas linhas, lembrei que, entre os monumentos históricos, hoje existe um reconhecimento formal para os chamados patrimônios imateriais, como agremiações culturais, feiras, comidas e manifestações artísticas.

Em Pernambuco, na categoria alimento, já deram o prêmio para duas sobremesas: o bolo de rolo (rocambole é o cacete, diria o colunista) e a cartola. Esta última uma guloseima feita com queijo, banana, canela e açúcar.

Pois bem, quero lançar oficialmente a candidatura do caldinho. “Caldinho na praia do Recife quer ser reconhecido como patrimônio mundial”, é a manchete. Mundial, repare bem. Porque não é só a gastronomia, tem afeto, tem sotaque, tem querer bem, tem riso. Tudo isso somado, como em uma operação matemática, só tem um resultado: felicidade.

CLARISSA LIMA, jornalista.

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