agda
As imagens acionam sons no disco da cantora pernambucana
TEXTO Paula Passos
01 de Fevereiro de 2023
agda batizou seu disco de estreia com seu nome
Imagem Fran Silva/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 266 | fevereiro de 2023]
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Em novembro de 2022, a carta sonora de agda chegou às plataformas digitais. A cantora escreve seu nome e as faixas do seu trabalho em letras miúdas e a explicação vem, literalmente, do modo como ela enxerga o mundo. A artista é míope e evita usar óculos, porque gosta de ver o mundo de perto. “Eu tenho muitos graus de miopia. Então, eu só vejo bem se eu chegar perto das coisas. Muita gente diz para fazer cirurgia, usar óculos, mas eu não consigo ficar o tempo todo dentro de uma visão que não é a minha natural. Então, eu aprendi a gostar muito de ver assim, eu aprendo muito imaginando algo, mas chegando perto, sabendo que é completamente diferente”, conta.
Com produção de Juliano Holanda, o trabalho tem participação e colaboração de artistas como Flaira Ferro, Almério, Isaar, Isabela Moraes, Jr Black, Lirinha, Neide Maria, Fábio Xavier, Mery Lemos, Virgínia Guimarães, Joana Terra, Ezter Liu e Olegário Lucena.
No Instagram, em uma publicação para divulgar o trabalho da artista, Juliano Holanda escreveu sobre o processo: “O disco foi um desafio dos bons. Não porque fosse difícil de gravar, mas porque a arte de agda é tridimensional. Ainda não inventaram uma mídia capaz de gravá-la. Cheguei a duvidar que ela caberia nele. Há muitas dimensões no que ela faz. Há espessura e altura, há melodia e lodo, há bocas sorrindo e harmonia, há ferrugem e trilhos. Tudo nela”.
Embora agda prefira não nomear o trabalho como disco, mas como carta sonora, usaremos a palavra disco também para nomeá-lo. “São citações, não são músicas necessariamente, não são canções. Elas são também um jeito de a palavra se colocar. Eu ainda estou descobrindo a linguagem que dar a essas manifestações, mas eu diria que são encontros com a palavra. É um jeito da música sair acompanhada do som ou sozinha”, explica. Diferentemente da poesia metrificada feita pela família paterna no Cariri paraibano, agda liberta e brinca com o verso.
Imagem: Reprodução
Há chamamentos e gravações polifônicas que ajudam no desenho da cartografia sonora criada por ela. agda cursou Arquitetura e Urbanismo e parece ter utilizado parte do que aprendeu para mapear suas vivências, que levou cinco anos para ficar pronta e contou com o financiamento do Funcultura.
Como é comum em muitos artistas, a cantora se percebe diferente entre o começo e o fim desse projeto musical. “Quando a gente começou a gravar o disco, eu era uma pessoa. Quando foi acabando, eu já era outra.” Mesmo assim, há uma sonoridade que se desloca faixa após faixa e nos faz sentir que a cantora está perto de nós.
Este seu primeiro disco, agda, é dividido em quatro tempos: Apontar, Us doidus, Ter sidos e Poeira. As composições foram feitas ao longo dos anos, muitas em oficinas de que agda participou desde a adolescência nas escolas de Santa Cruz do Capibaribe e em outras que ela mediou em escolas da região.
A cidade, onde a artista mora desde que nasceu, se desenvolveu economicamente a partir da indústria têxtil, sendo hoje o maior parque de confecções da América Latina. Apesar de positiva no aspecto econômico, essa posição provoca reflexo ambiental bem negativo: a poluição do Rio Capibaribe.
agda tem uma frase que diz “tudo que acontece perto de mim é um pouco meu”. Apesar de não estar dita nos versos do álbum, abraça todas as faixas da carta sonora que dialogam diretamente não só com o que ela sente, mas com seu entorno.
E esse entorno se faz presente no primeiro tempo do disco, Apontar, com trajeto musical que leva nossa escuta até a feira, passa pelo Capibaribe e conta com descrições da paisagem agrestina. Compõem esse bloco canções como Transversal, Bebo rio e Paricida. Músicas que contemplam sua visão do Agreste e das pessoas que cruzam seu caminho.
Em Us doidus, há uma brincadeira com o tempo, com a simplicidade do cotidiano, com a calmaria do “chinelo de dedo”, da lembrança do “doce de leite com água gelada/pra memória amarga o nó desatar”. Em Bilhete a josé, brota a tristeza. José é amigo de infância de agda e, durante a pandemia da Covid-19, perdeu três pessoas. Apesar do luto, a música é uma ode ao amor e às relações de amizade que permanecem no tempo. A faixa remete à capa do disco, onde a cantora está com agulha e linha “furando a bolha da água do que dói”. A delicada capa tem projeto gráfico de Virgínia Guimarães.
Lavadeiras, Costureiras e O pano são canções do terceiro bloco, Ter sidos, que diz muito da ancestralidade de agda. Hoje com 29 anos, ela é filha, neta e bisneta, por parte de mãe, de costureiras, e brinca com a expressão “ter sidos” para se referir aos tecidos presentes na rotina de sua família.
Cigano também compõe esse bloco e conta com a participação de várias vozes, entre as quais Joana Terra, Ezter Liu e Jr. Black, que recitam versos enquanto a música cigana acompanha as frases declamadas.
O último tempo, Poeira, é composto por Redemoinho, Arvorã, Fora do eixo e A curva do Miroucha. Poeira remete a uma terra solta e quente, destaque para Redemoinho, que foi integralmente feita por mulheres. Nela, agda canta com Ezter Liu e Mery Lemos, Joana Terra toca violão e Isaar, percussão.
“Poeira é inspirado nos fenômenos da terra daqui, que é uma poeira solta, meio faroeste. Os redemoinhos, as cortinas de areia atravessam a rua e se misturam ao movimento da feira e dos mototaxistas. Vendo esses elementos como participações de um cotidiano que atende à feira e a essa multiplicidade de cores e tamanhos, vamos naturalmente chegando ao primeiro tempo”, explica ela, para quem o fim do percurso é também o começo, um arrodeio cíclico entre tempos que se encontram.
agda aciona imagens através dos sons que comunica. Todas as faixas são muito visuais e, talvez, essa capacidade venha de outro talento que ela desenvolveu: o de usar imagens para se comunicar. Ainda neste ano, dois filmes dirigidos por ela deverão ser lançados.
Com sua carta sonora, agda costura os tempos “de fora e os de dentro” em um universo particular que ressoa na gente. Com sua sensibilidade, a artista cria uma atmosfera entre as faixas, proporcionando a quem ouve uma visita ao mundo de delicadeza.
PAULA PASSOS, jornalista.