Comentário

A Amazônia protagonista nas telas

As crescentes ameaças à floresta e aos povos originários fizeram o Brasil e o mundo olharem ainda mais para a região, o que se reflete também na recente produção audiovisual

TEXTO Mariane Morisawa

01 de Fevereiro de 2023

'A invenção do outro', de Bruno Jorge

'A invenção do outro', de Bruno Jorge

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 266 | fevereiro de 2023]

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O assombro da Amazônia, com suas maravilhas, terrores e problemas, é assunto de cinema desde o começo do século XX. Mas o aumento do desmatamento – em 2021, o pior em 19 anos –, a ameaça às terras indígenas, a maior atenção mundial à emergência climática e à defesa dos povos originários fazem com que os olhos do Brasil e do mundo estejam voltados para a região. Não à toa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mudou o nome do Ministério do Meio Ambiente para Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, nomeando Marina Silva para comandá-lo. O presidente também criou o Ministério dos Povos Indígenas, chefiado por Sônia Guajajara. Joênia Wapichana é a primeira mulher indígena a presidir a FUNAI, agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas. E Ricardo Weibe Tapeba é o primeiro indígena a liderar a SESAI, Secretaria Especial de Saúde Indígena. E essa atenção se reflete também nos festivais de cinema.

A 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que aconteceu entre 20 de outubro e 2 de novembro do ano passado, teve o recorte Olhares sobre a Amazônia, com produções como os documentários Amazônia, a nova Minamata?, de Jorge Bodanzky, cineasta que ganhou o prêmio Humanidade, e À margem do ouro, de Sandro Kakabadze, que venceu o prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), e a ficção Noites alienígenas, de Sérgio de Carvalho, que tinha levado seis kikitos no Festival de Gramado em agosto, incluindo melhor filme e ator. Em novembro, A invenção do outro, de Bruno Jorge, foi escolhido o melhor longa do 55º Festival de Brasília, sendo premiado também com os candangos de fotografia, edição de som e montagem. Há um ano, em janeiro, O território, de Alex Pritz, uma coprodução entre Brasil, Dinamarca e EUA, tinha ganhado o prêmio do público e um prêmio especial do júri no Sundance Festival.

“O interesse pela questão climática aumentou muito. Então os indígenas vêm a reboque. A sociedade não se interessava muito pelo destino deles”, disse Jorge Bodanzky, em entrevista à Continente. “Por causa da questão climática, eles vão caindo pouco a pouco no protagonismo dessa história”, afirmou. Inclusive, o protagonismo atrás das câmeras. “Recentemente, a quantidade de indígenas dirigindo e produzindo documentários aumentou muito”, disse Bodanzky, que faz filmes na área desde a década de 1970, como Iracema, uma transa amazônica (1974) e Amazônia, o último Eldorado (1982). Ele mesmo contou com o apoio de imagens do Coletivo Audiovisual Munduruku, por exemplo.

No ano passado, Luiz Bolognesi dividiu a direção de A última floresta com o xamã Yanomami Davi Kopenawa. O território não teria sido feito sem os indígenas Uru Eu Wau Wau, que registraram as patrulhas que fazem em suas terras para coibir a invasão. “Nós queríamos o envolvimento de cineastas da Amazônia para que eles mesmos compartilhassem suas histórias”, disse o cineasta Darren Aronofsky, que é um dos produtores do documentário, na época de sua exibição no Sundance, em entrevista coletiva. “Estamos muito empolgados para que eles possam seguir fazendo trabalhos que os inspirem.”

Temas não faltam nessa região tão fascinante quanto complexa. O próprio Jorge Bodanzky pensou em fazer o documentário Amazônia, a nova Minamata? depois de conhecer o neurologista Eric Jennings, em 2016, durante as filmagens da série Transamazônica – Uma estrada para o passado. Disponível na HBO Max, ela conta a história e faz um retrato atual da rodovia que começou a ser construída durante a ditadura militar, no governo de Emílio Garrastazu Médici. Jennings estava vendo muitos pedidos de cadeiras de rodas vindos de povos indígenas da região e suspeitava de que se tratava de contaminação de mercúrio, como tinha acontecido na vila de pescadores de Minamata, no Japão, na década de 1950.

O envenenamento por mercúrio, vazado de uma fábrica de plásticos, foi um dos maiores desastres ambientais da história, matando centenas de pessoas e deixando milhares com a chamada Doença de Minamata, que causa deformação de pés e mãos, danos à visão e audição, distúrbios neurológicos, chegando à paralisia e à morte. “A ideia era fazer uma comparação do que está acontecendo aqui com o que aconteceu em Minamata”, disse Bodanzky.

Cenas de Amazônia, a nova Minamata?, de Jorge Bodanzky, À margem do ouro, de Sandro Kakabadze, e O território, de Alex Pritz. Imagens: Divulgação

Na Amazônia, o mercúrio é utilizado no garimpo, especialmente à beira do Rio Tapajós e seus afluentes, que nasce em Mato Grosso e atravessa boa parte do Pará. Uma pesquisa da Fiocruz em parceria com o WWF-Brasil mostrou contaminação em 100% dos indígenas Munduruku, uma das etnias da região do médio Tapajós. Segundo um levantamento do MapBiomas, entre 2010 e 2021, a área de garimpo passou de 99 mil hectares para 196 mil hectares – a maior parte na Amazônia. A mineração industrial levou 20 anos para subir de 86 mil hectares para 170 mil hectares. Outro número assustador é que, nesse período, houve um crescimento de 625% de área garimpada em terras indígenas, atividade ilegal. “O ouro valorizou muito por causa da crise mundial, porque é o lastro financeiro dos bancos. O preço subiu muito e há uma demanda enorme”, disse Bodanzky.

Os indígenas, muitas vezes, são cooptados pelos garimpeiros, por não terem outras fontes de renda. Amazônia, a nova Minamata? mostra os conflitos entre grupos diferentes de Mundurukus. Em dado momento, o médico Eric Jennings e a equipe são atacados e ameaçados. “Eu diria que o atual momento é uma guerra”, dimensionou Bodanzky. “É uma região muito perigosa. As áreas aonde a gente vai são de conflito aberto. Eu comecei a ir à época da ditadura militar. Hoje, o perigo são os milicianos que controlam o tráfico, o contrabando de ouro, de mercúrio. Isso se exacerbou muito com o governo do Bolsonaro. Ele incentivou a ocupação ilegal das terras porque recebeu garimpeiros no Palácio do Planalto e impera uma total impunidade – a gente vê pelo assassinato dos jornalistas e o que acontece o tempo inteiro lá. O perigo sempre houve, mas hoje está bem mais delicado.”

Bodanzky fez o filme como alerta mesmo, para que não aconteça no Brasil o que houve no Japão – o documentário traz depoimentos de japoneses afetados pela Doença de Minamata.

À margem do ouro, de Sandro Kakabadze, também vai à mesma região do Tapajós para mostrar o outro lado dessa história: os garimpeiros. São homens vindos de diversas partes do país, que enfrentam a malária, a violência e deixam de ver os filhos por anos na promessa de ganhar muito dinheiro – parte dele é gasto em produtos com preços exorbitantes, mulheres, bebida, jogo e em doações às igrejas evangélicas.

Kakabadze promove um mergulho naquela dura realidade, sem sentimentalismo ou julgamentos. Mas faz questão de mostrar o lado humano, do garimpeiro jovem casado com uma mulher mais velha à menina que acabou de completar 18 anos e chega para se prostituir. “Depois de um tempo, se não estiver dando muito dinheiro, vá para outro garimpo. Porque os homens gostam de novidade”, diz uma mulher mais experiente para ela, sem rodeios. O garoto que sonha em sair dali sente falta do pai e logo vê seu melhor amigo e companheiro de aventuras partir.

O garimpo e a destruição do meio ambiente são igualmente consequências da falta de oportunidades e perspectivas. São uma doença do capitalismo – segundo garimpeiros ouvidos em uma audiência pública na Câmara dos Deputados em 2019, os garimpos na Amazônia lucram de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões por ano. Para se ter um ideia da exploração no território, entre 2019 e 2021, foi desmatada uma área equivalente a 2 mil campos de futebol na terra indígena Munduruku.

O território, do americano Alex Pritz, também ouve o outro lado. O documentário aborda o problema do desmatamento para criação de gado e ouve os desmatadores, que muitas vezes agem a mando de grandes fazendeiros ou empresas com a promessa de ganhar seu pedaço de terra dentro do território indígena.

“Essa vontade veio de conversas com Bitaté Uru Eu Wau Wau (líder de seu povo e das patrulhas na floresta) e Neidinha (Suruí, indigenista que defende 52 etnias)”, disse Pritz na coletiva de imprensa. “Eles disseram: os jornalistas falam com indígenas e ambientalistas, mas quem comete os crimes não somos nós. Os criminosos se sentem protegidos pelo governo e orgulhosos de fazer o que fazem.” Os invasores perdem a inibição diante das câmeras de maneira surpreendente. Bitaté contou que o medo é constante, quando os grupos saem pela floresta. “Conflito, é muito fácil de ter”, disse. Para o jornalista e coprodutor de O território, Gabriel Uchida, que já cobriu conflitos, foi preciso um conjunto de protocolos rígidos para garantir a segurança da equipe durante as filmagens. “A Amazônia é o lugar mais perigoso do mundo e sabíamos disso.”

URBANA
Enquanto isso, Noites alienígenas, de Sérgio de Carvalho, leva para a tela a Amazônia urbana, centrando-se na periferia de Rio Branco, capital do Acre. Apesar de ser uma ficção, o filme se baseia na realidade do avanço das facções criminosas nesta região. Ali, Rivellino (Gabriel Knoxx, ganhador do kikito por sua atuação) é um adolescente com talento artístico, mas que trabalha para um pequeno traficante local (Chico Diaz). A tentação é grande de se juntar à facção. Os outros personagens também estão à deriva, mergulhados no vício ou tentando desesperadamente sair dali. Noites alienígenas se passa na cidade, sendo atravessado pela cultura local.

Noites alienígenas, de Sérgio de Carvalho. Imagem: Divulgação

Em A invenção do outro, de Bruno Jorge (um dos diretores de Piripkura, ao lado de Mariana Oliva e Renata Terra), a relação entre indígenas e brancos é de outra natureza. O documentário acompanha uma expedição realizada em 2019 para reunir um grupo de Korubos com parentes, de quem tinham se separado em 2015, depois de um ataque do grupo rival Matis, na Terra Indígena do Vale do Javari, demarcada em 2001 e localizada na fronteira com Peru e Colômbia.

A região de 85 mil km2 tem a maior concentração de povos originários isolados do mundo, com 6.300 indígenas de 26 grupos, 19 deles isolados. Os garimpeiros, madeireiros, desmatadores estão certamente ao redor – e o perigo confirmou-se em junho de 2022, quando o líder da expedição, o indigenista Bruno Pereira, foi assassinado junto com o jornalista inglês Dom Philips, em outra missão. Mas antes da expedição de 2019 e diante dos muitos perigos existentes na região, seis funcionários da Funai tinham sido mortos na tentativa de fazer contato com os Korubos.

O filme é um feito e tanto, acompanhando a expedição de 30 pessoas na floresta fechada, onde é preciso caçar para comer e fazer quarentena para evitar passar gripe para os Korubos isolados. Poucas vezes o cinema teve a oportunidade de mostrar os povos originários sem tratá-los como sujeitos exóticos ou selvagens e com paternalismo. Xuxu, um korubo contatado há mais tempo, teve parte de sua família assassinada em um conflito com Matis. O objetivo é reencontrar a outra parte, que se embrenhou na floresta. A invenção do outro permite que ele tenha sua individualidade e complexidade, assim como os outros de seu grupo.

A marca dessa safra de filmes na Amazônia talvez seja justamente essa: admitir que a realidade ali é multifacetada e complexa.

MARIANE MARISAWA, jornalista apaixonada por cinema. Morou em Los Angeles por sete anos e cobre festivais em todo o planeta.

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