Crítica

Um tempo de beleza e perda

Cláudia Roquette-Pinto volta à poesia

TEXTO Guilherme Gontijo Flores

03 de Janeiro de 2023

Poeta lança ‘Alma corsária’, que marca seu retorno ao gênero após 17 anos

Poeta lança ‘Alma corsária’, que marca seu retorno ao gênero após 17 anos

Foto Editora 34/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 265 | janeiro de 2023]

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O mistério da escrita, como o mistério de todas as artes, reside no fato de que cada obra pode ser realmente a última. Não porque a morte a tudo espreita o tempo todo, mas simplesmente porque o ímpeto da obra de agora, ou de anos de dedicação, não dá a menor garantia de perdurar. Tudo pode estar por um fio na escrita, para quem escreve a sério; e talvez fosse realmente importante olhar a contemporaneidade dos vivos sempre como um movimento inacabado, ou ao menos acabado mesmo estando em movimento. Porque, assim como pode cessar, tudo pode (res)surgir já quando parecia de certa forma acabado. Temos os casos do silêncio célebre e sem retorno de autores como Rimbaud, ou Raduan Nassar, que foram viver suas vidas fora da criação literária. No entanto, há também os casos de toda uma vida escrita marcada por pouquíssima publicação, como a Marquesa de Alorna, ou mesmo Fernando Pessoa; são curiosos porque a contagem da publicação em vida nos engana, dando a sensação de vazio, quando é fervilhamento.

Pois é, sem sabermos muito bem como foi sua vida pessoal, Cláudia Roquette-Pinto passou os últimos 17 anos sem publicar livros de poesia, depois de fazer uma trajetória absolutamente impressionante com cinco livros em 15 anos: Os dias gagos (1991), Saxífraga (1993), Zona de sombra (1997), Corola (2001) e Margem de manobra (2005). Todos estão fora de catálogo, pelo que pude conferir; porém, quem os conhece, encontra ali um crescendo no entrelaçamento entre tensão da linguagem (uma poesia cerrada de imagem e som, quase de assonância contínua em pletora de metáfora) que foi pouco a pouco abrigando o espaço político que tanto lhe cobraram nos primeiros anos, até chegar a um poema hoje clássico Sítio, para ficarmos apenas num exemplo. Mas, desde 2005, nada, a não ser pelo curioso e bonito trabalho de colagens de Entre lobo e cão (2014), que não deixa de ser legível sob certa chave poética, apesar de flertar mais diretamente com as artes plásticas.

Em 2022 tivemos, portanto, uma espécie de retorno que para alguns já pareceria impossível, ou ao menos bastante improvável: Roquette-Pinto voltou a publicar, depois de 17 anos de silêncio, Alma corsária, pela Editora 34. São 57 poemas, divididos em seis partes muito bem delimitadas, que nos dão a entender que a produção nunca tinha cessado de todo, embora possa ter ficado esparsa demais, por tempo demais. O que essa recolha quer dizer? Projeto de maturação alongado? Longos silêncios? Um baú de escritos crescendo fora dos holofotes? Difícil determinar, mas o livro tem uma variedade que nos faz pensar, à primeira vista, em uma reunião de fases diversas.


Imagem: Reprodução

A primeira parte, Alma corsária, é o retorno à poesia mais conhecida de Roquette-Pinto: espaços de plantas, jardins e corpos se entrelaçam na produção de um ambiente artificioso (e artificial?) que estabelece na própria linguagem uma espécie de espaço meditativo que funciona ao mesmo tempo como um refúgio. Aí temos poemas como Resma de paisagem:

Clara,
com a mesma claridade
desta nesga
e as vozes
no conclave das vespas
com seus graves
estalando em picareta
por entre as dobras das telhas,
rasga-se esta resma
esmeralda de paisagem
diante dos meus olhos,
carregados de miragens,
em que agulhas vão perdendo a nitidez
e se não furam,
ainda assim ferem à vera,
com essa espécie de desfoque,
último golpe do impostor,
o pinheiral.

Preciso dizer que o que, para alguns leitores, poderia soar como retrocesso me parece, nesses casos, parte de sua grande força: seu retorno à poesia, algo revirado sobre o fazer anterior de quase duas décadas atrás, aparece agora não como uma alienação (Roquette-Pinto já sofreu injustamente essa crítica), mas como afirmação de um modo de vida que entrelaça espaço e linguagem: o jardim é um pequeno cosmo onde uma vida se organiza, uma ética e uma linguagem se mesclam como micropolítica. É onde ela consegue, por exemplo, pensar a perda da mãe, em Outono na montanha; e também onde o corpo aparece por vezes como perturbação, quando afirma, algo incomodamente, “Sim, eu acredito no corpo” e “O poeta é uma deformidade”, em Queda, o poema de abertura, ou quando afirma “Tenho medo do meu corpo”, em sua Canção do exílio. Algo treme em pequenos espasmos no meio do jardim. E esse ruído se mostra réstia de vida.

A segunda seção, Na estrada, levanta as vistas ao mundo exterior, fora da casa e do controle previsível, enquanto se apresenta sob a forma de metapoemas. Segue o rigor formal da sua escrita, e a extraordinária capacidade de observação como movimentos de foque e desfoque mais ligeiros na formulação do pensamento. Ali está outra peça fundamental, um poema sobre o uso de remédios psiquiátricos (mais especificamente para o Rivotril), que termina reconhecendo um desejo de fúria e risco, em Better living through chemicals

Quando a sua indiferença
entra no meu sangue
eu fico neutra-lenta
um passo atrás das aparências
nada clara-atenta
(a folha negra e falha
cravada na parede
pelo sol)
ao contemplar o mundo,
como de costume.
Eu perco o gume,
fico amortalhada,
vou para um país que não confunde
fala com pele com
o que se experimenta,
país que mata
a melhor parte,
a que me arde
e incendeia, até.
Lá não existe dor.
Uma Pasárgada sintética,
eis do que se trata,
um Reino de Deus,
sem hermenêutica,
sem tom,
onde, cordata,
sou toda ausência de mim.
Alívio bom
mas aí é que mora o problema.
Não é assim que se escreve um poema.

Sintomaticamente, aqui o corpo, longe de medo, é o que se afirma ali mesmo onde quebra. O remédio alivia o sofrimento, mas praticamente aniquila o complexo simbólico que demanda a vida como poema: uma “Pasárgada sintética”, “que mata/ a melhor parte”. Essa é uma das contradições contemporâneas que encontramos condensada ao longo do livro, é um dos muitos pontos em que no cerne do lírico está o mundo público e político.

A terceira parte, As horas nuas, retoma certa contemplação de espaços naturais no entorno, como que abrindo em espiral o que se dava na primeira parte, dessa vez incorporando ainda mais a fisicalidade, muitas vezes sexual, do desejo. Mais uma vez, é a Roquette-Pinto mais reconhecida da sua carreira nos anos 1990 e 2000, que reemerge com todo vigor em peças como A destreza e o delírio, onde a densidade sonora e imagética quase nos põe em vertigem, embora o poema por um instante pareça peça estática (e extática): 

Com um golpe de vertigem
em meio ao dia de sol
e uma aragem de convite aos descaminhos,
com as copas enfolhadas
expirando devagar
(devagar mesmo, devagarinho),
com esta andorinha doida
desembestando em círculos,
no limite entre a destreza
e o delírio
e os lírios a se mirar
(sua trêmula nudez
na água lenta do rio)
com o olho ardente
desse sol sem dó
e sua faca, que ainda me escalpa
meses, anos,
vidas adiante
o seu amor me assalta.

Nessa seção, temos ainda peças singulares, como Nesga, onde lemos versos como “Talvez o amor seja isso:/ restos de vidro e cicatrizes,/ cacos depois da ressaca,” para terminar com “Talvez seja isto o amor,/ balbucio”.

A segunda metade do livro é que parece perder parte desse fôlego impressionante das primeiras 80 páginas, e com isso dá certa irregularidade ao impacto do todo. Na quarta parte, Poemas do Rio, temos obras dedicadas a alguns espaços cariocas e fluminenses, em que a poeta parece muitas vezes assolada pela cidade, seu clima, seus ambientes. Nesses poemas lemos versos como “‘Chegou o Verão,/ mais um Verão’,/ eu gemo, covarde”. Ou então “Esse sol onipresente que não me deixa pensar/ em coisas além do corpo, essa sandice/ imprimindo seu brilho tenso”. Na sequência, Parada de Lucas resolve de modo infeliz uma construção narrativa fragmentária que se faz entre o tom de memória da juventude e vivência de uma velhice que se desvela no futuro (outro ponto central do livro); no entanto, ali temos uma visão bastante clichê, quase exótica do próprio espaço da Zona Norte, dos corpos negros, do funk carioca etc. Cito apenas um trecho do longo poema: 

E ela volta em pensamento
ao velho terreiro aberto
ao chão de lodo e metal,
repleto de homens pretos
jovens                 belos
de calça jeans e peito nu
(os das moças tremem luzindo,
escapolem pelo decote,
bundas levitam, sacodem
num frenesi de candomblé).
O homem passa num bonde,
pensando que ela é gringa,
grita, fazendo bico, You’re beautifuuuuul!!!
pra loura dançando ali sozinha.
E a menina séria, olhos doídos,
encontra essa mulher desabrida
ela mesma, trinta anos depois —
rolando descalça entre os braços dos homens
no meio do batidão.

Nos poemas dessa seção, Roquette-Pinto acaba se mostrando mais à vontade quando descreve o espaço dos balneários, enquanto que por vezes quase nos lembra uma turista nas próprias terras. É mais uma das tensões organizatórias de Alma corsária, que bem merecia uma discussão detalhada à parte, quem sabe em outro momento.


Imagem: Reprodução

Escritos da pandemia reúnem, na quinta parte, o que se explicita no título. De fato, são poemas de circunstância, deslizando entre o horror da política nacional e da pandemia mundial. Em quase todos eles vemos aquilo que atravessou muito da poesia brasileira em torno desses temas: certo confessionalismo imediato, onde o seu marcado rigor da linguagem se mostra menos teso e afiado. Uma exceção é o feito do Poema para o dia de hoje

Eu queria ter a fúria desta folha
de palmeira, perfurando o ar feroz
solitária, tão concisa e obstinada
empurrando lá pra cima a sua espada
e erguendo, no seu gesto, a copa inteira.

Uma folha feito agulha, folha espúria,
que no entanto, contra tanto, persevera
no seu mudra concentrado de guerreira,
seta verde, fura o azul que se exacerba
pela injúria que invadiu nossa bandeira.

As camisas amarelas de um orgulho
genocida vicejando em suas folhas,
nas escolhas do Algoz,
senhor do engulho,
escritas às escuras na bandeja.

Só você, folha taluda, não se altera
e vai subindo, vai mirando a cumeeira,
debaixo de sol ou de chuva. 

Folha de palmeira,
sem eira nem beira,
só quero ver quando você se desfraldar.

Encerrando o livro, a sexta parte, Resumo da ópera, é uma verdadeira abertura para a madureza que a poeta se anuncia, hoje com 59 anos (“a madureza, essa terrível prenda”, como já nos lembrava Drummond). Temos aqui um retorno especular da própria imagem no tempo, seja em títulos como A mulher no espelho, seja em peças de idade marcada, como Poema dos 50 anos, Poema dos 51 anos, Aos 57, e o próprio Resumo da ópera. Neles, o corpo feminino se mostra ferido no passar dos anos, ao sair pouco a pouco da cena eufórica da sedução para a entrever mais continuamente a precariedade da carne e a concretude da morte, entre momentos de melancolia e autoironia mordaz. Em Aos 57 lemos versos como: 

Passada esta a era da beleza.
O tempo que impera é o da perda,
das coisas que se desmancham
em marcha lenta
e deixam marcas, manchas, rugas, tretas. 

Para concluir que seria melhor abrir aquele vinho tinto./ Melhor ir rabiscar mais um soneto”. Algo desse cansaço quase cínico da idade parece mesmo uma perda, diante de uma poeta ainda capaz de tamanha exuberância contínua na linguagem. O corpo decai num sentimento que anuncia aceitar muito facilmente seu lugar público de lamento, ao passo que contraria a própria prática do poema em pleno viço. Resumo da ópera, que fecha o livro, apesar de mais longo, merece citação completa, por realizar singularmente o que se dá no conjunto: 

Eu não passo de uma abóbada repleta
de manchas de infiltração
no teto de um velho templo, eu não
passo de uma ex-belle-of-the-ball
com problemas de articulação
nas têmporas, no tempo,
e uns pinos de metal pra segurar os dentes
um pedaço decadente de autoironia
cercado de juventude por todos os lados.
Eu não passo de uma massa flácida
que a cada dia derrete,
escorrendo corpo abaixo
mas que não sossega o facho
e olha de olho comprido
para um mundo de carnes tenras
e células lindas, vivas,
cintilantes
a renovar-se vertiginosamente
feito um arrebol
enquanto, no íntimo, invento
mil enredos onde me enredo
(uma inocente do Joá)
e depois, pra desenrolar, leva uma vida.
Eu não passo de uma tímida-metida,
uma voyeuse (Will you ever get me?)
a que sempre se mete
em embrulhadas
tão melancólica quanto Chet
pois Everything happens to me
mas dona de uma alegria que descamba
pro delírio,
quase um samba do avião.
Eu não
passo de uma boa bisca,
uma absurda,
derrapando mil vezes na curva
(e, volta e meia, ainda capoto)
pelos olhos de um moreno.
Moradora dos reflexos,
um sexo equívoco, um leão
da Metro, eu não
passo de um traço estatístico,
de um mísero inseto
voejando sobre o lixo,
na quebrada,
não passo de uma abóbada
uma peste,
uma abóbada celeste
em vias de desintegrar.

 
Imagens: Reprodução

Aqui temos talvez um resumo de fato da obra: a tensão entre reflexão e riso (talvez no seu livro mais aberto ao ridículo de existir), entre maestria formal e confessionário (porque a vivência da poeta se revela mais que nunca nestes poemas), entre espaço privado e público, entre corpo sexuado e citação intelectual, entre a rima fácil e o efeito quase alucinatório (como escapar da preciosa imagem dos últimos versos?), entre a escrita como continuidade e como invenção de si etc. O que se resume, portanto, é proliferação contraditória e, por isso mesmo, muito viva.

Alma corsária é um retorno com variação: talvez o livro mais desigual de sua carreira, mas também o mais maduro, em vários aspectos da maturidade. Aqui temos explícito o mote da poesia como risco. Uma forma da vida corsária, hoje. Pode ser o último, como todo poema, como todo livro. Sinceramente, espero que não. Que essa abóbada celeste dos poemas siga, como todos nós, num cosmo maior que nossas competências de entendimento: em vias de desintegrar sem simplesmente acabar, fazendo do equívoco seu brilho.

GUILHERME GONTIJO FLORES, poeta, tradutor e professor na UFPR. Autor de carvão :: capim, História de Joia, Potlatch, Tradução-Exu e Uma a outra Tempestade (os dois últimos com André Capilé), entre outros. Publicou traduções de Robert Burton, Propércio, Milton, Safo, Rabelais e Celan, entre outros. Foi coeditor da revista blog escamandro e é membro da banda Pecora Loca.

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