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“Será que a gente ainda sabe tocar juntos?”

Quase duas décadas depois do último show, em 2004, o grupo Mestre Ambrósio volta aos palcos em turnê comemorativa aos 30 anos de carreira

TEXTO Paula Passos

03 de Janeiro de 2023

Grupo traz de volta Mazinho Lima, Sérgio Cassiano, Maurício Badé (de pé), Eder “O” Rocha, Helder Vasconcelos e Siba Veloso (agachados)

Grupo traz de volta Mazinho Lima, Sérgio Cassiano, Maurício Badé (de pé), Eder “O” Rocha, Helder Vasconcelos e Siba Veloso (agachados)

Foto José Holanda/Divulgação

[ed. 265 | janeiro de 2023]

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Final da década de 1990, Clube Português do Recife.

O sol já se preparava para dormir, quando Siba Veloso, um dos integrantes da banda pernambucana Mestre Ambrósio, foi surpreendido por uma pessoa que caminhava pela calçada do clube. O músico tinha acabado de passar o som do show que aconteceria logo mais à noite e esperava pelo transporte que o levaria até a casa de sua mãe na zona norte do Recife.

Um homem, sóbrio, observou a movimentação no local e perguntou:

“Ei, boy, Mestre Ambrósio tá aí ainda?”

“Rapaz, tá. Ele tá lá dentro”, respondeu Siba.

“Rapaz, chama ele lá, que eu sou cunhado dele”, pediu.

“Rapaz, agora, eu não posso mais não, mas tu espera ele aí, que ele vai sair já já. Não tem errada. Só tem essa porta. Ele sai já já”, disse Siba, deixando o homem à espera de uma alma caridosa que lhe desse um ingresso para o show da noite.

A verdade desconhecida por aquele homem é que o Mestre Ambrósio é um personagem do cavalo-marinho, responsável por vender as máscaras e roupas durante a apresentação do folguedo, típico da Zona da Mata Norte pernambucana e do Agreste paraibano. Nos encontros de cavalo-marinho, música, dança, teatro e poesia se misturam e esse personagem, que nomeou o grupo de seis jovens, está presente.  

Quase duas décadas depois da última apresentação, o Clube Português é testemunha de um novo show do Mestre Ambrósio. No dia 7 de janeiro, Eder “O” Rocha (percussão), Helder Vasconcelos (fole de oito baixos, percussão e coro), Siba Veloso (vocal, guitarra e rabeca), Mazinho (baixo e coro), Sérgio Cassiano (vocal e percussão) e Maurício Badé (percussão e coro) comemoram os 30 anos da banda, completados em 2022.

Dessas três décadas de história, 11 anos foram juntos levando a música brasileira para várias cidades do mundo. Depois de uma longa pausa que pareceu um fim definitivo, veio a esperança para fãs que aguardavam um reencontro: uma turnê celebrativa, proposta pelo Sesc São Paulo, iniciada em novembro de 2022. Em São Paulo, foram seis shows em três unidades: Vila Mariana, Jundiaí e Santos. 

Na lembrança de Sérgio Cassiano, a última vez em que subiram juntos ao palco foi em janeiro de 2004, no Sesc Santo André, em São Paulo. Eles já sabiam que seria o último, pelo menos daquela fase. Após uns meses, anunciaram à imprensa que estavam em um período de férias, porque até então não se sabia muito bem qual seria o destino do Mestre Ambrósio. 

Havia a expectativa de que, mesmo com saída de alguns integrantes, o grupo tivesse outra formação e desse prosseguimento ao trabalho consagrado. Mas não foi o que aconteceu. Cassiano reconhece que faltou um pouco de “tato” para lidar com o público naquele momento, já que o último show não foi comunicado oficialmente como sendo o derradeiro. Três anos depois, cada um estava com uma carreira paralela em movimento, e a ideia do retorno ficou adormecida. A primeira fase do Mestre Ambrósio estava encerrada.

 


Entre 1996 e 2001, o grupo lançou estes três discos.
Imagens: Reprodução

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Durante o tempo em que estiveram juntos, o Mestre Ambrósio lançou três discos: Mestre Ambrósio (1996), Fuá na casa de CaBRal (1998) e Terceiro samba (2001), os dois últimos pela Chaos/Sony Music. O primeiro foi feito de forma independente, gravado no estúdio do Conservatório Pernambucano de Música, dirigido por Siba, que também assinou a maior parte das composições. A produção foi de Lenine, Marcos Suzano e Denílson. Siba tem um carinho especial por esse álbum: “É um disco muito cru, que tem uma energia visceral, juvenil, que muito me agrada”. A revista especializada em música Bizz elegeu o Mestre Ambrósio como um dos melhores discos de 1996. Na época, mais de 50 mil cópias foram vendidas. 

Eder “O” Rocha, assim como Siba, tem uma relação especial pelo Mestre Ambrósio (1996): “Pra mim é o disco mais forte que a gente tem, mais autêntico no sentido de a gente ter um repertório bem mais tradicional, mais ainda como uma colagem, porque a gente estava em processo de laboratório. Em alguns momentos, parecia banda de pífano, em outros mais um forró de rabeca, depois já era mais um rock and roll. Era um pouco misturado”. 

Foi com essa variedade que o repertório do primeiro disco acompanhou o Mestre Ambrósio em suas turnês pela Europa e Japão. Enquanto venciam a barreira do idioma com um som que fazia europeus e japoneses dançarem, as músicas de Fuá na casa de CaBRal já estavam sendo elaboradas. Já com mais investimento, Fuá na casa de CaBRal teve produção do sérvio, radicado no Brasil, Suba, e de Antoine Midani. A mixagem foi feita em Nova York, onde o grupo passou duas semanas. 

A ida aos Estados Unidos e, principalmente, a apresentação no Summer Stage, em 1996, foi eleita como um dos grandes momentos vividos por Maurício Badé aos 22 anos. Morador do Alto do Pascoal, zona norte do Recife, caçula de cinco filhos e uma filha, era a primeira vez que saía do Brasil. 

Dentro de casa, os irmãos tocavam instrumentos, a irmã dançava. Fora dela, o espaço estreito da viela era compartilhado com mais quatro moradias. Próximo dali, o Bairro de Casa Amarela estava em ebulição cultural: rodas de coco, festejos juninos no Sítio da Trindade, Maracatu Estrela Brilhante Nação do Recife, Caboclinho Canindé, Afoxé Oxum Pandá. O pai e a mãe de Badé nunca proibiram o jovem de frequentar esses espaços, por isso, ele aproveitava tudo que a região oferecia de influência cultural. Mas havia uma condição, que também era um lembrete guardado até hoje pelo músico: “Meu pai sempre dizia que respeito e educação abrem portas, então, a gente saía com isso em mente”. 

Já Mazinho relembra que, no Fuá na Casa de CaBRal (1998), a linguagem do grupo estava consolidada e as tecnologias do estúdio em Nova York fizeram diferença. “Nesse disco, a gente fez o que deu vontade. Lá havia tecnologias que aperfeiçoavam a sonoridade das coisas. Foi bom demais!”, diz Mazinho, empolgado, sem conseguir, em alguns momentos, colocar em palavras tudo que aquela experiência representou. 


Mestre Ambrósio na Rua do Lima, Forró da TV Jornal, em Junho de 1994, Recife (PE). Música: Fuá na casa de CaBRal. Recuperação de vídeo: Adeildo Junior e Celso Vasconcelos

Para Eder “O” Rocha, o Fuá apresentou um processo mais de unificação nos arranjos e nas composições, muito pela contribuição do produtor sugerido pela Sony, Suba. “Ele deu muito certo com o nosso trabalho e isso fez com que a gente amadurecesse muito musical e sonoramente.” Siba concorda e defende que, formalmente, esse trabalho é o melhor disco do Mestre Ambrósio, porque atingiu o objetivo das fusões musicais que eles sempre quiseram. 

O crítico Jon Pareles, do New York Times, elegeu Fuá na casa de CaBRal como um dos melhores trabalhos de 1999. O mesmo crítico escreveu em 2003 que o grupo “estava imerso nas tradições pernambucanas, mas não havia pó de arquivo em sua música”, durante a apresentação no Festival Brazilian, realizada no Lincoln Center. 

Quando perguntei a Badé de qual disco mais gostava, ele respondeu que cada um tem representações diferentes, mas que se identifica mais com o Terceiro samba, com produção assinada por Beto Villares, coprodução de LC Varella e Mazinho Lima. De acordo com o músico, o álbum arremata a trajetória do Mestre Ambrósio. “Ele foi feito em um momento superdelicado e a gente conseguiu condensar toda uma trajetória anterior. Ele explica muito a gente.”  

Ao analisar o Terceiro samba, Eder diz que o trabalho chegou para firmar a linguagem do Mestre Ambrósio dentro da música brasileira, porque, apesar de haver uma mistura de vários ritmos, ela foi construída de um jeito singular. Um efeito dessa intenção, segundo o multi-instrumentista, é o uso de bastante branco na capa. “É uma forma de limpar quaisquer influências a mais que a gente tivesse e trazer algo mais puro, com muita luz, como quem diz: ‘as luzes estão acesas para que a gente possa fazer esse terceiro samba’”. A capa contou com as fotos de Gal Oppido e o projeto gráfico de Luciana Facchini e Fernanda Carvalho.

Para tirar dúvida de algumas pessoas de que o álbum pudesse ter uma sonoridade do samba carioca, “O” Rocha explica a origem bantu da palavra samba, que contempla um conjunto de expressões musicais da cultura popular brasileira. O Terceiro samba tem ainda uma participação bem especial para Eder, sua mãe: Elza Rocha, que faz a abertura da faixa Cabocla. Além dessa participação, Dona Elza ouviu durante anos os ensaios do Mestre Ambrósio, enquanto os garotos ensaiavam dentro de sua casa, na área acima da cozinha, no Bairro do Ipsep, zona sul do Recife. Em 2001, Terceiro samba foi indicado para o Grammy Latino.

Em 2020, os três álbuns foram disponibilizados nos tocadores digitais de música. Antes disso, um perfil no Instagram foi criado por Siba para compartilhar memórias do grupo. Nos comentários das publicações, um pedido se repetia: a volta do Mestre Ambrósio. Antes de o retorno acontecer, o Fuá na casa de CaBRal e o Terceiro samba foram relançados; em 2021, em vinil pela Três Selos; e, no final de 2022, Mestre Ambrósio saiu pela Marafo Records.

***

Em 2019, um grupo no WhatsApp foi feito para que os músicos pudessem resolver questões burocráticas. De 2004 até 2022, todos eles mantinham contato e, quando possível, faziam alguma apresentação juntos. Às vezes, o encontro era com três, no máximo, dos quatro integrantes. Só no final de setembro de 2022, com o projeto de celebração confirmado, foi que os seis voltaram a ensaiar juntos quase 20 anos depois. O estúdio de Badé, em São Paulo, acolheu o reencontro. 

Havia uma expectativa sobre como seria tocar novamente músicas que marcaram o começo da carreira deles, mas, durante todas as entrevistas realizadas por videochamada, foi unanimidade o relato de que tudo havia sido muito tranquilo, apesar de alguns deles pensarem: “Será que a gente sabe tocar juntos ainda?”. A resposta veio rápido. No terceiro dia de ensaios, o repertório já estava definido. A “fotografia sonora” daquele tempo, como disse Cassiano, estava não só na memória, mas também materializada no corpo. A impressão dele foi de que parecia que eles não estavam afastados há tanto tempo. 

Helder Vasconcelos comenta o ensaio: “Foi muito legal voltar a ensaiar, porque muito rápido a gente já estava tocando juntos. Foi surpreendente a velocidade. Acho que tem uma memória corporal, afetiva, em um lugar muito especial da gente”.


Helder Vasconcelos, Siba Veloso, Mazinho Lima, Eder “O” Rocha, Sérgio Cassiano e Maurício Badé em show recente em São Paulo. Fotos: José de Holanda/Divulgação

Antes desse reencontro, eles precisaram fazer uma espécie de “lição de casa”: ouvir os três discos e levar para o ensaio as percepções que tiveram depois desses anos todos sem vivenciar o Mestre Ambrósio diariamente.

“A gente não fica se ouvindo, né? Então, é uma viagem da sua pessoa no tempo. É impossível ouvir esses discos sem fazer comparações e avaliar a caminhada e me perguntar se aquele do começo tá aqui agora. E foi massa chegar à conclusão de que tem um pouco de coerência no processo. De algum modo, eu venho falando as mesmas coisas nesses anos, o que pode ser um defeito, mas parece uma qualidade”, avalia Siba.

Cassiano entende os trabalhos que fizeram como um retrato do momento que não vai ser repetido nos shows da nova turnê. “É um som congelado, que não tem como mexer, mas você não é mais aquilo. Hoje, você não vai tentar reproduzir, porque parece que você vai estar se imitando. Eu vou fazer do jeito de hoje.” Para ele, os registros fonográficos do passado vão servir como referência. 

Se, antes, o Mestre Ambrósio tinha a intenção de se afirmar enquanto grupo musical, agora, não há mais a necessidade de provar nada. O intuito da turnê é celebrar. Com mais “cartas na manga”, o público pode esperar por apresentações em que músicos experientes e com afinidade distribuem melhor a energia e as experiências adquiridas ao longo desses anos no palco. 

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A cultura popular, ponto de partida do Mestre Ambrósio, sempre ocupou um espaço central na trajetória do grupo, mas também em muitos dos trabalhos que seus músicos desenvolveram depois da parada. Para Siba, naquele começo, havia uma ação “intuitiva e voluntarista” em relação ao que produziam, por acreditar na força, vitalidade e inteligência da cultura popular, crença que ainda se mantém presente no artista.

O que muda, porém, é o espaço que o cantor ocupa nesse processo: “No começo do Mestre Ambrósio, eu era um músico que vinha de classe média e que tinha uma aproximação com os processos da cultura popular, mas depois eu tive todo o movimento de aprofundamento de relação nisso. Hoje, eu percebo muito claramente que aquele deslumbramento que a gente tinha, aquela crença na beleza, tem um limite muito sério. É preciso, junto com essa crença, ter o entendimento de que é considerado popular, porque existem pessoas excluídas. E que não dá para não estar do lado da cultura popular sem entender que os processos de exclusão social são os mesmos processos que produzem a miséria”. 

Com o distanciamento temporal de quase duas décadas, o poeta avalia a existência de uma nova relação do Mestre Ambrósio com a dimensão atual da política brasileira. Se, naquele momento, ele considerava sua percepção mais ingênua e otimista, hoje, essa relação se tornou bem realista (e, se não, pessimista). “Há o entendimento de que é necessário estar ao lado das lutas dos movimentos populares. E, se você gosta do Mestre Ambrósio e não está desse lado, tem uma contradição impossível de resolver.”    

Odomiro Fonseca, historiador, professor universitário e fã da banda, destaca o teor político na obra da banda: “Eles sempre fizeram a gente pensar, até mesmo quando brincavam. Há uma política na arte deles que sempre existiu, mesmo quando não falam diretamente sobre o tema”. O historiador conheceu o Mestre Ambrósio através do primo Raimundo e se identificou de imediato, por considerar uma sonoridade nova, com um “espírito diferente”, já que as rádios tocavam mais rock nos anos 1990. 

Além disso, foi o primeiro disco que ganhou uma importância maior para ele, por trazer memórias afetivas do sertão paraibano, de onde é sua família. “Para mim, o Mestre Ambrósio é diferente, porque ele abraça do litoral ao sertão. E essa conexão foi ficando mais forte durante os momentos em que morei no Rio de Janeiro e em São Paulo. Havia um sentimento de pertencimento ao ouvir.” 

Também foi querendo se reconectar com suas origens que o cantor, músico e luthier Cláudio Rabeca conheceu o Mestre Ambrósio em 1999, quando morava em Florianópolis, Santa Catarina. Antes disso, havia passado dois anos no sul do Pará. Nos dois estados, trabalhou como técnico em estradas. Quando ouviu a rabeca do Mestre Ambrósio, tudo mudou: “Aquele som mais forte me puxou pelo coração e aí já virei fã. Ouvia muito os dois primeiros discos”. Na época, Cláudio tinha uma banda de forró em Floripa, chamada Cangaia. 

Junto com outro integrante, o músico viajou a São Paulo com demos que tinham umas quatro músicas para divulgar o trabalho. Ao pegar o jornal para conferir a programação cultural da cidade, ele viu que ia ter Mestre Ambrósio na gravação do programa Musikaos da TV Cultura no Sesc Pompeia. “A gente estava na fila para entrar para a gravação, Siba passou e a gente o parou, chamou pra conversar, deu uma de fã, deu uma ‘chaleirada’, aí entregamos o CD. Acho que nunca contei essa história pra ele. Aí você vê como o mundo dá voltas, porque eu vim para Recife para viver de música, comecei a tocar rabeca, muito pelo Mestre Ambrósio; e, hoje, já toquei algumas vezes com Siba, já emprestei rabeca a ele”, conta. 

Cláudio Rabeca, que usa o instrumento no nome artístico desde 2004, lançou Rabeca Brasileira em 2019, com produção de Nicolas Krassik, mostrando toda versatilidade sonora do instrumento.

Mais recentemente, a violinista e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Paula Bujes, começou a tocar rabeca. Ela explica que, diferente do violino, que passou por uma padronização na construção durante os séculos, a rabeca – ancestral do violino –  pode ser completamente diferente, dependendo das regiões onde se encontra no mundo. 

“A rabeca segue, em cada lugar do Brasil, em cada lugar do mundo, sendo o que a gente quer que ela seja. Isso me fascinou muito. Foi o primeiro ponto de libertação dessa escola erudita que é tão rígida”, diz. A musicista, natural de Porto Alegre, chegou ao Recife em 2013, antes de morar em algumas cidades dos Estados Unidos para fazer o mestrado e o doutorado. Em Pernambuco, começou a frequentar eventos da cultura popular. 

Ouvir o Mestre Ambrósio pela primeira vez despertou nela o interesse pela rabeca, que começou a aprender no começo da pandemia da Covid-19. Recentemente, Paula fez parte da construção de um dossiê para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que solicita o registro das matrizes tradicionais do forró como patrimônio cultural brasileiro. Sua contribuição, escrita em parceria com Fabiano de Cristo e Márcio Mattos, foi sobre o forró de rabeca. O bem ainda está em processo de registro, de acordo com o site do Iphan.  

Para essa pesquisa, ela entrevistou muitas pessoas da Zona da Mata Norte de Pernambuco, conheceu melhor o trabalho do Mestre Ambrósio, assim como o de Siba: “Siba, além de ter deixado esse registro fonográfico da época, em vídeos dele tocando, também deixou um trabalho que eu considero etnográfico, que foi o registro escrito sobre a rabeca em trabalho de iniciação científica, que ele fez na UFPE, em 1994, em conjunto com o etnomusicólogo norte-americano John Murphy, já falecido”. 

A pesquisadora observa que o modo com que o músico toca a rabeca influenciou e influencia muitos rabequeiros e rabequeiras no Brasil e no exterior, como Marcos Moletta (Rio de Janeiro/RJ), Marcelo Portela (Rio de Janeiro-RJ/Florianópolis-SC); Fabiano de Cristo (Fortaleza/Crato-CE); Cláudio Rabeca (Natal-RN/Olinda-PE) e Filpo Ribeiro (São Paulo-SP).

Siba está há muito anos sem tocar a rabeca como seu principal instrumento, mas passou com ela no braço mais de 500 apresentações feitas com o Mestre Ambrósio, o que proporcionou a ele estabelecer uma relação orgânica com o instrumento, retomada nesta nova fase. “Antes, a rabequinha que era pequena e bem levinha, ficou pesada no meu braço”, comenta. Durante a nova turnê, o músico está no processo de descobrir e reconstruir a relação com o instrumento. As rabecas presentes na turnê comemorativa são as mesmas daquela época, feitas por Mané Pitunga, citado em seu trabalho de iniciação científica em 1994.

Nele, o jovem Siba escreveu: “Este estudo sobre a rabeca gerou uma parte importante do repertório do grupo, denominado ‘forró pé-de-calçada’, que é uma interpretação da música dos antigos bailes de rabeca”. Escreve também que o trabalho musical do Mestre Ambrósio baseou-se, principalmente, na musicalidade do povo nordestino. “Da integração do conhecimento desta musicalidade às mais variadas linguagens musicais do universo dos seus integrantes, ocorre toda a elaboração musical.”

Paula Bujes se considera uma fã tardia da banda, mas assim que abriu a venda dos ingressos para o show no Clube Português, em outubro de 2022, já garantiu o seu, na expectativa de presenciar esse reencontro tão aguardado no Recife.   

***

O Mestre Ambrósio (1996) proporcionou não apenas viagens internacionais, como resultou na necessidade de mudança dos integrantes para São Paulo para cumprir uma agenda de shows. Primeiro, eles dividiram um flat por dois meses, enquanto cumpriam uma temporada de shows na Blen Blen (que virou KVA), em Pinheiros, São Paulo. Depois, dividiram uma casa por um ano na Rua Oliveira Peixoto, no Bairro da Aclimação.

“Era uma casa muito bacana. Cada um tinha um quarto, tinha local de ensaio, um quintal. Foi um momento memorável. A gente fez umas festas, uns encontros culturais muito marcantes, noites de viola. Siba estava em contato com muitos violeiros. Eu me lembro de noites com vários músicos tocando espalhados pela casa. O pessoal comentava: ‘Vai ter festa na casa dos Ambrósios’”, conta Helder Vasconcelos, que conheceu Siba na adolescência, na escola onde estudaram na zona sul do Recife. Um dos méritos do grupo, sempre destacado por Siba em entrevistas antigas, e, para este texto, é a diversidade social, cultural e econômica dos integrantes do grupo. Os seis moravam em áreas distintas da cidade e tinham vivências e origens diferentes. 

Os primeiros a se conhecerem foram Helder e Siba. Depois foi a vez de Eder “O” Rocha entrar no grupo. Os três primeiros formaram o Ambrósio Acústico. Em seguida vieram Mazinho, Badé e Cassiano. Mazinho conheceu a turma numa casa de carnaval em Olinda, em 1993, e foi convidado a tocar com eles em um São João em Caruaru, com o Ambrósio Elétrico. Depois chegou Badé, através de uma indicação. Tanto ele quanto Eder estudavam no Centro Profissionalizante de Criatividade Musical do Recife. Aí veio Cassiano para substituir Badé, que passou por uma cirurgia de emergência para retirada do apêndice. Entretanto, mesmo recuperado, o grupo concluiu que Cassiano também faria parte da formação definitiva do Mestre Ambrósio. 

Esse encontro representou muito para aqueles jovens que realizavam o sonho de viver de música, enquanto reafirmavam suas identidades como pernambucanos e nordestinos. Mazinho diz que a parte mais interessante das viagens foi a oportunidade de conhecer culturas diferentes. Dois momentos que deram a ele a dimensão do que o grupo estava realizando em 1996 foram: a ida à recente capital da Eslovênia, reconhecida pela União Europeia em 1991; e uma placa na cidade da Guarda em Portugal. “A gente estava tomando uma cerveja, quando eu vi a placa, tinha escrito que a cidade tinha quase 800 anos. E eu pensei: ‘Recife não tem nem 500’”, conta, admirado com o fato. 

A experiência de tocar em 19 cidades japonesas, durante duas turnês, 2002 e 2003, também foi recorrente nas memórias mais marcantes dos músicos. Siba guarda ainda outra, que pode ser considerada o extremo do que viveram no Japão. “No começo da nossa estrada, a gente percorreu a Mata Norte e a Mata Sul fazendo shows com estrutura muito simples e foi ali que a gente realizou uma necessidade muito profunda de testar se a banda comunicava nos contextos realmente de cultura popular. Essa percepção de que a banda tinha potencial de falar para todo mundo, o país inteiro, começou a sair dali.” 

***

Não há garantias quanto ao que vai acontecer no palco neste dia 7 de janeiro, no Clube Português do Recife, mas a expectativa é grande. Realizei entrevistas em outubro de 2021 e a empolgação já estava presente. Odomiro, que conheceu o Mestre Ambrósio através do primo, contou que Raimundo se organizou para ficar mais tempo no Recife, depois das festas de final de ano, para os dois irem ao show. Paula Bujes e Cláudio Rabeca também aguardam com entusiasmo. Nos primeiros shows, em São Paulo, houve o saudosismo do reencontro com o público dos anos 1990 e um retorno positivo das novas gerações que nunca tiveram a oportunidade de assistir a um show dos Ambrósios.  

Helder Vasconcelos explica que cada show vai mudando um pouco e que essa é a grande magia de quem vive no palco: ter a possibilidade de viver o presente com uma intensidade muito grande. 


Foto: José de Holanda/Divulgação

Sobre o show do Recife, Siba diz: “Recife é sem palavras, né? Aí realmente vai ser uma coisa louca. E eu não sei nem o que esperar”, respondeu animado em um áudio no WhatsApp, quando questionado sobre a expectativa para a apresentação na terrinha.

Esse não saber ansiando por algo positivo e essa empolgação para o retorno ao Recife se deve à relação com o público e a história dos Ambrósios com a cidade, onde tudo começou. Outro fato que o cantor considera relevante é que em Pernambuco a banda está além do rótulo de “alternativa”, de parte do Movimento Mangue, mas como um grupo que consegue estabelecer relação com públicos diversos, de classes sociais diferentes. Por isso, acredita que o público no Português vai ser diferente de outras cidades do país. 

A turnê do Mestre Ambrósio tem previsão de rodar o Brasil durante 2023. Um ano onde há a esperança de que as lutas defendidas pela banda sofram menos ameaças no país. 

O retorno do Mestre Ambrósio parece reatualizar o que os garotos reivindicavam na década de 1990: a valorização do Nordeste, da cultura popular, da alegria como modo de estar no mundo, e de uma visão menos colonial do Brasil. Se, naquela época, havia uma visão mais “ingênua” de todo o contexto e da importância de trabalho realizado para a cultura brasileira; 30 anos mais tarde, com ajuda do tempo, há a consciência de que pensar a cultura popular no Brasil é pensar em uma vanguarda que se articula e luta constantemente por espaço e dignidade de se afirmar enquanto gente.

PAULA PASSOS, jornalista.

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