De passagem pelo Recife, onde também participou de leitura dramática no Reside, ela conversou com a Continente sobre suas inquietações criativas, sua “constelação” autobiográfica e seus futuros projetos. Uma interlocução onde é possível perceber a base de seu trabalho que permite realizar, principalmente em Stabat mater, um “procedimento arriscado de autoexame, espécie de vivissecção, que desloca os lugares imaginários e sociais da mulher, atravessados por ideais de maternidade, santidade e abnegação. O disfarce e o desmascaramento, a teatralidade e a performance, o encenado e o real, indiscerníveis, são procedimentos que visam à profanação, que para Giorgio Agamben é a “tarefa política da geração que vem”, como destaca a pesquisadora e crítica brasileira Silvia Fernandes.
Com forte influência da artista espanhola Angélica Liddell, sua trajetória inicia-se ainda na adolescência, no Teatro Escola Macunaíma e, posteriormente, na Escola de Artes Dramáticas de São Paulo (EAD-SP). É neste último espaço onde se une ao Grupo XIX de Teatro, com o qual estreou espetáculos como Hysteria, Higiene e Arrufos, marcos do teatro brasileiro do início deste século.
Em 2008, Janaina decide trilhar uma cena marcada pela autoralidade, iniciando um processo de distanciamento do coletivo, reconhecendo a necessidade de aprofundar inquietações no campo dos conteúdos e da linguagem.
A vida atravessa a arte e o fim do relacionamento de sete anos com o músico e filósofo Felipe Teixeira Pinto torna-se o ponto de partida para Festa de separação (2009), um documentário cênico a partir de registros em audiovisual de festas promovidas pelo casal para celebrar a ruptura amorosa. Uma obra que se debruça sobre o tema do amor contemporâneo e das práticas amorosas no século XXI, tendo o término de seu relacionamento como um motivo capaz de gerar uma dramaturgia heterogênea que mescla filosofia, literatura, escrita pessoal, projeções em vídeo e canções, como nos avisa o programa da peça.
É ainda durante o processo criativo de Festa de separação que Janaina dá novo passo rumo ao território vigoroso que viriam a se tornar suas recentes criações. Desdobrando sua pesquisa em torno do teatro documental, inicia um trabalho que duraria sete anos para estrear, vasculhando uma infinidade de bilhetes que trazem frases escritas por seu pai, que sofreu uma traqueostomia e perdeu a capacidade da fala. Uma busca por encontrar a figura paterna, Conversas com meu pai (2014) é uma “tentativa de dizer o indizível ao enfrentar o delicado tema do incesto”, como afirma a artista.
Tal como um profundo arquivo em que a capacidade de busca é proporcional ao surgimento de novas questões, Stabat mater (2019), obra posterior, é fruto de uma determinada ausência: “Onde estava a minha mãe, a MÃE, durante esses anos todos? Onde ela se posicionava nesse conjunto de imagens produzidas por mim sobre essa relação pai e filha?”, indaga na encenação.
À procura de respostas, a artista cruza com o texto teórico Stabat mater (em latim, “estava a mãe”), da filósofa búlgara Julia Kristeva, que a faz levar aos palcos o conceito de abjeção – movimento que traça as fronteiras entre o eu e o outro. Criada a partir de experiências coletivas junto aos núcleos de trabalhos intitulados Feminino abjeto 1 (2017) e Feminino abjeto 2 – O vórtice do masculino (2018), a peça Stabat mater “expõe” Janaina em cena acompanhada por sua própria mãe e por um ator pornô. No espetáculo, ela tensiona os limites da representação no teatro e articula temas historicamente inconciliáveis como maternidade e sexualidade, tendo o terror e a pornografia como bases estéticas – este último elemento central para sua mais recente criação, História do olho: um conto de fadas pornô-noir (2022).
Da garota que passou pelo teatro-empresa, infantil e até espírita, uma vida intensa de teatro nos anos iniciais “sem critérios”, como faz questão de assinalar, podemos hoje encontrar uma profunda investigadora dos limites da performatividade. Não à toa, ela aponta nesta conversa que sua próxima criação navegará pelas noções de metaverso e das experiências oníricas, a partir dos limites da consciência, das bordas estendidas.
É neste conjunto de obras capazes de nos interessar pelos lugares de ambiguidade que percorrem, pelas contradições postas em cena e pelo convite a permear lugares sombrios que a artista tem navegado. Uma espécie de front armado contra o conservadorismo que assola o país e que recorrentemente apela à noção dos bons costumes.
Cena de ‘Stabat mater’, em que a atriz e diretora leva sua mãe ao palco.
Foto: André Cherri/Divulgação
CONTINENTE O ano de 2009 pode ser lido como de virada em sua trajetória. Um momento em que você inicia um distanciamento de uma cena coletiva, protagonizada junto ao Grupo XIX e passa a estabelecer uma voz autoral. Quais seriam os marcos dessa guinada estabelecida por você?
JANAINA LEITE É de fato em 2009 que inicio simultaneamente o processo dos espetáculos Conversas com meu pai e Festa de separação. Eu começo a perceber que neles tinham algumas questões que não caberiam completamente ao grupo, algo muito na base da intuição, a partir de coisas que me encantavam, como o cinema documentário, as artes visuais, coisas que eu nem sabia nomear direito o que era… a possibilidade de trabalhar, por exemplo, a partir da negação da ideia de personagens, de trabalhar a partir de documentos próprios, uma dimensão mais performativa da cena… tudo isso que teria menos a ver com o teatro e mais a ver com a influência dessas outras linguagens. É nesse momento que faço uma guinada para uma cena dita “documental”, uma nomenclatura que até acabei adotando por um tempo como possibilidade de abrir um campo de estudo, prático e teórico, que acabou por resultar no livro Autoescrituras performativas: do diário à cena, na criação de laboratórios, oficinas.
CONTINENTE E o primeiro trabalho em que algo se concretiza é o Festa de separação. Nele, o que surge primeiro? Um desejo por investigar outros universos de composição no teatro ou o fato concreto da separação?
JANAINA LEITE Eu diria que um pouco dos dois. A separação em si deflagra um movimento reflexivo que, em primeiro momento, interessava ser respondido a partir de uma obra audiovisual, porque o Felipe (Teixeira Pinto) trabalhava muito com vídeo. Começamos a fazer uma espécie de documentário de uma viagem de separação contada na peça e trouxemos a linguagem audiovisual que já era muito forte na relação, pois cotidianamente filmávamos muita coisa. O projeto se inicia com dois materiais de base: a própria separação e uma palestra que o Júlio Groppa Aquino (professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo) nos deu durante o processo de criação do Arrufos (do Grupo XIX) sobre o amor contemporâneo. Essa palestra me deu a chave... Eu pensei que se juntasse esse pensamento filosófico com o material do Festa poderia dar um jogo no teatro. E essa junção da teoria com o íntimo seguiu para sempre, o Stabat é feito disso explicitamente…
CONTINENTE Eu lembro o impacto que a obra causou, muito explicada pela ausência dessas experiências no Brasil.
JANAINA LEITE Sim! Tinha um frescor… tanto que a peça possui como subtítulo “um documentário cénico”, em referência ao documentário fílmico. Esse processo acabou por ser muito diferente do que eu já tinha feito; e, sobretudo, a recepção do público, que gerava um frisson, um voyeurismo louco, acabou por transformar a própria peça para a gente. Fez-nos pensar sobre essa condição de performar uma experiência pessoal, durante muito tempo em cartaz (100 apresentações) e como em dado momento decidimos aposentar, por percebermos que já não existia o carácter performativo, que já estávamos reproduzindo uma coisa que já não cabia mais. Tudo isso foi gerando uma série de perguntas que eu fui tentar responder via um estudo teórico-acadêmico e também pela criação.
CONTINENTE E, olhando para trás, você consegue perceber ingenuidades no trabalho?
JANAINA LEITE Ah! Eu acho bem ingênuo em alguns pontos. Tem um lugar de experimentação de linguagem superinovador mesmo, todo o dispositivo das festas de separação que realizamos, um pressuposto ético-amoroso muito bonito, o modo como a gente, inclusive ingenuamente, se debruça sobre aquilo… mas, principalmente, uma perspectiva, afinal naquele momento tínhamos uns 20 e poucos anos, e de alguma maneira queríamos propor uma espécie de solução mágica. O Festa é extremamente apolíneo, um discurso de pessoas muito jovens achando que entendeu os relacionamentos amorosos… que podemos terminar uma relação de uma maneira não vilanizada. Eu vejo que tem um monte de coisa que a gente pôs para baixo do tapete em nome desse discurso, que foi a nossa maneira também de encarar esse fim. Apoiar-se nessa visão iluminada foi também a maneira de lidarmos com nossos próprios sentimentos, uma forma de permanecermos juntos por mais um tempo, não casados, mas como parceiros artísticos. Uma ingenuidade discursiva, apaziguadora, edificante sobre o fim, coisas que hoje eu rejeito muito como perspectiva de teatro.
CONTINENTE Enquanto isso, você já iniciava o processo do Conversas com meu pai. Um processo que durou sete anos para chegar aos palcos. Isso seria o resultado da dureza do material a ser encarado?
JANAINA LEITE Eu demorei muito para conseguir formular em voz alta o que eu queria fazer nesse projeto, o porquê se debruçar sobre esse material. Durante muito tempo a pesquisa tinha uma sinopse-fetiche: um pai que não fala, uma filha que começa a ficar surda, o silêncio… algo que daria um ótimo filme: silencioso e chique. Mas nunca foi isso, era muito mais sobre temas como trauma, incesto, violência doméstica, um conjunto de questões que estavam lá e que era muito mais difícil. No Festa falamos sobre o que sabíamos, sobre o que achávamos sobre a relação; o Conversas é sobre o que eu não sei falar numa relação. No Conversas, muito fruto da parceria com o Alexandre Dal Farra (dramaturgo), acabo por encontrar o lugar da ambiguidade, das coisas não são solucionáveis, a visita ao indizível. É também nessa fase que a psicanálise começa a chegar de uma maneira muito forte como uma referência. O Philippe Lejeune, professor e ensaísta francês, nos fala que na autobiografia não nos interessamos pelo que o autor sabe, mas pelo que ele duvida, sobre o tanto que se pode ser ambíguo e contraditório, sobre esse acesso fracassado, essa tentativa de criar uma imagem de si que vai ser sempre inacabada. Só conseguimos achar a peça quando a gente entendeu que era justamente uma peça que não se pretendesse a versão final, que botasse justamente a luz no fracasso, na tentativa de se fazer e não conseguir, na noção de que é terrível, horrível, mas também apaixonante. Por outro lado, e Stabat depois retoma isso, naquele momento eu não conseguia, como diretora e dramaturga, assumir esses lugares. Eu tinha medo de assumir a minha própria maneira de fazer dramaturgia.
Conversas com o meu pai foi uma colaboração com o dramaturgo Alexandre Dal Farra. Foto: Vitor Vieira/Divulgação
CONTINENTE E neste sentido a parceria com o Dal Farra trilhou qual caminho?
JANAINA LEITE Um caminho fundamental. Porque ali, quando eu não me sentia capaz ainda de devolver uma forma a essa história toda, ele me convidava, enquanto dramaturgo, a ter distância do material, coisa que para mim ainda era muito nova. Convidava a mediar a dimensão de minha exposição, do que realmente deveria ser relevante ou não. A primeira vez em que eu li o texto que ele escreveu eu tive uma emoção intensa, não no sentido de ver a minha história, mas de poder vê-la diferente, por outros olhos, de ver ela estranhada. A dramaturgia acaba por nascer através do diálogo. Na própria estrutura de três versões que eu já tinha escrito, ele consegue ouvir o que estava acontecendo ali. Ao mesmo tempo, e isso só se percebe com a distância do tempo, acabava por recalcar a minha dimensão autoral e isso tinha a ver também com uma relação de ser mulher, tem a ver com a relação de um dramaturgo reconhecido e eu não me reconhecer, a relação de marido e esposa trabalhando juntos… tudo isso também está na conta e o Stabat vai rever tudo isso depois.
CONTINENTE Tem sido recorrente uma geração de artistas que assumem dedicar sua trajetória artística à construção de suas autobiografias. Claro exemplo é a argentina Marina Otero, que há pouco tempo esteve no Brasil. Ao mesmo tempo eu ouvi uma declaração dela afirmando que, no fundo, nunca quis fazer um trabalho sobre a própria vida, nem possui interesse de ser uma referência em um determinado gênero….
JANAINA LEITE Eu acho que é um super-risco esse tipo de teatro. No meu caso, me interessa mais o estudo da linguagem, que passa por uma zona que é performativa, que é arquivística. Eu tenho muito mais uma sensação, na criação de uma cena ou dramaturgia, que sou uma montadora, como no cinema. Eu sinto que os materiais que estão mais ligados a essa dinâmica documental, como o Stabat, a possibilidade de encontrar os atores que trabalham com pornografia, de ter a minha mãe no processo, de trabalhar nos próprios arquivos, eu sinto que é o tipo de materialidade que me interessa. Tanto que, no História do olho, eu faço isso sem ser com a minha biografia, utilizo como material as performances junto à biografia do George Bataille e uma fábula que ele criou. Então, já não é mais sobre mim, sobre uma necessidade de continuar uma linguagem de teatro autobiográfico, mas de continuar com uma materialidade da cena que passa por dispositivos que aproximam as linguagens. É uma investigação de linguagem? Sem dúvidas. Se o conteúdo vai ser biográfico ou não, depende demais do chamado. Uma peça autobiográfica é algo que você não consegue deixar de fazer, ela fica feito um encosto, é sua própria constituição. O material da peça acaba por ser uma forma de elaborar tudo. Nesse sentido, as pessoas acabam por usar a palavra terapêutica, que é algo que pode ser muito ruim, que pode refletir uma teatralidade muito ruim, muito pautada pela autocomiseração, um heroísmo próprio, mas que também pode refletir um lugar em que esses trabalhos têm uma dimensão de tocar, de trabalhar a vida, tal como as grandes ficções. Virginia Woolf, García Márquez, Dostoiévski não trabalharam fantasmas, a questão é que a ferramenta, a modulação, ali, é a ficção. Eu gosto mesmo é da linguagem fragmentada do documentário, das invocações, das marcas, como bem diz a Suely Rolnik, que criam instância de desassossego e demanda trabalho.
CONTINENTE E o Stabat mater acaba por ser um mergulho intenso nos seus desassossegos. Um ato estético-político, por assim dizer…
JANAINA LEITE Comumente ficamos mais desconfortáveis diante de uma obra autobiográfica, porque você não encontra, minimamente, a proteção de uma fábula. Você fica vendo a pessoa exposta e isso poder ser absolutamente desconfortável, narcisista e terapêutico, no pior sentido. Eu não sou nem um pouco entusiasta da cena autobiográfica, a gente tem feito muitas coisas ruins assim, em nome desse fetiche, em nome dessa moda que se cria. Isso ainda foi colar diretamente na questão da representatividade, no pior sentido, porque a representatividade é o movimento completamente legítimo a ser feito em todos os espaços. Mas, ao mesmo tempo em que isso cola nessa onda autobiográfica, começamos a só poder falar de si, tornando quase uma impostura falar do outro. Quero dizer, com isso, que a junção do teatro biográfico com o lugar de fala pode gerar uma espécie de claustrofobia do eu. Acho que tem uma potencialidade de politizarmos, dando dimensão à importância das micropolíticas, fundamentais, por um lado, ampliando seu imaginário, e, por outro, ficarmos trabalhando uma cena reduzida, narcísica, autoindulgente, que atesta o meu como detentor da verdade deste lugar, sobre esta fala. Pode ser uma supercilada do nosso tempo.
CONTINENTE Você cita que o Stabat mater é a presentificação de uma ausência, particularmente a da sua mãe. Uma obra que atravessa seu momento de maternidade. Como foi convencê-la a aproximar-se dessas questões tão individuais suas?
JANAINA LEITE Eu acho que a minha mãe é o ponto mais nevrálgico do Stabat mater. É o ponto mais obsceno, mais polêmico, muito mais do que a própria relação com a pornografia. Não sei exatamente qual das versões do texto que começou a ficar muito evidente de que eu precisaria dela em cena. Logo cedo eu já tinha essa imagem da mãe ali comigo, justamente por causa da profanação desse espaço da pornografia. A aproximação foi muito passo a passo, porque eu tinha muito medo… Eu tive muita conversa com ela, explicando o que era o projeto, contando as ideias e aos poucos fui falando que pensava em tê-la comigo em cena. E quando eu formalizei esse pedido a resposta já era a esperada: “Ai, filha, por você eu faço”… Mas uma coisa importante de se dizer é que durante muito tempo eu fiquei tentando convencer a minha mãe a fazer a peça pelas mesmas razões pelas quais eu faço e não resultou. Isto foi uma supervirada das questões mais profundas, uma revisão desse papel feminino, como um ser abnegado do outro… Ela adora fazer a peça, é um lugar muito ingênuo, porque sei que ela nunca irá fazer um discurso como eu, mas ela está lá, gostando de fazer. Fomos mediando essa relação de acordo com o processo. Fui morrendo de medo até a estreia, achando que ela não iria aparecer para fazer a peça. Hoje é o nosso melhor espaço de relação, para minha total surpresa. Muita gente acha que é uma espécie de violência que faço com ela, que desenvolve visões superpesadas, que eu mesma evito que chegue nela, para que não seja ferida por alguns comentários.Tem gente que ama, que a vê como uma bastião da resiliência. Eu até brinco dizendo que eu a obrigo a fazer a peça e ela fala: “Sim, obriga mesmo!” (Risos.)
Em História do Olho – Um conto de fadas pornô-noir, Janaina fica fora da cena.
Foto: Caca Bernardes/Divulgação
CONTINENTE E, como todas as obras acabam por se relacionar, sempre revistando uma questão em aberto na anterior, você parte então para compreender melhor o universo da pornografia, correto?
JANAINA LEITE O Stabat abre essa cratera. Tá aí, outra ingenuidade! O Stabat é, em certa medida, ingênuo, porque eu não tinha nenhuma relação com a pornografia, tomei-a apenas como um dispositivo cênico para atritar os temas que eu queria trabalhar, para criar um programa performativo dentro do espetáculo, que tematizasse o que eu queria: maternalidade e sexualidade. Foi incrível me aproximar, conhecer os atores, mas também foi muito desestabilizador, entende? Só acessando a pornografia enquanto linguagem foi que eu pude, sobretudo, entender o porquê, de alguma forma mais profunda, eu tenha recorrido a essa linguagem e não a outra. Algo que envolvia o meu corpo, envolvia minha sexualidade. Uma inquietação pessoal que ficou muito, muito confusa.
Então eu decidi levar a boneca mascarada (personagem que perpassa o Conversas e o Stabat) para pornografia na vida real e isso foi dar no Camming – 101 noites. Tinha algo muito pessoal, muito interno, que eu não sabia se viraria algo artístico e, ao mesmo tempo, muito público, porque eu comecei a realizar oficinas, a questionar que linguagem seria essa, qual o limite do real e da ficção na pornografia, qual a dimensão, a efetividade de se agir diretamente na pulsão, no desejo. E começaram a aparecer cam girls, ator pornô nas oficinas. Depois fiz um núcleo de estudos online durante a pandemia, para estudar teatro e pornografia durante oito meses, criamos os Porno shows, que eram 300 pessoas online passeando por 10 salinhas no Zoom, rolando performances ultra porn. Em paralelo, eu fazia o Camming, supersolitária, duas pessoas apenas sabiam, durante 101 noites. Fiz um aprendizado básico com uma cam girl de como tudo funcionava, as questões relacionadas a shows coletivos, shows individuais, a noção de sustentar uma relação por muito tempo, porque você ganha por minuto.
Eu fiquei mais de 400 horas online nesta experiência, reunindo muito material que vai gerar um filme e um livro. Eu transcrevi mais de 2000 páginas de conversas com esses caras. Foi muito, muito lúdico também, porque fui reencontrando a performatividade de atriz, porque você precisa corresponder à expectativa do cara, começa a brincar que é a mãe dele, a cachorra...
Essas duas experiências, o Camming e os Pornos shows, vão resultar na História do Olho – Um conto de fadas pornô-noir. Mas, neste, já não estou mais em cena, fico de fora. Foi uma espécie de libertação do autobiográfico, porque passou realmente a ser a descoberta do jogo, da fábula, do lúdico, do jogo de cena, da representação, da máscara, todo um resgate de tudo isso depois ter ficado em um “real louco”. Um real louco para redescobrir a ficção. Acho também que foi um fim do percurso com a pornografia.
CONTINENTE E o que podemos esperar?
JANAINA LEITE A ideia de limite da cena, a ideia de uma obscena, tudo isso segue supervivo. Que corpo é esse que se expressa no limite? No limite da morte, da loucura? Que práticas tocam isso? De alguma maneira, creio também que essa questão de gênero também já me cansou muito, devido ao doutorado que realizei junto a isso tudo. No sentido de que não quero ser a pessoa do teatro de gênero, do teatro documental, não tenho nenhum interesse em pegar esses rótulos para mim. Eu estive nesses lugares porque estava fritando com essas questões; então, acho que já dei minha contribuição.
A questão é que eu tenho muita dificuldade em escrever fábulas, eu sou incapaz de escrever uma situação dramática. Então, ou vou usar de alguém ou vou procurar entender que conteúdos, que temas mais ou menos biográficos podem me servir, trabalhar a partir de atravessamentos pessoais em alguma instância e que tentarei sempre transpor para o estético, o ético, o político. Mas, no fundo, as pessoas não devem esperar na minha próxima peça um novo capítulo da minha vida.
PEDRO VILELA, encenador e curador pernambucano.