Curtas

Pearl

Continuação do terror ‘X – A marca da morte’, dirigido por Ti West, explora a origem da protagonista vilã

TEXTO Danilo Lima

03 de Janeiro de 2023

Atriz britânica Mia Goth interpreta o papel-título ‘Pearl’

Atriz britânica Mia Goth interpreta o papel-título ‘Pearl’

Imagem Christopher Moss/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 265 | janeiro de 2023]

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Raros s
ão os filmes que recebem uma continuação no mesmo ano de seu lançamento. Esse é o caso de X – A marca da morte, filme de terror que já é considerado um dos mais marcantes de 2022. Igualmente dirigido e roteirizado por Ti West, Pearl é um prelúdio que pretende explorar a origem desta vilã, que surge no primeiro filme. O longa estreou nos EUA em setembro e ainda não tem data para chegar nos cinemas brasileiros. Apesar disso, a grande demanda e a expectativa do público garantiram não apenas a confirmação de um terceiro filme da franquia – intitulado MaXXXine, já em produção – como maior agilidade nas negociações com distribuidoras pelo mundo.

Em 1918, muito antes de virar a antagonista que conhecemos em X, Pearl (Mia Goth) era uma jovem fascinada por filmes e que sonhava em se tornar uma dançarina famosa. Contudo, sua rotina no campo, convivendo com uma mãe controladora e autoritária (Tandi Wright) e um pai incapacitado (Matthew Sunderland), é árdua e limitante. Ela ainda tem que lidar com a espera do retorno de seu marido da guerra e um novo interesse no projecionista da cidade (David Corenswet). Essas relações e o senso de isolamento e frustração na vida fazem aflorar em Pearl tanto desejos íntimos inexplorados quanto uma forte predisposição à violência.

O ano da trama remete não somente ao fim da Primeira Guerra Mundial, mas também ao início e ápice da pandemia da Gripe Espanhola, cujo contexto se comunica diretamente com a concepção e produção do filme. As gravações de X aconteceram na Nova Zelândia durante a pandemia da Covid-19, mais precisamente de fevereiro a março de 2021. Isolados no país no período de quarentena, o diretor Ti West se juntou à protagonista Mia Goth para imaginar e corroteirizar como seria o passado da vilã do filme (também interpretada pela atriz, com o uso de próteses). As ideias frutificaram e eles venderam o roteiro do novo longa para a A24, que deu sinal verde para que os dois projetos fossem filmados em sequência. Felizmente, a aposta da produtora deu certo e ambos se tornaram sucessos de crítica e bilheteria.

Mas, afinal, o que Pearl traz de novo? Muitos dos cenários são reaproveitados, os objetivos de suas protagonistas são semelhantes e rimas visuais são espalhadas ao longo da história. Mesmo assim, os filmes parecem dois universos diferentes, graças às influências estéticas radicalmente opostas, mas bem diretas, de cada um. Enquanto X bebia no gênero slasher dos anos 1970 e do terror campestre independente como O massacre da serra elétrica (1974), Pearl homenageia a Era de Ouro de Hollywood, desde o pôster em estilo pintado até os letreiros. Ainda que se passe em 1918, a prequel recupera referências a partir da década de 1940, no auge das produções em technicolor.

Dessa forma, o mundo de Pearl, das nuvens aos figurinos, é intensamente vívido e colorido ao emular a técnica, e se beneficia também da simplicidade dos espaços e dos objetos centrais da trama, tornando-os ainda mais emblemáticos. Trazendo alusões bem explícitas a filmes como O Mágico de Oz (1939), o longa faz questão de rememorar essa realidade lúdica, inocente e agradável aos olhos somente para deturpá-la em seguida com o horror e a repulsa estranhos àquele mundo. Essa tática de homenagear e ressignificar através de uma estilização extrema – base do cinema maneirista – se tornou o maior diferencial da franquia em relação a outras atuais. Se alguns momentos parecem artificiais isso advém propositalmente do conhecimento claro da historiografia do cinema e da brincadeira com os clássicos.

Essa artificialidade, porém, aparenta vir quase exclusivamente da protagonista interpretada por Mia Goth, e isso não é um demérito. Enquanto os outros personagens agem com naturalidade, a figura da Pearl é deslocada por sua postura “inocente” e caricata, que dialoga com os cenários, deixando claro ao público que este se trata do mundo da Pearl, projetado e visto pelos olhos dela.

A quebra dessa postura acontece apenas em uma cena, talvez a mais memorável do filme. Ao longo de quase oito minutos, Mia Goth realiza um intenso monólogo no qual vêm à tona o remorso pelos crimes e os arrependimentos morais da vilã, de tal forma que podem até gerar empatia, ou pena, no espectador. A britânica, que curiosamente é neta da atriz brasileira Maria Gladys, é o centro das atenções do filme e traz um carisma capaz de sustentá-lo extraordinariamente, assim como garantir um espaço para a personagem na galeria do cinema de horror.

No entanto, pouco do terror de época é referenciado. No lugar, é possível traçar semelhanças a suspenses, como a mãe abusiva e fervorosa de Carrie, a estranha (1976), o surto egocêntrico pela fama de O que terá acontecido a Baby Jane? (1962), ou a forma de ocultação de cadáver de Psicose (1960). Contudo, o resultado de acompanhar a trama de enlouquecimento pelo lado da “vilã” – aos moldes de Coringa – reduz a tensão, a imprevisibilidade e o medo comuns ao gênero. Ao mesmo tempo, se portar como um terror, sendo muito mais um filme de desenvolvimento de personagem, acaba deixando motivações frágeis ao insinuar uma psicopatia inata e não construir solidamente o que ajudou a explodir toda a repressão interna da personagem.

Um ponto em comum à franquia que também é recuperado são os conflitos acerca da repressão de sexualidade. Se a tendência de produção pornográfica independente dos anos 1970 é uma questão central na trama de X, que contrapõe a potência sexual da juventude e da senilidade, o tema aparece em Pearl apenas num bizarro ato íntimo de descoberta e na exibição pelo projecionista de um proto pornô mudo ainda proibido na época, sem terminar por cumprir grandes papéis narrativos que não seja conectar as obras.

Em um ano com diversos lançamentos de terror bem recebidos, Pearl se destaca por sua estética vintage e pela nítida paixão cinéfila por trás da franquia de Ti West – elogiada até pelo diretor Martin Scorsese. Com um conto sobre repressão e desejo, o filme provoca, paradoxalmente, encantamento e asco na mesma proporção, à medida que somos fisgados pela carismática sordidez da protagonista. O sucesso da empreitada pode indicar a volta de um cinema autoconsciente, divertido e o surgimento de um novo clássico ao estilo vintage.

DANILO LIMA é jornalista em formação pela UFPE.

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