Resenha

Fabiana Moraes propõe jornalismo de contra-ataque

Em ‘A pauta é uma arma de combate’, jornalista traz reflexão e crítica sobre a prática profissional

TEXTO Rodrigo Alves

03 de Janeiro de 2023

Fabiana Morais

Fabiana Morais

Imagem Marlon Diego/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 265 | janeiro de 2023]

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Lentamente, o jornalismo brasileiro cruzou a linha de chegada do insano 2022 carregando os efeitos da batalha: todo lanhado, ferido, mancando, com dor nas juntas. Mas ainda de pé. E ciente – tomara – de que é preciso repensar estratégias e se reinventar todo santo dia.

Triste é o jornalismo encarcerado num manual de redação, muito mais preso à decoreba de um conjunto de dogmas do que aberto à reflexão constante. E nada contra os entusiastas das regrinhas, viu? Tenho até amigos que são. Se vamos de itálico ou negrito, aspas ou travessão, caixa alta ou baixa, ok, que se imprima no livrinho. O problema é quando ele deixa de ser um guia inofensivo e passa a encaixotar a reportagem numa dinâmica de fast food que, por um lado, incentiva o hábito de botar o pé na rua, mas também crava os rótulos de sempre: seja isento, seja neutro, seja objetivo, seja um robô na fábrica de notícias e, acima de tudo, não se comprometa. Assim caminha boa parte da imprensa: sujando os sapatos na lama como deve ser, mas lavando as mãos o tempo todo com o lencinho umedecido da imparcialidade. Feliz é o jornalismo que tem gente pronta para o contra-ataque.

Por que uma fatia considerável da nossa profissão se recusa a pensar sobre o que produz? Essa pergunta surge quando a gente mal avançou 20 páginas em A pauta é uma arma de combate (Editora Arquipélago, 2022, 368 pp), o sexto livro da jornalista, professora e pesquisadora Fabiana Moraes. Colunista do The Intercept Brasil, com larga experiência na imprensa e colecionadora de prêmios (incluindo três Essos), Fabiana é o cérebro mais iluminado que temos no Brasil hoje, nesse equilíbrio entre produzir reportagem e refletir sobre o ofício.

A pergunta que abre o parágrafo anterior, claro, tem um monte de respostas possíveis. Dá para arriscar que uma delas – só uma – nasce nessa fábrica de salsichas em que boa parte do jornalismo brasileiro se transformou. É preciso produzir cada vez mais e com mais velocidade – o tipo de meta que geralmente se atinge com menos pensamento crítico e mais reprodução de conceitos embutidos. Por isso o subtítulo do livro já indica em qual combate Fabiana se engaja: “Subjetividade, prática reflexiva e posicionamento para superar um jornalismo que desumaniza”.


Editado pela Arquipélago, livro traz a íntegra de três reportagens
da autora. 
Imagem: Divulgação

A linha de montagem da fábrica ajuda a empurrar repórteres, editores & Cia. para essa desumanização, mas o buraco é muito mais embaixo. Não é só uma questão prática. O que Fabiana afronta é um jornalismo colonizado, que intencionalmente usa filtros automáticos para cobrir – ou não cobrir – uma parte enorme da população, formada por pessoas pretas, indígenas, pobres, trans, periféricas, mulheres vítimas de violência. Um jornalismo que olha sempre do mesmo jeito uniformizado para os estados da Região Nordeste ou para os países do continente africano. As páginas do livro expõem exemplos e mais exemplos desse tratamento, seja em manchetes de portais, capas de revistas ou prints de redes sociais.

Aliás, logo de cara vou abrir um breve parêntese de reflexão pessoal, porque é isso que Fabiana propõe, e um dos exemplos me atingiram em cheio. Ainda no primeiro capítulo, o livro reproduz algumas matérias sobre a tenista russa Maria Sharapova, que chegou ao topo do ranking mundial em 2005. O foco dos veículos ali não era nos feitos esportivos da tenista, mas nas celulites que as fotos revelavam em suas pernas. Poucos anos depois, eu trabalhei como editor de Esportes Olímpicos em um grande portal, e ainda era comum encontrar matérias exaltando aspectos estéticos das atletas – as mulheres, né? Com os homens, era diferente. Na cobertura da Olimpíada de Pequim, em 2008, os portais esportivos brasileiros tinham selos do tipo “Musa do Dia”. Como editor, eu poderia ter questionado, poderia ter me oposto, poderia ter ao menos levado à chefia a intenção de romper aquele padrão de audiência apelativa. Mas tudo passou batido. Hoje, mais de uma década depois, eu olho para trás com vergonha da minha omissão naquela fábrica de salsichas onde cada clique importava muito – e o respeito, nem tanto.

Fabiana enfileira amostras de coberturas estereotipadas, como uma capa da revista Veja sobre a fome na Região Nordeste expondo o rosto de uma criança ao lado da frase “Ainda bem que eu não tenho de comer calango”. É o que ela chama de imagem-bumerangue: o modo recorrente como os habitantes de um determinado local são representados pela imprensa.

Poucas páginas depois, aparece uma coleção de nove capas da americana Time, retratando a África como um vaivém eterno entre a agonia da população com fome e o exotismo dos animais selvagens. Assim, o jornalismo passou muito tempo emparedando lugares ou pessoas a partir de filtros estabelecidos por uma sociedade racista, misógina e preconceituosa.

Esse olhar enviesado está aí até hoje, com a diferença de que a vigilância muitas vezes força o mea-culpa. Fabiana lembra o editorial da revista National Geographic, sob o título “Por décadas, nossa cobertura foi racista. Para superar nosso passado, temos que reconhecê-lo”.

Esse tipo de reflexão pode vir diretamente da audiência, como aconteceu com a GloboNews no episódio – também citado no livro – do programa Em Pauta sobre racismo. Criticada nas redes sociais por montar uma bancada apenas com profissionais brancos para debater os protestos do movimento Black Lives Matter após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos em 2020, a emissora levou ao ar uma edição especial só com jornalistas negros: o apresentador Heraldo Pereira e as comentaristas Flávia Oliveira, Aline Midley, Maju Coutinho, Zileide Silva e Lílian Ribeiro.

A realidade das redações brasileiras passa tão longe de um ideal de diversidade, que, para montar aquela bancada, a GloboNews precisou fazer uma ginástica de funções. Flávia Oliveira era a única pessoa negra em todo o quadro de comentaristas da emissora – as demais atuaram como comentaristas no Em Pauta especial sobre racismo, mas exerciam no dia a dia funções de apresentadora ou repórter. O debate foi ao ar, sob merecidos elogios e em meio a promessas de reestruturação – como a incorporação de Flávia e Zileide no quadro fixo do programa.

O tamanho do abismo em que nos metemos fica evidenciado quando notamos que hoje, mais de dois anos depois daquela noite, nada mudou: Flávia ainda é a única pessoa negra entre os comentaristas da GloboNews. Fica nítido que, ao menos na grande imprensa, as ações de diversidade quase sempre são motivadas por críticas e apontamentos pontuais, e não por uma real consciência de que é preciso ter quadros mais diversos e inclusivos, como – ainda bem – vemos com mais frequência em veículos independentes.

Fabiana explica, logo de cara, que o objetivo do livro não é sepultar a objetividade no jornalismo. Uma prática de subjetividade não exclui a importância de ações objetivas, como o rigor na apuração e os preceitos éticos que devem ser seguidos sem concessões. O que ela critica é que se use o manto da objetividade em busca de uma posição isenta e cômoda, que evita a todo custo se posicionar – e aqui não estamos falando só de editoriais, mas da pauta, da reportagem, da apuração, etapas que deveriam se alimentar de um olhar crítico e subjetivo para saber quais caminhos tomar.

***

Um dos efeitos mais graves dessa objetividade acrítica da imprensa está apontado no livro com todas as letras: o avanço da extrema-direita no Brasil. A maneira como o ex-presidente Jair Bolsonaro foi elevado ao status de “mito” em programas populares de TV, quando ainda era deputado federal, transferiu-se para as editorias de política e economia durante a campanha de 2018. Seguiu assim ao longo dos quatro anos de mandato no Palácio do Planalto. Falas racistas, misóginas e homofóbicas foram naturalizadas sob o rótulo de “polêmicas”, e até a própria expressão “extrema-direita” foi evitada por muita gente, mesmo para caracterizar um presidente que defendia abertamente a ditadura e a tortura.

A repetição constante dessas falas na TV, no rádio, em jornais e nos portais tornou o discurso tóxico e violento mais palatável para o público, consequência de um mal que nos contamina há tempos: o jornalismo declaratório. As aspas pelas aspas, sem contestações, desmentidos ou contextualizações. Foi assim desde antes da eleição de 2018, com as ações da Operação Lava-Jato sendo noticiadas quase em ritmo de assessoria de imprensa, sem nenhum olhar crítico ou subjetivo.

Lembrando aqui – como se fosse preciso – que o jornalismo independente também é jornalismo. Veículos fora da mídia tradicional sempre tiveram um papel importante nesse aspecto, incluindo o próprio Intercept, que hoje abriga Fabiana como colunista. Na época, o pacote de denúncias conhecido como Vaza-Jato desconstruiu o discurso supostamente isento do Ministério Público e acabou tendo peso na decisão do Supremo Tribunal Federal, que considerou parcial o juiz Sérgio Moro.

A visão afiada de uma jornalista a partir da sua trajetória nas redações já seria o suficiente para dar peso à análise que ocupa a primeira parte do livro. Mas a Fabiana professora e pesquisadora acadêmica leva a discussão para outro nível. A incursão anterior dela no assunto – o ensaio de 74 páginas sobre subjetividade incluído no livro O nascimento de Joicy – Transexualidade, jornalismo e os limites entre repórter e personagem (Arquipélago Editorial, 2017, 175 pp) – se amplifica de forma avassaladora na nova obra.

O colchão teórico estendido para o leitor, além de bastante confortável, é uma homenagem a autores que se debruçaram sobre o tema e pavimentaram a estrada. De Muniz Sodré a Marcia Veiga – só para lembrar dois dos mais citados – a academia produz material de sobra para ferver essa discussão. Só falta o jornalismo aceitar esse presente no dia a dia.


Extra: Leia a Introdução do livro



Falando na jornalista e pesquisadora Marcia Veiga, que assina a orelha do livro e é autora do estudo Masculino, o gênero do jornalismo: Modos de produção das notícias, cabe pinçar aqui mais um detalhe que torna a leitura saborosa e provocativa. Quando se refere a pessoas de maneira geral, seja no plural ou em uma citação sem especificar o gênero, Fabiana muitas vezes subverte o que estamos acostumados a ler na língua portuguesa e adota como regra o feminino nos artigos, pronomes ou adjetivos: “Sozinha, a repórter, por maior que seja sua boa vontade…”, ou “Isso acontece tanto entre docentes e pesquisadoras quando entre estudantes já atentas às relações de poder no campo do conhecimento”.

Até no ato da escrita e na escolha das palavras, Fabiana vai desconstruindo padrões. Faz isso também ao expandir o conceito da sensibilidade hacker como um posicionamento reflexivo dos jornalistas para identificar barreiras dentro dos próprios veículos e encontrar modos de driblá-las. Um jeito de avançar por dentro do sistema para romper naturalizações, subvertendo o que o próprio veículo costuma produzir e fazendo com que o jornalismo deixe de ser um “amolador de facas” para discursos colonizados.

E qual é a arma de combate para atingir essa subversão? Ela, a estrela do livro: a pauta.

***

“É na construção da pauta que podemos materializar uma série de decisões importantes para o fortalecimento de um jornalismo posicionado”, escreve Fabiana. Essa tomada de decisão dá a repórteres, editores e chefes de reportagem a oportunidade de transformar as percepções do leitor, do espectador, do ouvinte, muitas delas enraizadas há décadas ou séculos. “A pauta pode ser o instrumento para fazer toda uma camada do que aparentemente era normal ou aceitável ganhar outro status frente à opinião pública.”

Nas primeiras 201 páginas, o livro entrega essa reflexão tão necessária sobre a subjetividade no jornalismo e o papel da pauta como contra-ataque aos padrões. Em resumo, “riscar reflexivamente essa subjetividade com nossos marcadores sociais, históricos, discursivos; marcar essa subjetividade (e objetividade) jornalística a partir de uma leitura crítica na qual não podem escapar escolhas e apagamentos atravessados por questões de gênero, classe, raça, territórios”.

Mas não termina aí.

A partir da página 202, Fabiana escancara a prática e se debruça sobre a própria produção para testar os conceitos desenvolvidos até ali. No livro anterior, O nascimento de Joicy, ela tinha feito algo semelhante, ao revelar os bastidores da premiada reportagem sobre uma ex-agricultura que procura o serviço público de saúde para fazer a cirurgia de redesignação sexual.

Em A pauta é uma arma de combate, a jornalista triplica a aposta. Fabiana destrincha o processo de elaboração da pauta de três reportagens, que também estão publicadas na íntegra ao fim do livro: A vida é Nelson (cinco histórias reais que parecem ficções de Nelson Rodrigues), Ave Maria (10 perfis de mulheres chamadas Maria e assassinadas por homens próximos a elas) e Casa-grande & senzala (o cotidiano de adolescentes e jovens exploradas sexualmente nas ruas de Recife).

Para quem gosta de jornalismo e boas histórias, é um privilégio ler em sequência essas três reportagens cheias de… potência e afeto, eu diria, mas sei que a autora não suporta essas duas palavrinhas tão batidas, então só um segundo que vou ao dicionário pescar uns sinônimos. Pronto, cheias de pujança e benquerença.

A leitura das reportagens não é fácil, alguns relatos são aterrorizantes. Mas o texto é primoroso, assim como é singular a oportunidade de acompanhar os passos que moveram uma das maiores repórteres do país no planejamento e na execução de três trabalhos tão relevantes. Mais que isso: ela não tem nenhuma cerimônia de desenvolver uma reflexão crítica e apontar o que teria feito de forma diferente se tivesse produzido aqueles textos hoje, uma década depois da publicação original.

Ao aprimorar o formato reportagem + bastidores + ensaio, que já estava em O nascimento de Joicy, Fabiana Moraes entrega mais um livro essencial para entender e repensar o jornalismo brasileiro. Leitura obrigatória? Não, o termo obrigatório lembra aquele manual de redação que tranca a gente num pacotinho de regras. Nada aqui é para engolir por obrigação. É um convite aberto. Um presente. Tomara que o jornalismo aceite.

E nem vou dizer qual é a palavra que fecha o livro na última página, fica o suspense. Mas a pauta é uma arma de combate, né? E Fabiana é isso. É combate até o fim.

RODRIGO ALVES, jornalista, autor do podcast Vida de Jornalista.

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