Artigo

Arquitetura de uma selva revelada

A arquitetura forense investiga os modos pelos quais a modernização destrói a biodiversidade

TEXTO NANDA MAIA
IMAGENS ABINIEL JOÃO NASCIMENTO

03 de Janeiro de 2023

Imagem Abiniel João Nascimento

[conteúdo na íntegra | ed. 265 | janeiro de 2023]

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“Quando o assunto é vida, o horizonte é atemporal”
Vandana Shiva

Perceptíveis numa posição distanciada do solo, os geoglifos são figuras de larga escala feitas no chão, tendo formas geométricas diversas. Como as valetas e muretas escavadas na Fazenda Paraná, no Acre, listadas pelo Iphan como Patrimônio Mundial. A identificação de geoglifos desse tipo aumenta ao passo que pesquisas arqueológicas e estudos forenses tomam conhecimento de intervenções dos povos originários na selva.

Ruínas que você já pode ter visto atribuídas a alienígenas são, na verdade, arquiteturas milenares que se mesclam ao ecossistema vivo da floresta. Associar os geoglifos a extraterrestres revela o delírio ocidental que invisibiliza as sociedades ameríndias, introduzido pelo homem-cis-branco heteronormativo e pelas potências mundiais que cultuam a dominação, o nascedouro.

Uma ficção que visa ocupar e subjugar o ecossistema através de um projeto agressivo de colonização, transformando-o em objetos de posse para o consumo sem limites, tal qual a recorrente invasão, desmatamento e genocídio contra os povos indígenas, seus territórios e simbologias, para fins de extração e exploração.

Vimos isso acontecer no ano de 2019 com um dos geoglifos de milhares de anos da fazenda Crixá, em Capixaba, no já citado sítio arqueológico do Acre, aterrado por máquinas retroescavadeiras para o plantio de milho, segundo reportagem de Altino Machado, escrita para a National Geographic Brasil, em agosto de 2020. Assim se concretiza o design da colonização, conforme se refere Paulo Tavares a respeito do ideal de modernização que destrói a biodiversidade pela manipulação máxima de recursos naturais.

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, Tavares criou a Selva jurídica (2014), junto com Ursula Biemann (Zurich), uma instalação audiovisual apresentada na 13ª Bienal de Artes Mediales (Santiago, Chile) que exibe a luta de líderes indígenas e cientistas em processos judiciais. Nela se destaca o povo Kichwa de Sarayaku, que venceu ao defender a floresta viva (ou Kawsak Sacha), em que a natureza é vista como sujeito, isto é, cidadã com direitos, e não palco de embates políticos.

Criador da agência autônoma, voltada à pesquisa e intervenção urbana, Paulo Tavares também é autor do projeto Memória da terra (2018), que investigou a remoção forçada dos povos Xavantes de seus territórios, investida pela ditadura militar na década de 1960, através do dito “processo de pacificação”, marcado pela retirada de povos indígenas de suas terras originais para que essas áreas pudessem ser exploradas.

Há, portanto, um projeto político e arquitetônico de território, no qual, “a destruição ambiental, em outras palavras, é produto do design”, segundo Paulo Tavares no seminário Arte Além da Arte, ocorrido em 6 de setembro de 2018, no V Seminário ARTE!Brasileiros: ARTE além da ARTE.

Se os arqueólogos investigam as civilizações analisando indícios físicos do passado, escavando sítios, em Memória da terra, as imagens é que passam a ser objeto arqueológico, uma vez que os povos indígenas carecem de vestígios para a sua memória material.

Assim, foi feita uma espécie de arqueologia das fotografias capturadas na época das invasões comandadas pelo golpe de 1964 contra terras indígenas, permitindo a reconstrução de um mapa das aldeias devastadas pelo programa estatal, tanto pelas fotografias como pelas novas tecnologias probatórias usadas na arquitetura. A exemplo da Aldeia Bö’u, na antiga terra indígena Marãiwatsédé, identificada no Mato Grosso, onde a vegetação viva revela uma arquitetura dos povos ameríndios que se confunde com a própria floresta.

Paulo Tavares publicou, ainda, Des-Habitat (2019), um ensaio visual com intervenções na revista Habitat, editada por Lina Bo Bardi nos anos 1950. Também coordenou o programa de mestrado do Centro de Pesquisa em Arquitetura, do campus de Goldsmiths, e lecionou Design e Culturas Visuais na Faculdade de Arquitetura, Desenho e Artes da Pontifícia Universidade Católica do Equador, em Quito. Sendo, ainda, colaborador do coletivo Forensic Architecture (FA), ou Arquitetura Forense; pesquisador do Canadian Center for Architecture (2018-2019) e cocurador da Bienal de Arquitetura de Chicago 2019.

Recentemente, Tavares colaborou para a FA na investigação Gold mining and violence in the Amazon rainforest, publicada na plataforma da Agência, em setembro de 2022, sobre a crescente prática ilegal de extração de ouro, encorajada pelas políticas públicas do governo Bolsonaro em territórios indígenas na Amazônia, acarretando a intensificação de atentados contra a Aldeia Palimiú, ao longo do Rio Uraricoera.

Com indicações de envolvimento do PCC (Primeiro Comando da Capital, São Paulo), o ataque à comunidade Yanomami será abordado mais adiante neste artigo, com mais detalhes, para exemplificar como a arquitetura forense realiza seu processo de pesquisa e análise nas suas investigações, denunciando um design colonial da modernização.

DESIGN COLONIAL DA MODERNIZAÇÃO
O documentário Martírio (2016), de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida, traz o tipo de narrativa que não costuma ser contada nos livros didáticos de História, preocupados em protagonizar enredos de heróis ou aventureiros europeus que desbravaram o perigoso mar e descobriram o Brasil, uma terra desconhecida, selvagem e desabitada.

“Despejaram muita gente do Juqueri (Mato Grosso do Sul), mataram metade, lá, mesmo. Também mataram muitos no Kaapi’irapoguasu. Mataram quase todo mundo. Levaram só o restinho para a reserva (indígena) Sassoró (MS)”, narra Emília Romero, no longa de quase três horas de duração sobre o genocídio de latifundiários, pecuaristas e fazendeiros locais contra os Guaranis-Kaiowás, etnia indígena à qual pertence Emília. “Os brancos são muito violentos”, conclui Emília, após narrar a sua história de chegada ao Brasil, exilada em decorrência da Guerra do Paraguai (1864-1870) contra a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai).

Emília Romero foi recebida pelo avô, que garantia a proteção da sua comunidade enquanto ele esteve em vida, conforme a Guarani-Kaiowá narra. Até iniciarem as invasões e ataques à terra indígena Jaguapiré, também habitada pelos Guaranis. O documentário, então, registra algumas das reapropriações de terras indígenas.

Em Martírio, durante as filmagens de reintegração de posse de uma área na cidade do Jaguari (MS) pelos Guaranis-Kaiowás, Carelli aproveita a escolta policial para entrevistar o fazendeiro invasor das terras indígenas retomadas. O advogado do fazendeiro é o primeiro a trazer as suas alegações, enquanto segura o livro Ciclo da Erva-Mate em Mato Grosso do Sul 1883-1947 (1986), organizado pelo Instituto Euvaldo Lodi, como prova da inexistência de povos indígenas na região.

O homem lê um trecho da obra na qual se decreta a autorização da colheita de erva-mate em terrenos devolutos, na divisa do Mato Grosso com o Paraguai. Em seguida, chama a atenção para o termo terrenos devolutos e argumenta que, caso aquele território de fato pertencesse aos Guaranis-Kaiowás, naquele livro (publicado por um instituto com foco na promoção de conhecimento da indústria e industriários), bem como no decreto, estaria escrito a expressão área indígena, ao invés de devoluto, justifica o advogado.

Tal alegação está longe de ser uma ingenuidade quanto à formação histórica e social do Brasil, mas, sim, uma estratégia discursiva e psicológica consciente que visa o apagamento de seus inimigos, amplamente empregada pelo patriarcado colonizador. Emaranhando-nos na sua armação discursiva, o advogado ainda cita o recorte histórico ao qual se dedica o livro para alegar que, desde a década de 1980, “já naquela época, não havia índio (sic)”. Os povos originários do Brasil resumidos a um pouco mais de seis décadas do ciclo de erva-mate.

Na vez do próprio fazendeiro dar a sua versão, ele cita seus 76 anos de idade e o fato de ter nascido e criado naquelas terras, reduzindo a existência milenar dos povos originários à cronologia setenária de homem branco. Complementa, ainda, que a área foi requerida ao governo após a devolução da terra pela Companhia Matte Larangeira, como álibi para a posse do terreno de 400 hectares. Questionado por Carelli sobre a presença de indígenas na região, o fazendeiro comenta, com desprezo, que “uns antropólogos fizeram um negócio aí”, o que teria acabado por permitir a reintegração de posse das terras devolutas aos Guaranis-Kaiowás.

Carelli insiste e traz a alegação dos indígenas sobre haver um cemitério, momento em que o fazendeiro responde: “Ah, eles falam... O que eles falam... Tem que provar se tem cemitério ou não. Não tem. Não tem cemitério de índio (sic). O negócio é esse. É que eles inventam as coisas”.

O que tanto advogado como fazendeiro invasor omitem nessa entrevista é que, conforme matéria de Bruno Satankevicius Bassi para a série de reportagens De olho no Paraguai, do portal De olho nos ruralistas, publicada em 8 de dezembro de 2017, a Companhia Matte Larangeira foi um empreendimento sustentado por mão de obra análoga à escravidão, tanto de camponeses paraguaios como dos Guaranis-Kaiowás, ao passo que eram impedidos de deixar os ervais e tinham como “pagamento” mercadorias da própria Companhia, do fundador Thomaz Larangeira.

Sobre o arrendamento das terras, advogado e fazendeiro também omitem que após a Guerra do Paraguai, citada por Emília Romero, o empresário Larangeira comprou uma extensa área para a exploração de erva-mate, valendo-se de influência política junto a uma das principais oligarquias do Centro-Oeste brasileiro, a família Murtinho, conforme complementa a reportagem. Foi a partir desse acordo político, diante de um Paraguai devastado pela guerra, que Larangeira recebeu do império brasileiro o direito de exploração da erva-mate no Mato Grosso do Sul, de acordo com Bassi.

Manobras políticas que permitiram o arrendamento de uma área com mais de 5 milhões de hectares, fazendo um baixíssimo investimento na aquisição, pela Companhia Matte Larangeira, durante a demarcação de terra entre a fronteira do Brasil com o Paraguai. Território Guarani-Kaiowá decretado (conforme traz o livro Ciclo da Erva-Mate), na época, como terras devolutas da União.

Contrariando o argumento do fazendeiro quanto a sua idade para justificar a inexistência de indígenas na região, no artigo 8.400 anos de ocupação indígena nas margens do rio Paraguai, publicado em Povos indígenas em Mato Grosso do Sul: História, cultura e transformações sociais (Editora UFGD, 2015), de Pedro Schmitz e Jairo Rogge, não só foi identificada a ocupação milenar de povos indígenas, como foram comprovadas duas formas de povoamento: uma mais antiga, que dependia da pesca, coleta e caça, enquanto a mais nova tendia ao cultivo, vivendo em terras mais altas.

Os pesquisadores pontuam, ainda, os sepultamentos como “um dos caracterizadores dos sítios (arqueológicos)”, fortalecendo o argumento dos Guaranis-Kaiowás sobre a existência de um cemitério nas terras invadidas. Isto é, a afirmação do fazendeiro invasor de que os índios inventam não corresponde à veracidade histórica do fato, logo, trata-se de uma difamação.

Há, pois, no padrão discursivo e psicológico do colonizador patriarcal capitalista e racista, uma política que visa difamar e ocultar informações para o apagamento de povos originários, na qual a arquitetura viva e natural da selva é substituída por uma visão monocultural da existência via o extermínio de qualquer ser que possa expressar a biodiversidade. Assim como agiram as retroescavadeiras na destruição dos geoglifos milenares da fazenda Crixá, no sítio arqueológico do Acre, para o plantio de milho.

Tanto o fazendeiro branco e seu advogado recorrem a estratégias ordinárias da estrutura colonial, baseada na lógica da omissão de informações para a distorção de fatos, a manipulação de verdades em benefício próprio, como para a difamação de suas vítimas. São algumas das práticas também patriarcais e capitalistas de eliminação do diferente, como ilustra a fala de Emília Romero sobre a perversidade do homem branco diante do extermínio planejado do seu povo, os Guaranis-Kaiowás, e demais etnias.

a PRÁXIS DA ARQUITETURA FORENSE
Ao passo que, no complexo rizoma das sociedades colonizadas, a própria estrutura nos fornece o antídoto contra sua toxicidade: os sobreviventes hackeiam suas ferramentas de destruição; além da própria capacidade regenerativa da Pachamama, moldando a sua arte. E se o sistema judiciário de provas também é utilizado como um dos artifícios de colonização para a defesa das violações, via o capital, é nesse território discursivo, psicológico e ideológico que o hackeamento precisa, também, operar.

Retomemos a Forensic Architecture como exemplo da maneira pela qual se opera essa subversão. Segundo a própria agência de pesquisa homônima, com sede em Goldsmiths, na Universidade de Londres, a FA produz e apresenta evidências arquitetônicas, por meio de processos legais e políticos. Tendo como finalidade investigar violações dos direitos humanos, assim como as cometidas por Estados, forças policiais, militares e corporações.

Um exemplo dessa atuação está na produção multidisciplinar de provas que tanto são capazes de revelar geoglifos, por exemplo, como identificar padrões comunitários nas distintas camadas vivas da selva que já foram habitadas. Ou apontar abusos contra os povos originários durante a modernização de fronteiras brasileiras pela ditadura militar, instaurada entre as décadas de 1960 e 1980.

Momento histórico em que projetos construtivos foram pautados pelo discurso modernizante de ocupar e integrar e implantados com a finalidade de domesticar, planejar e reprojetar regiões amazônicas, segundo contextualiza Paulo Tavares no ensaio Nas ruínas da floresta, escrito para a publicação educativa da 34ª Bienal São Paulo, primeiros ensaios (2020).

O crescente desmatamento iniciado nesse período sombrio, e potencializado pelo governo Bolsonaro, é citado pelo arquiteto como uma política de apagamento. Expressão batizada pela Comissão Nacional da Verdade sobre os programas territoriais de urbanização da ditadura militar fundamentados pelo imaginário colonial de uma Amazônia intocada, selvagem e de natureza desumanizada, tendo como base científica o determinismo ambiental, provocando genocídio e desapropriação de povos indígenas de seus territórios.

Algumas das referências e argumentações trazidas neste texto, a partir do documentário Martírio e do relato da Guarani-Kaiowá Emília Romero, assim como as matérias jornalísticas sobre os geoglifos e a Guerra no Paraguai, além da publicação acadêmica sobre os povos indígenas no Mato Grosso do Sul, ilustram parte da metodologia aplicada pela arquitetura forense em suas pesquisas e análises multidisciplinares.

É o caso da já citada investigação Gold mining and violence in the Amazon rainforest, realizada pela FA em parceria com a The Climate Litigation Accelerator (CLX) e financiada pela Foundation for International Law for the Environment (FILE) e New York University (NYU), que utilizou como ponto inicial, de uma série de atentados e mortes, o tiroteio contra a Aldeia de Palimiú (RR), em maio de 2021.

Modelagem 3D, geolocalização, análises de padrões e imagens complexas, sensoriamento remoto e de informações de fontes abertas (ou Open Source Intelligence, OSINT) foram as metodologias empregadas na investigação, contabilizando, ao menos, sete provas, apresentadas na plataforma da Agência. A primeira delas é um registro audiovisual no momento do ataque a tiros à aldeia, vindos de um barco a motor que subia o Rio Uraricoera.

Nas imagens feitas da própria comunidade Palimiú, a investigação identificou características singulares do tipo de barco e sua rotina na região, como dimensões e formato, sendo normalmente usado para o transporte de cargas e da equipe de mineradores, além de passar corriqueiramente pelas aldeias Yanomami.

Já o segundo vídeo analisado foi republicado no portal Amazônia Real, originalmente postado nas redes sociais dos homens armados que fizeram o registro, associados a membros do PCC, comando apontado pelo vínculo crescente com a mineração em terras indígenas. O terceiro vídeo, também feito pelos próprios mineradores, registra o momento em que descem o Rio Uraricoera e passam pela Aldeia Palimiú.

Já o quarto vídeo corresponde ao segundo ataque à aldeia, no dia 11 de maio (acontecendo no dia seguinte ao primeiro ataque, com o mesmo tipo de barco identificado no primeiro incidente), estando presentes, no momento do tiroteio, tanto a polícia como Júnior Hekurari, presidente do Conselho do Distrito Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY).

A investigação contextualiza que os ataques coincidem com o rápido crescimento de mineração ilegal ao longo do Rio Uraricoera. Para tanto, como quinta prova, também identifica, por vista aérea, uma mina situada a 8 km ao norte de Palimiú, surgida em março de 2019, logo após a tomada de posse do governo Bolsonaro, com o crescimento aproximado de quase 12 hectares, um território de mineração em expansão, ao longo do Rio Uraricoera.

A sexta prova visa o desmatamento com a Corrida do Ouro, no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, analisado desde o início, via registro de imagens por vista aérea. Para tanto, foi utilizado o sensoriamento remoto no qual se identificou a lógica de expansão, a partir do rastreio da vegetação verde e do solo exposto, devido ao desmatamento, um indicador de mineração, segundo contextualizam os investigadores.

Na linha do tempo apresentada, demonstra-se que entre os anos de 2016 e 2017, a mineração começou a crescer novamente. Passando a se expandir, ao longo do rio e com padrão descentralizado no ano de 2018, ano da eleição de Bolsonaro. Com a taxa de crescimento aumentando rapidamente a partir de 2019.

Monitorada anualmente pela investigação, identificou-se que, entre 2019 e 2022, a área de mineração dobrou, crescendo quase 400 hectares, o equivalente a 560 campos de futebol. Os investigadores sinalizam, ainda, o provável despejo de mercúrio tóxico no rio, por meio de análise de imagens de satélite, escoado das minas que crescem não mais limitadas por área, desde então. Contaminando, com isso, o ecossistema do lugar e o fornecimento de água das Aldeias Yanomamis.

Outro padrão identificado pela investigação, a sétima e última prova substancial, são as pistas ilegais de pouso, visto que o acesso a esses locais ocorre ou pelo rio ou pelo ar, caracterizadas pelos investigadores como “um indício de princípio de mineração iminente nas proximidades”. De modo que vários exemplos de imagens comprovam a relação entre as pistas de pouso e os focos de mineração.

O ataque ao qual a investigação da Forensic Architecture se dedica é apenas um de outros incidentes que foram relatados somente na comunidade Palimiú, em 2021, com registro de mortes. As terras indígenas Waikás, também pertencente ao povo Yanomani e citadas na investigação, concentram o maior local de mineração ilegal de ouro. Onde aconteceu um dos ataques mais brutais, no qual uma menina indígena de 12 anos de idade foi estuprada e morta por garimpeiros, na comunidade Aracaçá.

Dentre as provas jornalísticas encontradas pela investigação estão as diversas matérias que tratam da adoção de políticas públicas pelo mandato de Bolsonaro que incentivam a mineração de ouro em terras indígenas. Nelas foram encontradas quatro estratégias do governo, com as medidas tomadas: (i.) Limitar as agências ambientais; (ii.) Desinvestir recursos originalmente destinados para a proteção ambiental; (iii.) Reduzir multas por crimes ambientais; e (iv.) Legalizar a mineração em terras indígenas.

Antes do governo Bolsonaro, a mineração ao longo do rio cresceu 500 hectares. Desde a posse, dobrou com mais de mil hectares da Floresta Amazônica. Portanto, uma das conclusões da Agência é que o salto de violência na região está intrinsecamente ligado ao aumento da mineração, potencializado logo no início da presidência de Bolsonaro.

A investigação Gold mining and violence in the Amazon rainforest, feita pela FA, revela que o design destrutivo da colonização não se altera, seja contra os Guaranis-Kaiowás do Rio Paraguai, no Jaguaripé ou Jaguari, no Mato Grosso do Sul, seja no Rio Uraricoera, em Roraima, contra os Yanomamis, seja no século XIX, XX ou XXI: a modernização segue atropelando o presente com a máquina trituradora do futuro, aplicando as velhas estratégias coloniais de extração.

AUTONOMIA DA FLORESTA
O pensamento tomado pelo padrão colonial do patriarcado capitalista e racista não se sensibiliza, não ama, apenas mata deliberadamente. E seus defensores se ocupam de terras indígenas, portam armas ou as representam em gestos. Revelam sua perversidade sob muitas faces e gestos, e todas operam de acordo com as mesmas práticas da violência ou design da colonização: a exploração.

Conforme Paulo Tavares trouxe, o projeto de modernização se vale de uma compreensão contra a floresta e separada dela, vinda da cultura ocidental destrutiva e abusiva que urbaniza e entende o meio ambiente apartado do nosso meio de vida.

Portanto, o que a Forensic Architecture demonstra, para além de revelar ruínas, arquiteturas e sociedades que conviveram ou convivem no território vivo da selva, é desvelar, aos nossos olhos, o que por séculos as narrativas históricas nos ocultaram com a usual estratégia patriarcal de criar ficções para omitir, violentar, exterminar o que não é reflexo da própria imagem do homem cis branco colonizador.

O que os povos ameríndios convergem com a Pachamama e, agora, encontramos sob o nome de pensamento decolonial, assim como os estudos forenses na arquitetura estão descobrindo, é que podemos convergir com a floresta, porque somos a própria natureza, nada diferente ou distante dela: a vida é Kawsak Sacha. A floresta tem autonomia, tal qual nos ensina o povo Kichwa de Sarayaku.

O habitat humano não é apartado do habitat animal. Todes somos animais e floresta. Somos integrados, assim como é a arquitetura dos povos amazônicos que se interligam à cosmologia do buen vivir. E, pouco a pouco, a ancestralidade e a arquitetura da selva nos revelam narrativas que faltaram ser contadas nos textos oficiais.

Mas sempre estiveram na memória das muitas Emílias, silenciadas, ignoradas, e só agora resolvemos perceber. E que, por fim, não esperemos a chancela de mais um homem cis branco sobre algo que precisamos reconhecer.

NANDA MAIA, professora, mestra em Literatura (UFPE). Designer de publicações. Escreve, toca e compõe.

ABINIEL JOÃO NASCIMENTO, artista multiplataforma, pesquisador, bacharel em Museologia (UFPE, 2022). Membro do Coletivo de Arte Negra e Indígena – CARNI e do grupo de pesquisa DesAyiê: ferida colonial e dissolução de mundos.

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