Lançamento

Uma narrativa entre muitas possíveis

Leia trecho do livro ‘Uma história da arte’, de Carolina e Elvira Vigna, publicado pela Cepe Editora

TEXTO Carolina Vigna e Elvira Vigna

01 de Dezembro de 2022

Foto Tate/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 264 | dezembro de 2022]

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Apresentação

Carolina Vigna

Este livro deveria ter estado pronto em 2017, 2018 no máximo. Minha mãe começou a escrever em 2015, e até meados de 2016 conseguimos trabalhar verdadeiramente a quatro mãos. Com a internação dela e a rotina que toda família de paciente oncológico conhece bem, eu congelei. Ela faleceu em 10 de julho de 2017, deixando este último texto inédito, a ser concluído por mim.

Com o falecimento dela, terminar o livro tornou-se um peso incomensurável. O diálogo de escrever com outra pessoa é muito intenso. É ouvir a voz dela a cada instante. Peço a compreensão dos leitores pela demora. Eu só consegui retomar este projeto no final de 2019, com quase três anos de atraso.

História da Arte sempre foi um assunto que fascinou a nós duas igualmente. Eu segui carreira na área. Hoje somo bacharelado e licenciatura em Artes Visuais; pós em História da Arte; mestrado e doutorado em Educação, Arte e História da Cultura.

A parte 1 é este texto escrito, já desde seu nascimento, a quatro mãos.

A parte 2 é uma seleção de artigos. Muitos desses foram publicados no Aguarrás, um projeto que eu criei em 2006, para o qual minha mãe contribuiu. Vários desses artigos foram escritos já com um pensamento “a quatro olhos”, pois íamos juntas às exposições. Era o que fazíamos como programa de mãe e filha. Foi um hábito nosso durante muitos anos. Por acreditar que os artigos demonstram uma elaboração e a construção desse pensamento sobre arte, decidi incorporá-los a este livro. No fundo, são todos os textos parte de uma mesma continuidade de pensamento. A organização desses artigos é minha e de meu pai, Roberto Lehmann, e contou com a inestimável ajuda de Pedro Taam.

Uma história da arte se propõe a ser uma possibilidade, uma narrativa dentre muitas possíveis. É um pensamento em arte, não um livro de história. Não tem a intenção e muito menos a pretensão de ser algum tipo de guia. O livro não é, de forma alguma, a última palavra sobre o assunto.

A escrita é repleta de ironia. O objetivo mais amplo e megalomaníaco desta publicação é o da dessacralização da arte e de seus artistas. Entendemos a arte como uma das muitas formas de pensamento e que, portanto e por natureza, é mutável e passível de crítica e de novas visitas, novas interpretações.

A história humana não é linear, apesar de todos os esforços dos escritores e historiadores em narrá-la com alguma coerência. Alguns períodos são marcados por revoluções mais significativas do que em outros. Este livro atravessa a história a partir do recorte do interesse pessoal de duas autoras e, sem qualquer tipo de preocupação ou constrangimento, salta momentos, assuntos, artistas e obras que normalmente são consideradas relevantes. O livro não é completo e não se pretende ser.

Fizemos um esforço para tentar quebrar um pouco a visão eurocentrada, branca, hetero, cis e colonizadora que herdamos dos Gombriches da vida. Falhamos miseravelmente, mas saiba que temos vergonha disso. Desculpe.

Agradeço aos grandes professores que tivemos no caminho: Fernando Amed, Marcos Rizolli e Renato Brolezzi (in memoriam, professor de nós duas). Agradeço também a Roberto Lehmann pelo privilégio que é ter um pai assim. E, finalmente, agradeço ao meu filho, Roberto Vigna, meu beta reader, pelo apoio e pela ajuda com mais esse texto.

Parte 1: A quatro mãos

RUPESTRES, NADA PRIMITIVOS

Contextos históricos são questionáveis e orgânicos. Não apenas por não termos inventado (ainda) uma máquina do tempo mas principalmente por causa do “antes”. Sempre existe um “antes”. Os períodos Paleolítico, Mesolítico e Neolítico não são diferentes. Existe um “antes” chamado Pleistoceno que é, por sua vez, posterior ao Big Bang, ao multiverso e a outras coisas que a Física certamente ainda vai nos contar. Existem alguns estudos que apontam a existência de cultura em primatas não humanos, o que colocaria em questão o início antropocêntrico da arte. Aqui, entretanto, me limito aos conceitos existentes a partir do Neandertal. Comecemos, então, com a arte rupestre.

A forma mais primitiva de inserção da obra de arte no contexto da tradição se exprimia no culto. As mais antigas obras de arte, como sabemos, surgiram a serviço de um ritual, inicialmente mágico, e depois religioso. O que é de importância decisiva é que esse modo de ser aurático da obra de arte nunca se destaca completamente de sua função ritual. Em outras palavras: o valor único da obra de arte ‘autêntica’ tem sempre um fundamento teológico, por mais remoto que seja; ele pode ser reconhecido, como ritual secularizado, mesmo nas formas mais profanas de culto do Belo. (BENJAMIN, 1994, p. 171)

Na época em que morávamos em cavernas, o principal desafio era nos manter vivos. A arte rupestre tinha uma função mágica, e o seu principal objetivo era vencer a morte. Isso significava, grosso modo, conseguir comida e não virar comida.

Consideramos como surgimento da capacidade simbólica a nem um pouco exata data de 40 000 a.C., na passagem do Neandertal para o Cro-Magnon. Nosso ancestral pintava o bisão que queria caçar. Sua arte era a expressão e materialização de seu desejo.

Havia um desejo de permanência, tanto no sentido stricto, o de nos mantermos vivos, quanto no sentido simbólico, o de nos mantermos como existentes mesmo após a morte. E é aí, como sempre, que entra a arte. A arte rupestre era, ao mesmo tempo, ritualística/mágica (favorecer a caça etc.) e filosófica/ontológica (registrar a existência).

A arte rupestre cabia, majoritariamente, às mulheres. Setenta e cinco por cento das impressões de mãos, gênero de pintura muito popular na época (e precursor do estêncil e do airbrush), foram feitas por mulheres.

A arte rupestre tinha também, além das questões da caça e de permanência, funções xamânicas. Nessa época, de acordo com o arqueólogo Dave Whitley, as mulheres, tanto cis quanto trans, eram xamãs. Sim, já tínhamos pessoas transgênero nessa época, sossega.

Nunca mais desenhamos tão bem. De tempos em tempos um movimento artístico ou um artista específico declara ser ele o verdadeiro portador da essência da arte. Esse conceito de verdade (e de essência) muda muito, mas uma boa síntese é sempre uma boa síntese. E nisso nossos ancestrais eram os melhores.

Até mesmo o observador mais distraído é capaz de perceber que o movimento é representado na arte rupestre sem muita clareza. O pintor durante o Paleolítico era naturalista e pintava a partir de observação. E, com relação a patas correndo, não existia ainda a informação que apenas o quadro a quadro nos deu. Outro bom exemplo da falta que esta informação faz é o quadro Derby de Epsom, que mostra uma corrida de cavalos flutuantes. Graças a Eadweard Muybridge (1830-1904) e, logo depois, ao cinema, sabemos que os cavalos, mesmo a galope, mantêm pelo menos uma pata em contato com o chão e que, quando saltam, dobram as pernas para dentro. Ou seja, Théodore Géricault nos apresenta uma posição equestre impossível anatomicamente.

A arte rupestre, em uma licença poética, não deixa de ser um pouco como um espelho do cinema. O cinema inventa desejos a partir de imagens. A arte rupestre inventa imagens para criar o que era desejado. Hoje “vemos” as patas de um bisão em alta velocidade porque o cinema, principalmente, nos ensinou a vê-las. Em seu ótimo O guia pervertido do cinema, o pensador Slavoj Žižek (2006) diz:

O problema não é se nossos desejos se encontram satisfeitos ou não. O problema é saber o que desejamos. Não há nada de espontâneo, de natural, no desejo humano. Nossos desejos são artificiais. Devem nos “ensinar” a desejar. O cinema é a arte pervertida por excelência. Não te dá aquilo que deseja, te diz como desejar. [...] A imagem de uma pessoa parada em frente ao trem que passa lentamente é análoga à do espectador observando a magia da tela.

O ser humano deseja aquilo que acredita o libertar (da fome, da pobreza etc.), sendo esta libertação real ou não. Pouco importa, posto que, no momento de criação, a crença nessa possibilidade de liberdade é verdadeira.

No caso do homem pré-histórico, o problema mais radical a ser enfrentado era sua própria sobrevivência, e a caça era a forma de garanti-la. Os bisões iam para a parede na fé de que de lá para o estômago era um pulo. Continuamos a fazer isso: colocamos símbolos de paz em camisetas, pintamos palavras de ordem nos muros, tatuamos em nossa pele imagens que acreditamos se relacionar conosco, ostentamos símbolos religiosos em joias e bijuterias.

Minha dor é perceber / Que apesar de termos / Feito tudo, tudo, / Tudo o que fizemos / Nós ainda somos / Os mesmos e vivemos / Ainda somos / Os mesmos e vivemos / Ainda somos / Os mesmos e vivemos / Como os nossos pais... (BELCHIOR, 1976)

Não importa o que acreditamos que seja a solução para os problemas mais radicais que temos hoje: paz e amor, revolução armada, seja lá o que for. Infelizmente, entretanto, o símbolo da paz desenhado em uma mochila será tão eficaz quanto o bisão desenhado na caverna. Representamos tanto o sonho quanto o visível, assim como o homem dentro da caverna, desenhando o bisão que é tanto o bisão que vê quanto o que se espera que se materialize. Continuamos a nos agrupar para nos proteger: caverna, tribo, cidade, internet, tanto faz.

Parte 2: A quatro olhos
Organização: Carolina Vigna e Roberto Lehmann

TUNGA – LAMINADAS ALMAS

Elvira Vigna
Aguarrás, 22 de maio de 2006

No dia 20 de maio de 2006, sete da noite, aconteceu uma performance do Tunga num galpão do estacionamento do Jardim Botânico do Rio, o recém-inaugurado Centro Tom Jobim. Estava cheio e aqui vem uma dificuldade para continuar a frase. O hábito é dizer/pensar, cheio de gente que foi assistir. Mas não é isso. Ninguém assistiu a nada. Ou não só.

A recepção e a produção da arte aconteceram ao mesmo tempo e, aliás, só porque havia gente paca. A possibilidade de haver um momento artístico, isto é, de alguém dar uma parada e sentir/perceber/entender alguma coisa que fizesse a diferença entre o que esta pessoa era antes, o que ela achava que o mundo era antes — e depois, só poderia acontecer com gente paca. (A questão de dar uma parada, tomar o tempo de se permitir sentir/perceber/entender é uma coisa de que eu falo com frequência e é um dos motivos de eu gostar tanto de arte contemporânea. Ela é um breque contra o consumo, a rapidez, a superfície. Se você não der a tal parada não vai nunca entender nada, ganhar nada da arte. Dar uma parada é tudo que produtores de lixo não querem que você faça. Vai que você vire inteligente e pare de consumir as imagens que te empurram, mil a cada esquina, vitrina, tela.)

No Laminadas almas (o nome da exposição do Tunga) não éramos assistência, mas atores de nós mesmos, tanto quanto os sapos e moscas que nos olhavam, da mesma maneira como olhávamos para eles e para os sete dançarinos com asas de mosca e pulos de sapo; os artistas (Thiago e Matheus Rocha Pitta) que fingiam ser cientistas olhando moscas por um microscópio; e mais um baterista que fazia o som repercutir em vidros de laboratório alinhados perto do seu instrumento.

A ideia de sermos atores, além de componentes da assistência, foi induzida por duas maneiras. Primeiro havia a presença de bengalas, luvas e abajures, elementos cênicos de um jogo social deslocado no tempo. São um pouco antigos, um pouco distantes, fazem parte de um cenário possível se fingirmos ser o que de fato já fomos ou seremos, no próximo sarau, jantar fino. A segunda maneira é porque — como os dançarinos e artistas cientistas estavam misturados a todos nós, e como eles exerciam uma ação determinada, um script — éramos levados a caminhar os passos que caminharíamos de qualquer maneira, por entre moscas e sapos (eles também seguindo o seu script de um comer o outro e virar pele de bolsas e luvas), conscientes disso, nós também seguindo um script que inventávamos, um pouco na brincadeira, um pouco inseguros, a cada passo: iríamos ali para aquela sala ou nos deteríamos um instante na bateria? Muito bem bolado.

E agora um problema que não é bem um problema, mas faz parte da própria gênese da arte que aconteceu naquele dia. Ela não era um produto, ela aconteceu. A exposição (composta pelos objetos e as gaiolas de moscas e sapos) ficou por lá para quem quisesse entrar e ver, tipo exposição mesmo. E aí, quem foi no dia seguinte ficou só com uma metáfora — a da transformação de moscas em sapos e em luvas. Claro, transformação tem a ver com arte, mas, em comparação com a performance da abertura, é bem pouco. Há uma brincadeira de internet, um decálogo para que as pessoas aprendam a escrever.

O primeiro item é relativo a metáforas e diz: fuja das metáforas como o diabo da cruz. É como deve ter se sentido o sujeito que foi ver a exposição nas horas mortas que se seguiram à performance: dentro de uma metáfora e querendo fugir dela.

SE O LAUTREC PODE...

Carolina Vigna
Aguarrás, 29 de maio de 2006

Henri de Toulouse-Lautrec. Esta pobre criança era chamada pela mãe de petit bijou e usou vestidos até os 4 anos de idade. O cara não podia ser muito certo da cabeça mesmo. Para ajudar mais ainda na piração, ele sofria de uma doença que deixava seus ossos frágeis, mais tarde conhecida como doença de Toulouse-Lautrec, que o transformou num tampinha. Os amigos da boemia, mais tarde, iriam sacaneá-lo chamando-o de anão.

Lautrec era filho de pais separados, algo consideravelmente raro naqueles tempos — ainda mais na nobreza. É, o doido varrido era filho de aristocratas, famílias tradicionais nobres francesas. Chiquérrimo.

O primeiro professor de desenho dele foi um surdo-mudo chamado Princeteau, um pintor de animais cuja maior contribuição para a história da arte o fato de ter sido professor de Lautrec.

Até chegar a Paris e cair na farra, Lautrec era um pintor mediano, preso a conservadorismos bobos e frios. Chegando a Paris, ele ingressou no ateliê de Léon Bonnat, um pintor acadêmico que gozava de bastante prestígio na época.

Lautrec aconselhou Van Gogh a prosseguir com os seus estudos e tinha uma pinimba desgraçada com Degas. A história com Degas é muito engraçada: Degas sempre foi um modelo para Lautrec, sua inspiração e principal influência. Degas, por sua vez, admirava profundamente o trabalho de Lautrec. E os dois se odiavam. Mandavam recadinhos um para o outro de provocação, falando mal da roupa vestida na noite anterior e outras afrontas ainda menores. Reza a lenda que os dois eram amantes da mesma mulher.

Não é por nada, não, mas a noite parisiense nessa época deve ter sido divertidíssima.

Foi só em 1877 que Lautrec fez o seu primeiro cartaz. A litografia acabou se tornando a marca registrada dele. Lautrec foi o grande pai da ilustração publicitária. A partir dele é que a coisa realmente passou a ser levada a sério. Eu o considero o primeiro designer (e por isso este artigo está em “gráficas/design”).

Lautrec era grande frequentador de bordéis. Ele adorava pintar as prostitutas enquanto elas estavam aguardando clientes. Ele costumava dizer que elas não tinham a artificialidade das modelos profissionais e suas posturas corporais burguesas. Eu o entendo perfeitamente. Só não vou na Vila Mimosa desenhar porque não sou corajosa o suficiente.

Fotografia foi outra grande paixão para Lautrec. E ele fazia o que todo e qualquer professor de artes abomina: usava fotos como referências para seus desenhos. Todo, sério, t-o-d-o artista já fez isso pelo menos uma vez na vida, mas ninguém assume, é menos “nobre”. Se você puder usar modelo vivo, recomendo, a fotografia não te permite dar a volta no modelo para ver a textura de algo ou a luz de um objeto lá atrás nem te permite mudar o ângulo, enfim, é mais pobre sim. Mas aí, fala sério, duvido muito que um cliente vá aprovar o meu orçamento de ir desenhar ao vivo a Torre Eiffel, por exemplo. Existem situações em que a foto se faz necessária mesmo, não tem saída. Agora, dê sempre preferência ao modelo vivo, mesmo que seja a sua avó.

“Trata-se sempre do mesmo: tornar uma coisa melhor a partir da sua essência.” Henri de Toulouse-Lautrec

SUASSUNA, BISPO E O 16 DE JUNHO

Elvira Vigna
Aguarrás, 16 de junho de 2006

Juntar Arthur Bispo do Rosário a outro nordestino universal, Ariano Suassuna, sempre pode provocar algum risinho. Um era louco reconhecido, o outro o é menos. E aí a discussão envereda sobre onde passar a linha que dividirá uma arte feita com este propósito e outra, com outros. E mesmo aí a coisa complica, pois será difícil estabelecer o propósito conceitual independente das iluminogravuras, as imagens que cercam e formam os textos do dramaturgo e escritor que leva estes títulos com segurança até a Academia de Letras. O quanto de autonomia haverá na ilustração de uma ideia. E o quanto de ilustração de uma ideia haverá na arte do outro, aquele cujos únicos títulos eram os imputados por seus colegas de hospício. Pois se ambos tinham nas letras e nas linhas uma só unidade.

E, mais um enrosco. O propósito do produtor não determina a recepção de sua obra. Feitas ou não com a consciência que define o artista, as artes — de um e outro — são recebidas como tal, à maneira de tantas outras, de outros tempos e lugares, mágicas, utilitárias ou laudatórias, hoje experimentadas sem tais adjetivos. O caso é que ambos, mais do que nos dar sua visão de mundo, nos criam um. O mesmo, ou quase.

UM CONCEITO DETERMINANTE, O PODER

Se um formou um exército de bons, listando seus nomes no Manto da apresentação que seria apresentado a Deus no dia do juízo final, o outro formou, em suas iluminogravuras, uma coleção de escudos de armas, uma dimensão heráldica, a partir de contos populares nordestinos. O viés visionário, como sói acontecer, não exclui o gozo do roçar no poder, e se Bispo era o “xerife” da ala Ulisses Viana da Colônia Juliano Moreira, Suassuna foi nomeado em 1995 Secretário Estadual de Cultura pelo Governador Miguel Arraes. Gozo e dor, ambos vítimas tanto quanto agentes. Um, negro e louco, enfrentou as violências de um sistema, explicitadas pelo dr. Rodrigues Caldas, diretor da Colônia, que disse em seu discurso inaugural de 1920 estar pronto para lidar com “os delicados problemas atuais de higiene e defesa social pertinentes aos deveres do Estado para com os tarados e desvalidos de fortuna, do espírito ou do caráter, para com os ébrios, loucos e menores retardados, ou delinquentes e abandonados, assim como para com os indesejáveis inimigos da ordem e do bem público, alucinados pelo delírio vermelho e fanático das sanguinárias e perigosíssimas doutrinas anarquistas ou comunistas”.

Era esse o ambiente que não conseguiu prender Bispo.

Em carta a um médico psiquiatra, em 1945, Bispo diz: “o eletrochoque faz de mim um ausente que se sabe ausente e se vê durante semanas em busca do seu ser, como um morto ao lado de um vivo que não é mais ele”.

Suassuna enfrentou as violências de outro sistema, o do código de honra nordestino, que o fez órfão e que o destinava a uma luta de sangue, não fosse a mãe, que saiu da Paraíba com ele e seus irmãos para evitar a continuação da briga com a família de João Pessoa. Ao escrever, ambientou sua obra na ditadura Vargas (anos 1920, 1930) e escolheu publicá-la na ditadura militar (o Movimento Armorial nasceu em 1970, no governo Médici).

Caçoou de ambas.

Ele também.

Mas na comparação entre vida e obra dos dois, há apenas o aspecto mais superficial da questão do poder e, na gênese da criação, o que mais os une. Pois em ambos, embaixo da aparente estética militarizada ou quase, há a recusa a um poder que seria deles por direito, o da autoria.

Tanto em Bispo quanto no Romance d’A Pedra do Reino, o processo é o do diálogo com o entorno, o da assemblage. Ninguém menos autoritário do que o artista que pega textos de outrem, os seus próprios, novelas, contos, poemas, folhetos de cordel, monólogos dramáticos, diálogos filosóficos, crônicas de época e os junta com desenhos, gravuras, que pinta e repinta, uma a uma. E que depois reescreve e repinta, tudo, vezes e vezes, sem acabar nunca.

Ou o que pega canecas, sapatos, roupas desmanchadas em fios de linha, textos, listas de nomes e os junta com desenhos figurativos, decorativos e transforma tudo em símbolos. E pega mais e mais. E não acaba nunca.

Há um nome para a visualidade-texto de Bispo ou para o texto-visualidade de Suassuna: teatro. Tudo que está lá pode ser entendido como o que resta de uma encenação de teatro que não chegou a ser vista ou que se verá um dia. Em Bispo, são figurinos, uns poucos textos, cenários aos pedaços. O Tudo nunca completo que aponta para um Todo bem maior do que a soma das partes — no otimismo intrínseco dos inventários: o sentido existe, só está mais além. Assim, não se deve ver um estandarte bordado, ler seu texto ou apreciar os pequenos barcos como objetos autônomos. É uma estética do acontecimento, do provisório, nada a imobiliza em “obra-prima”, partícipe que está de um processo sem fim de rebordagem e acréscimos.

O mesmo em Suassuna, na sua realimentação sem fim entre o oral e o escrito. Para entrar no universo armorial, e também no universo católico pouco ortodoxo de Bispo, há que se dialogar com uma herança católica que é a nossa, mesmo se não formos católicos, pois a História, pois é, não acabou.

Para Bispo, o Outro de seu diálogo deveria responder a uma pergunta: De que cor você vê a minha aura?

A resposta certa era “azul”, e ele poderia perfeitamente retrucar, como o Quaderna de Suassuna:

Tudo apontava o Sol: fiquei embaixo, na Cadeia em que estive e em que me acho, a sonhar e a cantar, sem lei nem Rei.

MITO, SEMPRE TÃO CHATO

O arquétipo junguiano — que quis com este conceito ultrapassar os aspectos mais estreitos, biográficos, da observação freudiana — pode ser visto como uma leitura do mito, este dado universal idêntico para todos os indivíduos. Arquétipo evoca algo primário, arcaico. Mas o elemento cultural, social, determinará a atualização específica do mito. Nenhum mito tem uma forma definitiva, acabada, ele não é autêntico nem será anacrônico: há o vocabulário básico, transmitido no tempo, e seus códigos de interpretações, que mudam, e que farão com que o mito traduza características da sociedade onde ele se encena. Melhor: traduza características que não estão na sociedade onde ele se encena.

E aqui entra a ambiguidade entre o conservadorismo e papel revolucionário de Bispo e Suassuna. A encenação de um mito tem um papel revolucionário. O caráter insólito, de não pertencimento a um tempo determinado, é um tipo de aviso que o povo dá ao poder, perturba-o, aponta e acentua fissuras da cultura estabelecida. Se o mito é uma explicação do mundo e de seu funcionamento, que abrange a totalidade dos seres e das coisas, sua encenação não é uma explicação, mas uma ação. Há sempre uma ameaça latente. Pois mitos preferem histórias onde há interditos transgredidos. É sempre um esforço humano em mudar a ordem estabelecida e estabelecer outra coisa em seu lugar. Traz, sempre, uma dialética do poder. Encena um passado — ou um futuro — e, ao fazer isso, desmitifica o poder do presente.

O que caracteriza a arte realista é ser uma ficção que se nega a si própria, ao tentar impor uma mimese como a coisa em si. Fundamentalmente reacionária, não? O tratamento mítico do espaço, por outro lado, em sua ambiguidade de estar ao mesmo tempo dentro e fora da geografia e da História, longe da realidade do entorno mas cheio de indícios dela, desestrutura o referencial do participante da encenação e o induz a assumir uma atitude de disponibilidade para pensar o impensável.

Walter Benjamin diz: “Não se trata de assenhorar-se de experiências terríveis e primordiais através de um amortecimento gradual, seja pela invocação maliciosa ou pela paródia; trata-se também de saborear repetidamente, do modo mais intenso, as mesmas vitórias e triunfos”.

Em vez de refazer um mesmo caminho determinado por outrem, ao ver-ler e ler-ver Bispo e Suassuna, é a ausência de centro, com tudo o que isto significa, o que nos bate. Dizemos, distraídos: bonito, e quanto trabalho. E temos vagas lembranças de carnaval.

Pois são estas, as lembranças (umas citações de A Moça Caetana e A Pedra do Reino): “Salve o que vai perecer: O efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, a luta sem grandeza, o heroico assassinado em segredo. O que foi marcado de estrelas — tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, será para sempre e exclusivamente seu”.

“O enigma permanece. O silêncio queima o veneno das serpentes e, no campo de sono ensanguentado, arde em brasa o sonho perdido, tentando em vão reedificar seus dias, para sempre destroçados.”

E: “Na arte, a gente tem que ajeitar a realidade”.

UM POUCO DE BIOGRAFIA

Bispo nasceu em 1911 ou 1909, ninguém sabe. Foi em Japaratuba, Sergipe, que ele chamava de Missão Japaratuba, o nome antigo do povoado, uma ex-colônia religiosa. Dizia, sobre a data, “um dia eu simplesmente apareci no mundo”.

Quaderna, o personagem de Suassuna, nasce em 16 de junho, a mesma data de Suassuna e a mesma data em que transcorre a ação do Ulisses de James Joyce. E sobre isso, Quaderna fala: “ah, ele pôs esse dia porque já estava me prevendo”.

Suassuna nasceu em 1927 no Palácio da Redenção de João Pessoa, nome que ele jamais irá pronunciar preferindo, como Bispo, o nome antigo da cidade: Cidade de Nossa Senhora das Neves. Suassuna tem uma antevisão do mundo que iria criar, quando conhece A Pedra do Reino, em 1966. O local, em São José do Belmonte, divisa entre Pernambuco e Paraíba, é desde 1993 sede de um ritual repetido anualmente, a Cavalgada. Em Japaratuba, o ritual mais marcante é o do Dia de Reis. Ambos, o de Suassuna e de Bispo, de origem ibérica e religiosa.

Sinaleiro da marinha, pugilista, faz-tudo da rica família Leone e artista (post mortem) da Bienal de Veneza em 1995, graças a um esforço descobridor que teve início em 1989, com o crítico Frederico de Morais, Bispo viveu 50 anos confinado na Colônia Juliano Moreira criando “os registros de minha passagem pela terra”. Suassuna, ocupante da cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras, criou o personagem Quaderna, um preso que registra frases, conhecimentos que não passam, retornam.

TAPETE VERMELHO

Elvira Vigna
Aguarrás, 24 de junho de 2006

O grupo Inter Referências (Emne Al-Haje, Lilian Pedroso, Sonia Távora e Teresa de Oliveira Santos) fez uma intervenção urbana que consistiu em estender um tapete vermelho no caminho para o mar da praia de Ipanema, na mesma semana em que duas grandes campanhas publicitárias (da TAM e do Itaú) também usaram tapetes vermelhos, neste caso para vender produtos.

Na antropologia, há uma maneira tradicional de classificar sociedades. Elas seriam sociedades baseadas na troca de presentes ou sociedades baseadas na troca de mercadorias. A passagem de presentes para mercadorias seria a passagem do arcaico para a modernidade.

E é a hora de dizer: “se não, vejamos” — e apontar para algum quadro-negro.

Pois nada mais didático do que a desestabilização conseguida pelo grupo de artistas. Na recepção cautelosa, indiferente ou contestatória dos passantes, ficaram claras as diferenças entre publicidade e arte, e as semelhanças entre sociedades arcaicas e a nossa.

São elas:

• a legibilidade da intervenção se deu inserida no tempo presente: outros tempos e o tapete vermelho seria entendido de outro modo, com uma carga de nobreza talvez maior do que sua banalização pela publicidade permite hoje;

• a legibilidade da intervenção se deu de forma dialética, oscilando entre a obsolescência e ressignificação do símbolo tapete vermelho: o não dar importância gerava um estranhamento pelo não dar importância;

• a legibilidade da intervenção foi específica do seu espaço: a areia em volta aos poucos desmanchou o limite tapete-não tapete, inserindo um outro tópos, o do segredo — não tem valor porque não se nota, tem mais valor porque requer esforço para ser notado;

• a legibilidade da intervenção foi instável ao longo do tempo em que ficou instalada e incluiu uma possibilidade de transformação até mesmo no seu futuro: como “fantasma”, lembrança incrustada no local por um tempo ainda, depois de seu desmanche;

• o tapete foi vivido como uma área protegida, especial, e também, como seu contrário, uma área de inquietação, de entrada no desconhecido: atravessá-lo, em um caso como no outro, requereu uma decisão — visível na hesitação dos passos;

• o tapete foi vivido como uma área de passagem; como uma fronteira que, uma vez transposta, permitiria a entrada em um outro espaço e tempo: entrada no mundo ritualizado da cultura e saída do mundo “natural” da praia, e entrada em um outro tempo de salões e palácios com tapetes vermelhos;

• uma troca de mercadorias se dá sem envolvimento emocional entre os participantes que são indiferentes ou desconhecidos e se mantêm assim uma vez o processo terminado: no strings attached.

• uma troca de presentes exige envolvimento emocional entre os participantes, se não anterior, pelo menos posterior ao processo: “temos uma relação”.

• o tapete dos artistas deixou claro que não há presentes “puros”, isto é, sem inserção em algum código social que suponha — e imponha — uma contrapartida em gratidão, compensação em atos amistosos ou retribuição em valor igual ou parecido, e isto provocou insegurança: o que terei de dar em troca se eu aceitar a possibilidade de andar sobre este tapete;

• e o tapete das empresas também deixou claro que não há mercadorias puras, isto é, que não gerem algum tipo de excesso, de sobra; estes resíduos, reintegrados automaticamente pelo capitalismo, são essenciais para o funcionamento do sistema, daí a tranquilidade com que os personagens das imagens publicitárias recebem o “tapete”: nada terei de dar em troca, é natural que o mercado me ofereça um bônus de vez em quando.

Resumindo: arte desestabiliza, publicidade tranquiliza.

CAROLINA VIGNA é escritora, pesquisadora e artista visual. Possui bacharelado e licenciatura em Artes Visuais; especialização em História da Arte; mestrado e doutorado em Educação, Arte e História da Cultura; e pós-doutorado em Letras. Crítica de arte associada à ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte.

ELVIRA VIGNA (1947-2017) nasceu no Rio de Janeiro. Foi escritora, ilustradora, artista plástica, jornalista e crítica de arte. Formou-se em Literatura pela Universidade de Nancy, na França, e foi mestre em comunicação pela UFRJ. Autora de diversos livros: Como se estivéssemos em palimpsesto de putas e Por escrito, entre outros.

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