Crítica

Uma história de violência

Chega ao Brasil ‘Monstros’, HQ de Barry Windsor-Smith, que levou 35 anos para ser realizada e venceu vários prêmios Eisner, considerado o Oscar da indústria de HQs

TEXTO Paulo Floro

01 de Dezembro de 2022

Página de 'Monstros', de Barry Windsor-Smith

Página de 'Monstros', de Barry Windsor-Smith

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 264 | dezembro de 2022]

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Monstros, de Barry Windsor-Smith, demorou 35 anos para ficar pronto, o maior tempo de produção de um quadrinho que se tem notícia até hoje. Essa gestação longuíssima, porém, fez bem a essa obra, que foi ganhando status de culto ao longo dos anos e que correspondeu à expectativa criada por décadas. O autor levou o tempo que precisava e, com paciência e sem pressa, conseguiu deglutir e incorporar todas as inquietações sociopolíticas do século XX em uma obra que evidencia o poder da narrativa sequencial para contar uma boa história. O esmero de Windsor-Smith é perceptível tanto nos desenhos incrivelmente detalhados quanto na intrincada narrativa que percorre quase 50 anos para relatar a violência envolvendo um pacato jovem que é submetido a um experimento secreto do governo dos EUA.

Barry Windsor-Smith, 73 anos, é tido como um dos maiores nomes dos quadrinhos mundiais pelo menos desde os anos 1970, quando despontou como um dos mais exímios desenhistas da indústria de comics norte-americana. Seu estilo foi se afastando da escola Jack Kirby, seu maior ídolo, para ganhar contornos mais particulares e originais. Dono de uma arte dramática, em seus desenhos, os personagens estão sempre em um nível de dinamismo altíssimo, com uma movimentação que transmite uma sensação de urgência muito presente, que salta às páginas. Mas foi em 1991 que o autor britânico alcançou o estrelato, ao assinar o roteiro e arte de Arma X, HQ que contou a origem de Wolverine dos X-Men e como ele conseguiu o seu famoso esqueleto de adamantium em um experimento secreto. O artista também assinou passagens elogiadas – e hoje cultuadas – de personagens como Homem-Máquina, Demolidor e Conan, o Bárbaro.

Mas a relação de Windsor-Smith com os quadrinhos não é nada tranquila e isso talvez ajude a compreender a demora em finalizar Monstros, sua obra mais ambiciosa. Nas raras entrevistas que concedeu à imprensa, ele falou que nunca teve prazer trabalhando para a indústria de quadrinhos e nunca conseguiu lidar bem com a interferência dos editores em seu trabalho. Mesmo assim, foi um desbravador do mercado de comics e, ao lado de compatriotas como Bernie Wrightson e Jeff Jones, abriu espaço para uma geração de autores britânicos que revolucionaria a indústria de HQ a partir dos anos 1980, como Alan Moore, Neil Gaiman e Warren Ellis. Ao longo do tempo, ele foi abandonando a área e passou 16 anos sem publicar nenhum quadrinho até lançar Monstros, em 2021. A publicação venceu vários prêmios Eisner, considerado o Oscar da indústria de HQs, incluindo graphic novel, melhor roteirista/desenhista e melhor letrista.


Na HQ acompanhamos a maestria do autor no desenho realista, numa arte cheia de dinamismo. Imagens: Divulgação

A história da obra começa em 1984, quando o autor ofereceu uma HQ de Hulk para a Marvel Comics, que acabou não sendo aprovada. Em vez de engavetar a história, Windsor-Smith decidiu transformar o roteiro em um projeto autoral, que daria origem a Monstros. O trabalho se transformaria em um misto de thriller político, drama familiar, romance histórico, com certa dose de ficção científica, horror e sobrenatural. O que poderia ser uma salada narrativa bastante caótica se tornou, na verdade, uma experiência imersiva por conta de uma trama intrincada, construída por um dos mais meticulosos artistas que os quadrinhos já conheceram.

UM SÉCULO DE ANGÚSTIA
As primeiras páginas de Monstros dão o tom de tensão que marcará toda a obra até o seu final melancólico. Vemos uma mãe dona de casa, em meados dos anos 1950, tentando salvar seu filho das mãos do marido violento. Ele segura o garoto, que desfalece com o rosto ensanguentado e um dos olhos inchado. Agarrada ao filho, a mulher corre para se livrar daquela situação enquanto o homem emite palavras incompreensíveis em um alemão gutural. Acuada e sem saída, ela afasta o marido com uma das mãos enquanto protege o filho com a outra e grita: “Monstro!”.

Essas primeiras páginas já trazem uma quebra de expectativa para o leitor em relação ao título da obra. O monstro do título, afinal, não diz respeito ao jovem que sofreria experimentos e o transformaria em um ser grotesco e assustador. Fala, na verdade, sobre os diferentes “monstros” (no plural), reais e metafóricos, que protagonizaram diferentes períodos do último século. Com um argumento pensado em meados dos anos 1980, a trama inicia muito imbuída do medo atômico que pautou diversas obras de ficção e que acabaram influenciadas pela dicotomia geopolítica Ocidente x Oriente, que, mesmo hoje, ainda teima em aparecer (Stranger things, estamos te chamando pra conversar...). Windsor-Smith, porém, vai adicionando complexidade à sua trama e logo nos deparamos com um olhar sociopolítico com mais nuances, que caminha para uma crítica ao militarismo, ao fascismo e suas ramificações, e mesmo ao neocolonialismo norte-americano.

A história tem início com Bobby Bailey, o garoto espancado do início do livro, que deseja entrar para o exército como forma de fugir da indigência. Sem documentos que comprovem sua identidade, sem emprego e sem ter onde morar, ele vê nas Forças Armadas a única saída. Os militares, por sua vez, também enxergam no garoto um senso de oportunidade e o colocam como cobaia em um experimento secreto chamado Prometheus. Trata-se, no entanto, da continuação de um projeto nazista da criação de um super-humano, descoberto na Alemanha, no final da Segunda Guerra Mundial.

O militar responsável por indicar o jovem Bailey para o Prometheus, o sargento McFarland, será consumido pelo trauma de ter destruído a vida de um jovem inocente à medida que vai descobrindo os segredos horríveis ligados ao projeto. Nesse momento, a trama se desloca para conhecermos mais sobre McFarland e seu núcleo familiar, que já lidavam com traumas e dilemas mais antigos – ser uma família negra de classe média. A angústia desse militar, que é, em alguma medida, também um “monstro” destacado no título, vai consumindo toda sua sanidade até destruir a si mesmo e todo o seu entorno.

McFarland rememora um encontro que teve, quando criança, com a mãe de Bailey, a dona de casa que foi casada com um ex-militar que serviu como tradutor de alemão na Segunda Guerra Mundial. Ele teve contato com os experimentos nazistas que dariam origem ao Prometheus durante uma operação dos aliados na Alemanha e voltou para América consumido pelos horrores vivenciados por lá. É ele que, anos mais tarde, enlouquecido, tenta matar o filho criança até ser salvo pela mãe. Sabemos tudo isso a partir dos diários da mãe de Bailey, que servem como o verdadeiro fio condutor da trama.

Windsor-Smith consegue conectar todas essas histórias para contar uma epopeia de violência que percorreu duas gerações e que se enraizou na sociedade americana. É aqui que percebemos o quanto fez bem o longo tempo de produção deste quadrinho. Barry Windsor-Smith pôde não apenas depurar os entendimentos para tecer seus comentários sociais, como se deixou impregnar pelas mudanças de mentalidade que o mundo vivenciou ao longo dos anos. A HQ desconstrói, por exemplo, o bom-mocismo americano visto em centenas de obras sobre o nazismo e a Segunda Guerra. Coloca em tintas explícitas o papel assumido pelos EUA no pós-Guerra, de ser um repositório das atrocidades experimentadas durante o conflito na Europa. Nesse ponto, Windsor-Smith tem a audácia de se libertar do clichê do velho antagonismo que colocava os americanos virtuosos numa ponta e os “inimigos” estrangeiros na outra. Monstros revolve as podridões da América em sua própria casa, sem medo de olhar para os monstros que ainda seguem escondidos.

MONSTRO NO ESPELHO
A gênese da ideia do monstro, como se sabe, remonta aos mitos gregos e surge como a própria antítese do herói, como uma necessidade para justificar sua existência. Mas foi Mary Shelley que popularizou outro tipo de monstro, o Frankenstein, este bem mais perturbador por ser um espelho distorcido, mas ainda reconhecível, do ser humano. Shelley foi beber na fonte da mitologia grega para criar seu famoso personagem, que batizou de “Prometeu moderno”. Prometeu foi um titã que entregou o fogo aos homens, garantindo sua superioridade em relação aos outros animais, e por isso foi castigado. Windsor-Smith conecta Mary Shelley e o mito grego de Prometeu para a criação de seu monstro.

Assim como todos os outros monstros pós-modernos como Frankenstein, Billy Bailey é um ser melancólico, triste, apartado da sociedade por ser justamente o avesso de um ideal de ser humano. A cultura pop está permeada por esses “monstros” há muito tempo, com inúmeras variações, mas quase sempre temos a mesma toada: um ser disforme, por vezes superpoderoso e potencialmente perigoso e violento quando acuado. O diferencial da obra de Windsor-Smith é usar o mote do monstro para falar das agruras humanas, de certa falência do nosso ideal de sociedade imaginado após o fim da Segunda Guerra Mundial. O autor cria uma forte empatia com a figura de Bailey apenas para tirá-lo do foco. Quando o leitor menos espera: era uma espécie de isca para revelar os verdadeiros monstros: os militares, os cientistas eugenistas e os políticos. Bailey praticamente não tem falas e nem pontos de vista na narrativa, o que desloca o foco da atenção para os seus algozes e aliados, estes, sim, criaturas perturbadoras e complexas, tentando lidar com um mundo em decadência.



A narrativa é um misto de thriller político, drama familiar e
romance histórico, com toques de horror e ficção científica.
Imagens: Divulgação 

Monstros ensaia uma aproximação com diferentes gêneros sem se ater a nenhum. Quando nos acostumamos com sua narrativa de thriller clássico, ele se revira e foca no drama familiar de Bailey quando criança. Em seguida, camufla-se de romance histórico e político. O que fica, no entanto, é o enquadramento típico dos gibis de super-heróis, que não chega a ser um gênero narrativo em si, mas que possui marcadores muito bem-definidos. A criação de um super-humano no contexto da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, é a base da história do Capitão América. Já os experimentos científicos malsucedidos aparecem em inúmeras histórias, em vilões do Homem-Aranha, Batman, mas sobretudo em Wolverine (Windsor-Smith muito provavelmente incorporou parte de suas ideias de Monstros em Arma X, sua famosa HQ estrelada pelo mutante). E não podemos esquecer que a Marvel e a DC, as principais editoras de super-heróis, possuem seus Frankensteins modernos, seres monstruosos melancólicos, como Coisa, Hulk, o Monstro do Pântano, entre outros.

Monstros, porém, avança em um nível de nuance que quadrinhos de super-heróis raramente alcançam, até mesmo pela imposição mercadológica que possuem. É de se entender o fato desse projeto nunca ter tido chance no mainstream (ao menos não da maneira pensada por seu autor, em sua totalidade).

TEMPO PRÓPRIO
Monstros também impõe sua relevância pelo que propõe aos quadrinhos como uma arte própria, com sua narrativa particular. Ao terminar de ler a HQ, fica bem evidente que aquela história, do modo como foi contada, não teria o mesmo impacto ou emoção em outra mídia. Para começar, Windsor-Smith é um mestre no desenho realista, com uma arte cheia de dinamismo, em que predominam o uso de sombras muito bem-marcadas e um nível de detalhes impressionante. Algumas páginas pedem um tempo maior para que possamos dar conta de absorver tudo o que está desenhado ali.

Windsor-Smith é muito ciente desse tempo particular da leitura da HQ, em que ativamente construímos a noção da passagem do tempo a partir da disposição espacial. Dessa forma, o autor brinca com a própria disposição dos requadros, que vão ganhando sequências que fogem à lógica tradicional. Outra inovação foi ter incorporado o uso do texto como parte integrante da narrativa e não apenas como um elemento adjacente ao que é desenhado. Em alguns momentos, o estilo tradicional do quadrinho dá lugar às passagens do diário da mãe de Bailey, como se estivéssemos lendo-o ao vivo. Não à toa, a obra venceu como melhor letreiramento no Eisner: Windsor-Smith desenhou à mão as entradas do diário, incluindo as rasuras, anotações, erros de grafia. Algumas passagens são até mesmo difíceis de ler, pois refletem os garranchos de quem escreveu no diário às pressas. No Brasil, esse incrível trabalho de transpor para o português as letras do livro original ficou a cargo da letrista veterana Lilian Mitsunaga.

É impossível escapar do impacto visual da arte de Barry Windsor-Smith que tem um traço muito seguro e faz um uso impressionante de sombras para criar um ambiente carregado de dramaticidade. Não à toa ele foi mais de uma vez comparado à Caravaggio, pela meticulosidade absurda e o domínio do realismo sem perda de subjetividade e emoção. O tom lúgubre de algumas passagens da trama chega a causar claustrofobia no modo como são desenhados. Já outros momentos, como uma exagerada cena de romance na chuva, lembram melodramas hollywoodianos. O desenho de Windsor-Smith cumpre ainda outro papel importante, que é manter a unidade numa narrativa de longa gestação e com uma trama que percorre um longuíssimo espaço de tempo. A arte faz com que Monstros mantenha a mesma personalidade artística desde seus primeiros momentos.

A narrativa em quadrinhos pensada por Windsor-Smith também é responsável por criar unidade entre os diferentes gêneros pelos quais a obra passeia em suas quase 400 páginas, do horror ao drama familiar, passando pelo suspense e pela ficção científica. O que poderia parecer desconjuntado em algum momento ganha um senso de unidade que consegue orquestrar toda a intrincada trama. Algumas páginas são tão impactantes – esteticamente falando –, que é possível conceber a razão de Monstros ser o trabalho de anos e anos.

A obra chega ao Brasil em um momento de forte ebulição no cenário editorial de quadrinhos no país, o que ajudou a dar à obra a relevância merecida, para além do nicho das HQs. Destaque ainda para o bom trabalho editorial da Todavia, que conseguiu trazer Monstros para o Brasil pouco depois de seu lançamento original (saiu no ano passado nos EUA), o que conecta os leitores brasileiros com a discussão sobre a sua importância para os quadrinhos e a ressonância com uma obra influente da cultura pop.

Aguardado por anos, Monstros certamente entrará para a história como um dos maiores épicos das histórias em quadrinhos por sua capacidade de discutir questões sociopolíticas a partir de um trabalho artístico incrivelmente bem-construído, feito por um artista no pleno comando de sua arte. Isso não é pouco. Windsor-Smith já disse que esse é seu último trabalho. Ao menos ele não precisará esperar mais 35 anos para celebrar o fato de sua obra já ter se tornado um clássico.

PAULO FLORO, jornalista, professor universitário e crítico de quadrinhos.

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