Artigo

Um ensaísta para nossos dias

O lançamento de ‘Estruturalismo como pensamento radical’, de J. G. Merquior, oferece oportunidade de repensar o legado do intelectual brasileiro e sua defesa de valores humanistas e liberais

TEXTO Eduardo Cesar Maia

01 de Dezembro de 2022

O crítico e ensaísta brasileiro José Guilherme Merquior (1941-1991)

O crítico e ensaísta brasileiro José Guilherme Merquior (1941-1991)

Foto Folhapress

[conteúdo na íntegra | ed. 264 | dezembro de 2022]

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O recente lançamento de Estruturalismo como pensamento radical (É Realizações Editora, 2022), do crítico e ensaísta brasileiro José Guilherme Merquior (1941-1991), pode ser visto, entre outras coisas, como oportunidade para repensarmos o amplo legado intelectual do pensador e sua defesa de valores humanistas e liberais. A obra, escrita há cerca de meio século e nunca antes publicada, tem alcance filosófico muito abrangente e seria difícil tentar uma visão de totalidade no curto espaço deste texto. Aproveito o ensejo, então, para tratar de um ponto específico que me foi suscitado pela leitura: refiro-me à relação de interdependência entre a concepção de humanismo crítico em Merquior e sua defesa de um liberalismo social.

Tenho defendido que um dos grandes projetos intelectuais de José Guilherme foi a tentativa de uma ampla renovação dos estudos humanísticos a partir da constituição do que ele chamou de “humanismo crítico”. Em outras palavras: um humanismo pensado a partir da herança intelectual integradora de Rousseau para as Humanidades; do legado filosófico do criticismo kantiano como ponto sem volta para entendermos os limites do nosso conhecimento da realidade; da demolição heideggeriana da metafísica ocidental e, por fim, da relação de tudo isso com o substrato filosófico que Merquior aponta na antropologia estruturalista de seu professor Claude Lévi-Strauss.

No posfácio à edição mais recente de A estética de Lévi-Strauss (2013), apresentei, entre outras reflexões, uma hipótese sobre a dimensão epistemológica da noção de um “humanismo crítico” mencionado en passant por Merquior naquele ensaio. Ele defende ali que a experiência estética é marcada por um tipo de interação muito complexa entre nossas faculdades intelectuais e sensíveis, e que esse processo deve ser estudado como uma forma genuína de conhecimento e especulação sobre a realidade. Por meio da concepção de “lógica do sensível”, sugerida por Lévi-Strauss, Merquior defende que não há dicotomia entre a apreensão intelectual e a sensibilidade estética. O humanismo crítico, buscado pelo ensaísta, surgiria, em primeiro lugar, pelo reconhecimento da fundamental colaboração entre o pensamento abstrato-conceitual e a atenção às formas variadas de nossa experiência sensível (estética e artística) do mundo.

Em Estruturalismo como pensamento radical, esse tema aparece de maneira contundente desde a pergunta inicial que conduz toda a reflexão: “poderíamos detectar uma autêntica vocação moral no Estruturalismo?”. Em outros termos: seria possível integrar teoria do conhecimento e especulação ética? Ou, ainda, o plano moral ao plano intelectual? A ideia-força que permeia todo o ensaio se sustenta na premissa de que um autêntico humanismo para nosso tempo – um humanismo fundamentalmente crítico – deve ser compreendido a partir dos limites e das possibilidades do humano, para além de idealizações e consolos metafísicos ou utópicos. O ser humano não pode ser definido terminantemente por uma natureza ideal, ou por uma essência última (seja ela boa ou má), pois ele é um ser que se faz na história, marcado, de maneira incontornável, pela contingência. Para Merquior: “A coisa mais difícil é assumir a finitude, é chegar a compreender que todas as nossas obras são perecíveis, sem por isso serem totalmente inúteis. Guiar a ação humana sem nada esconder de seus limites, por meio de uma sequência de opções que nada têm de absolutas, e menos ainda de perduráveis, eis o papel de uma ciência que se pretendesse livre das últimas ilusões”.

Aqui chego ao ponto de interpenetração entre os temas do liberalismo social e do humanismo em Merquior. O ensaísta enfatizava que existe uma “impressionante variedade” de liberalismos na história. Para ele, a ampla tradição liberal não pode se resumir a uma ideologia, ou seja, a uma forma de religião laica e dogmática, ou a um conjunto de regras apriorísticas; seu liberalismo social é uma doutrina aberta, que evolui e se prende à realidade, em vez de forçar a realidade a enquadrar-se nela. Trata-se, portanto, de uma tradição plural e mesmo, por vezes, (auto)contraditória. E aí, creio, está a pista para sua particular eticidade e para sua relação com a teoria do conhecimento que é o substrato do humanismo crítico de Merquior.

O argumento liberal é o de que não existe a possibilidade de concordarmos em última instância sobre o que seria uma “moralidade superior” ou uma sociedade perfeita; portanto, a única coisa que podemos afirmar com segurança é que o que temos que defender são sociedades abertas e pluralistas. Foi justamente isso – a ideia de abertura – o que, curiosamente, seduziu o jovem Merquior no pensamento de Heidegger: a concepção do ser-aí como pura possibilidade, como abertura para o real. Tentemos resumir e aclarar o que pode ainda parecer confuso nessa relação entre liberalismo e humanismo: se acreditamos que o ser humano não é uma ideia pronta, e que os seus fins não podem ser preestabelecidos, toda ideologia política que nos submeta à predeterminação do arbítrio é, de antemão, perversa. Onde não há verdadeira possibilidade de autonomia para os indivíduos decidirem sobre seus próprios valores ou construírem novas formas de compreensão da própria existência, não há real possibilidade do gesto genuinamente ético.


A obra do ensaísta, escrita há cerca de meio século,
nunca havia sido publicada. Imagem: Divulgação

Os valores sociais, numa sociedade aberta e democrática, fincam suas raízes através não da determinação autoritária de um tipo de moralismo fixo e imutável, mas do diálogo e das polêmicas; da confrontação permeável e sensível da tradição recebida e de seus valores com os da cultura e das demandas dos indivíduos e sociedades do presente. Daí vislumbramos a relevância atual do que Merquior elaborou como um ideal emancipatório para nosso tempo: um humanismo crítico (não afirmado a partir de uma concepção essencialista de ser humano); e um liberalismo social, marcado pela defesa do valor fundamental do pluralismo ético nas sociedades contemporâneas, e pelo reconhecimento das vantagens político-econômicas da democracia liberal.

Nos últimos 20 anos, o Brasil assistiu ao renascimento, florescimento e decadência (parcial) de um amplo movimento de inspiração liberal. Aquilo que havia começado, de forma promissora, com um sentido crítico e renovador em relação às narrativas ideológicas e ao debate de ideias políticas no país, terminou com uma aposta num populista de caráter explicitamente autoritário de cujo nome não preciso lembrar-lhes. O atual clima de terra devastada no país – e a metáfora ambiental nunca foi tão pertinente – dá ensejo ao recrudescimento de tudo aquilo que – suponho – os verdadeiros liberais, originalmente, esperavam combater: extremismo, populismo, nacionalismo, dirigismo e messianismo político. É hora, mais do que nunca, de debatermos seriamente o legado de Merquior.

EDUARDO CESAR MAIA, crítico cultural e professor de Comunicação e Literatura na UFPE.

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