Paulo André acordou no meio da noite e não conseguiu mais dormir. Tomado por uma inquietude, sentou-se na cama, pensou, ponderou, até que, enfim, chegou à conclusão: “Preciso voltar”. De manhã cedo, surpreendeu a namorada com a súbita e triste decisão – para ambos. Logo, desfizeram-se do apartamento em que moravam na Califórnia. Era agosto de 1989. O pernambucano estava há três anos nos Estados Unidos, onde conheceu a norte-americana. Ele tinha saído do Recife em agosto de 1986, época em que nem as emoções provocadas pelos jogos da Copa do México faziam a população brasileira, apaixonada por futebol, esquecer o dragão da inflação que torrava o poder de compra dos menos favorecidos, mesmo após seis meses do lançamento do Plano Cruzado. Como se dizia, a saída para o Brasil era o aeroporto.
A esperança de que, fora do país, e principalmente nos Estados Unidos, a vida seria bem melhor era uma ideia recorrente, que poucos tinham condições, coragem, dinheiro e domínio da língua inglesa para pôr em prática. Com a expectativa de encontrar por lá um trabalho que gostasse e seguir, finalmente, uma carreira profissional, Paulo vendeu seu fusca, comprou a passagem aérea e, com mais mil dólares dados pelo pai, partiu para a grande aventura de viver em outro país, aos 19 anos e sem a proteção de um intercâmbio escolar. Seu trunfo eram as excelentes notas em inglês, a única disciplina em que ele se destacava nas provas dos colégios que frequentou, dos renomados Marista e Contato ao Alpha, quando já não tinha mais paciência para estudar.
Lá, no país onde nasceu o rock’n’roll, gênero musical que ouvia bastante e que lhe serviu como um norte na vida, foi morar na Califórnia – lugar que ganhou aura mística através de músicas como California dreamin’ (1965), do Mamas and the Papas, e De repente, Califórnia (1982), de Lulu Santos. Os trabalhos mais acessíveis que apareceram eram o de recolher carrinhos de supermercados, durante o dia, e de entregador de pizza, à noite. Trabalhava de segunda a sábado, das 7h às 17h. Depois, fazia delivery, algo ainda raro no Brasil, mas que, na cultura norte-americana, era tão corriqueiro e até essencial para o estilo de vida daquela população. Ao contrário dos outros entregadores, ele levava duas ou três pizzas a cada saída. Tinha pressa de vencer, como cantaria a Devotos do Ódio, banda pernambucana formada em 1988, que, logo mais, ele iria conhecer.
Com o dinheiro que recebia dos jobs, Paulo aproveitava para curtir todos os shows que podia: Pink Floyd, Madonna, Stray Cats, Duran Duran, Lou Reed, bandas de heavy metal e até do metal farofa da época. Um dos patrões, Bob, o dono da pizzaria, era um iraniano impaciente, que fugira do país com todo o dinheiro amarrado no corpo, após a tomada do poder pelo Aiatolá Khomeini. O imigrante morria de ciúme da esposa Susan. E, por fim, acabou assassinando a mulher com a faca da própria cozinha. Felizmente, Paulo já estava fora da pequena empresa, quando ocorreu o desfecho trágico. E o antigo chefe só é lembrado pelo ex-empregado pernambucano, vez ou outra, em suas imitações de vozes ao contar histórias que testemunhou. Em três anos nos Estados Unidos, Paulo tomou outra importante decisão, após ter tido patrão iraniano, norte-americano, português e brasileiro: nunca mais ter patrão.
Paulo André com a então namorada Noelle e o amigo Luisão, em 1988, na Califórnia.
Foto: Acervo pessoal/Cortesia
De volta ao Brasil, no final dos anos 1980, havia um cenário musical em transição, o rock nacional que, antes, dominava a mídia, estava sendo substituído por axé music, pagode e sertanejo. E o país encontrava-se absorto pela primeira campanha presidencial da redemocratização, na qual o voto do eleitor brasileiro era disputado por candidatos diversos. Dentre eles, Luiz Inácio Lula da Silva (em sua primeira concorrência ao cargo), Leonel Brizola, Ulysses Guimarães, Enéas, Afif Domingos e o novato Fernando Collor de Mello, que venceria as eleições com a promessa de “renovar a política” e “caçar os marajás”.
Uma semana após ter voltado ao país, Paulo abriu um dos jornais pernambucanos e soube do festival de inverno promovido pela Universidade Católica de Pernambuco, situada no Bairro da Boa Vista, centro do Recife. O evento aconteceu no estacionamento, que ainda não era calçado. Diante do palco e som toscos, o jovem, que tinha ido ver a banda pernambucana Realidade Encoberta, olhou ao redor e avistou uma mesa de ferro vermelha com a logomarca da Brahma. Ao redor dela, uns oito caras estavam cheirando cola. Em meio a esse cenário desanimador, fez um questionamento a si próprio: “Meu Deus do Céu, o que foi que eu vim fazer aqui?”
Em 1989, o Recife ainda não vivia a efervescência cultural que experimentaria na década seguinte, a mesma que o próprio Paulo André ajudaria a ferver. O máximo que a música pernambucana lançava de novidade para o resto do Brasil naquele ano era a dupla de cantadores da Praia de Boa Viagem Mauro e Quitéria, que participou da música Miséria, dos Titãs, e cujo canto imitando o inglês intitulou o álbum Õ Blésq Blom, produzido por Liminha. Naquele finzinho da década de 1980, a presença da dupla na abertura do show da banda paulista no pavilhão do Centro de Convenções de Pernambuco provocou euforia e orgulho na plateia local, sentimento que seria elevado à máxima potência com o surgimento do Manguebeat. Mas as bandas que estourariam na década de 1990 ainda estavam se formando, os músicos se conhecendo, descobrindo suas sonoridades.
No final de 1989, Paulo André teve uma ideia que mudaria sua vida: decidiu abrir uma loja de discos, a Rock Xpress. Localizado inicialmente na Rua Amélia, no Bairro das Graças, o estabelecimento comercial era uma forma de ganhar dinheiro com aquilo de que mais gostava, música, e mais especificamente, rock. Além disso, o lugar se tornou um ponto de encontro de músicos e um espaço de conexão espontânea entre as pessoas que estavam criando ou querendo criar arte na cidade.
Após um mês de funcionamento, em uma tarde, apareceram por lá três rapazes para divulgar um show. Eram Cannibal, Neilton e Cello. Saíram a pé do Alto José do Pinho, de onde moravam, até o Bairro das Graças, para colar na parede da loja o cartaz da apresentação que fariam no Ibura de Baixo. “Brother, eu vou lá no Ibura de Baixo. Eu sei onde é o Ibura, mas não sei onde é o de baixo, mas eu descubro”, garantiu Paulo. Ao chegar de moto no bairro da periferia da zona sul, só havia um tablado no meio da rua. O som não chegou. O show não aconteceu. E ainda rolou uma treta da chamada Turma da Lama, de Boa Viagem. Mas, a partir dali, ele passou a frequentar os shows da Devotos do Ódio. Pelo menos, os que aconteciam, de fato. Fosse no Ibura, Ipsep ou em Santo Amaro…
Através da Rock Xpress, também estreitou laços com outra importante banda pernambucana dos anos 1980, a Câmbio Negro HC. Sobre ela, Paulo escreveu uma matéria para a Rock Brigade, revista de música com a qual colaborava na época. A banda, surgida em 1983 e pioneira do hardcore no Recife, lançou, em 1990, o disco O espelho dos deuses, cuja capa e encarte tiveram seu apoio. Além disso, o disco passou a ser vendido na Rock Xpress e Paulo André organizou uma apresentação para o grupo.
Cartaz do show de lançamento do vinil O espelho dos deuses, do Câmbio Negro, 1990. Imagem: Acervo pessoal/Cortesia
Paulo não considera esse o seu “primeiro show”, mas o seu “primeiro preju”. A apresentação seria, em 20 de outubro de 1990, no Sport Club do Recife, com a participação da banda paulista Cólera, uma das pioneiras do punk no Brasil, formada em 1979, ano da obra-prima do Clash, London calling. A expectativa e a empolgação eram grandes. No entanto, quando o produtor iniciante já havia comprado as passagens e divulgado o evento, a experiente Pinga Produções anunciou, para o mesmo dia, simplesmente a apresentação da banda de rock que mais tocava nas rádios e mais vendia discos no Brasil, Legião Urbana. Saldo: 15 mil pessoas para ver Renato Russo e banda no Geraldão, e apenas 300, no Sport. Foi um desfalque no bolso equivalente a R$ 3 mil.
No ano seguinte, associado aos produtores Alemão e Fred Creder (baterista da Herdeiros de Lúcifer, primeira banda de heavy metal de Pernambuco), Paulo André passou a produzir mais shows de rock, sob o nome Kamikaze Produções. A produtora teve o mérito de trazer o primeiro show de uma banda estrangeira de heavy metal para o norte-nordeste do país, Morbid Angel, mostrando que havia um grande potencial nesse mercado musical da região.
Na Rock Xpress, Paulo também promovia muitas tardes de autógrafo. Uma que ele queria fazer era com o Ira!, aproveitando que a banda vinha tocar no Recife, no Teatro Guararapes. O show era baseado no disco Clandestino, que continha uma das joias do rock nacional, Tarde vazia. Rolou a tarde de autógrafos, mas outro fato acabou se tornando mais importante para Paulo André. Nos bastidores do show, ele presenciou o jovem olindense Francisco de Assis França tentando convencer Nasi, Edgard Scandurra, Ricardo Gaspa e André Jung a irem assistir sua banda, Loustal, naquele mesmo dia, no Espaço Oásis, em Olinda. Paulo também foi e viu, pela primeira vez, Chico em ação no palco, o que imediatamente lhe chamou a atenção.
Eles já tinham se visto antes nas noites da Soparia e da Galeria Joana D’arc, ambas no Bairro do Pina, zona sul do Recife. Não eram amigos, não bebiam juntos. Apenas trocavam ideias rápidas. Em uma dessas noites, Paulo disse a Chico que estava pensando em realizar um festival de música e perguntou se ele toparia entrar na programação. Depois, em outro encontro, na galeria, o produtor confirmou que o evento rolaria mesmo e acertou ali mesmo a presença de Chico Science & Nação Zumbi. O líder da banda respondeu: “Beleza, vamos lá”. E, mesmo sem proximidade com Paulo, brincou: “É o Rock in Rio do Recife, né?! O Hollywood Rock do Recife!”.
O produtor com os músicos da CS&NZ num apartamento
em Santa Tereza, RJ, 1996. Foto: Acervo pessoal/Cortesia
Embora tivesse havido iniciativas esparsas, o Recife ainda não tinha festivais de rock previstos anualmente. E Paulo André ainda não poderia imaginar, mas o seu Abril pro Rock seria o primeiro desse gênero a entrar no calendário cultural da cidade. A estreia do festival ocorreu em 1993 e, sim, em 2023, completará surpreendentes 30 anos! O objetivo do idealizador era reunir e apresentar ao público essa efervescência musical que passou a observar desde sua volta ao Brasil.
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Para ele, um sinal de que a chave do marasmo para a agitação cultural tinha virado foi o Natal de 1992. Naquele fim de ano, aconteceram três diferentes festas alternativas numa mesma noite e todas lotadas: Mangue Feliz, com Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi; uma festa na Pousada Quatro Cantos, com Paulo Francis vai Pro Céu e Maracatu Nação Pernambuco; e o Natal da Sopa, com show de Lula Côrtes, em que o artista chegou ao local numa charrete e vestido de Papai Noel.
Pouco antes, naquele 1992, mesmo ano do Manifesto Mangue, aconteceu um encontro que Paulo André considera ser um dos determinantes na sua vida. Tio Beto, irmão mais novo do seu pai, passou, em um fim de tarde de sábado, na Rock Xpress, que havia transferido de endereço para Boa Viagem, bairro da zona sul do Recife. Convidou o sobrinho para um sarau. “Vai se juntar uma galera pra tocar violão, tirar um som”, disse. A festa seria em um apartamento no mesmo bairro. Ao chegar lá, Paulo reconheceu Tereza, ex-esposa de um amigo de sua família de Tabira, onde ele costumava passar as férias na infância e adolescência. Mas agora ela estava casada com um cabeludo de fios brancos e olhos castanhos claros. Era Lula Côrtes. De alguma forma, o herói da psicodelia pernambucana não havia passado antes pelo radar de Paulo André, sempre ligado no noticiário musical. Conhecê-lo foi como uma epifania.
“Eu não conhecia a Rozenblit, o udigrudi. E aí, quando ele começa a falar da galera toda e de que teve a gravadora com Kátia (Mesel), ex-mulher dele e tal, eu enlouqueci. Ele tinha feito, 20 anos antes, nos anos 1970, o que eu queria fazer nos anos 1990. Eu queria ter um selo para lançar as coisas daqui. Não tive dinheiro pra fazer. Eu queria ser produtor musical e aí eu colei no Lula Côrtes. Eles moravam em Candeias, muito depois da curva do S. E eu saía daqui, do centro, para buscá-lo em Candeias, para levá-lo aos ensaios com a Má Companhia”, conta Paulo, em entrevista à Continente, diretamente da Astronave Produções. O lugar é seu escritório e residência no Bairro da Boa Vista, onde vive cercado por diversas coleções de CDs, vinis, fitas-cassete, VHS, DVDs, pôsteres, revistas, jornais, suvenires e objetos reunidos ao longo de trajetória como produtor e colecionador. A geladeira, o fogão, o sofá e a cama são apenas um detalhe.
O produtor em casa, com coleção de CDs. Foto: Breno Laprovitera
Por conta da conexão com Lula Côrtes, Paulo André produziu, junto a Fred Lasmar, um show no Teatro do Parque, em setembro de 1992, que marcava quase duas décadas do Satwa, lendário disco de Lula Côrtes e Laílson de Holanda, considerado o primeiro álbum psicodélico independente gravado no país. No mesmo evento, também se apresentaram os Blusbroders, cujo nome era uma paródia, feita por Laílson e seus amigos, dos Blues Brothers, de John Belushi e Dan Aykroyd.
“Aí, vem o primeiro Abril pro Rock e eu convido Laílson e Lula; as duas únicas bandas que tinham vinil, Tempo Nublado e Academia do Medo; as duas bandas do Manifesto Mangue; Paulo Francis Vai Pro Céu e não vou lembrar de todo mundo agora, mas, enfim, assim nasce a ideia. Eu era uma das poucas pessoas que realmente transitava por tudo isso. Eu era jovem, tinha loja, então eu tinha essa garra. E também por já ter produzido algumas coisas não necessariamente ainda do Mangue, mas de já ter produzido shows na cidade, inclusive de bandas internacionais, como Morbid Angel (1991) e Kreator (1992). Isso me credencia para ter credibilidade, pagar cachê fixo e coisas do tipo. A galera confiou. Abri pra todo mundo ganhar um percentual da bilheteria”, relata Paulo.
A mãe Ceça e a irmã Sonally foram designadas para ficar na bilheteria do Circo Maluco Beleza, um espaço de shows de médio porte, tal como o carioca Circo Voador, que ficava na Avenida Rui Barbosa, no Bairro das Graças, a poucos metros de onde antes funcionava a Rock Xpress. Enquanto elas vendiam os ingressos, Paulo tentava dar conta de todo o resto, como administrar todos os amigos e parentes de não-sei-quem que queriam entrar sem pagar. Deu um público de pouco mais de mil pessoas.
Hoje, ele imagina que, se o evento tivesse ocorrido no sábado, teria aparecido mais gente. No entanto, os sócios do lugar cederam apenas o domingo, o dia em que nunca havia programação. Portanto, não haveria risco, para eles, alugarem o ambiente a um cara desconhecido, que tinha chegado de bicicleta para apresentar um projeto de festival reunindo um bando de artistas igualmente desconhecidos. Os proprietários do lugar eram acostumados a lucrar com shows de pagode e axé music – gêneros que já dominavam a mídia e a indústria fonográfica brasileira.
Duas semanas antes do festival, o evento ganhou sua primeira capa, no Caderno C, do Jornal do Commercio, e depois, outra no Caderno Viver, do Diario de Pernambuco. A mãe de Paulo André, que tinha um escritório de administração de imóveis, insistia para que o filho trabalhasse com ela – antes, na adolescência, ele tirava as férias do office boy da firma. Por conta dos anúncios, ela assinava os dois principais jornais da cidade. Então, tomou um susto quando viu as matérias em destaque do projeto mirabolante do filho: “O que é isso aqui, pelo amor de Deus?!”
“O medo dela era prejuízo financeiro e ela sabia que eu não tinha um real. Porque eu estava em casa e ela saía pra trabalhar e acordava às oito e meia da manhã. ‘Você vai ficar dormindo? Vá cuidar da vida, você fechou sua loja, vai arrumar um emprego, vá trabalhar no turismo’. Dava aquela cutucada de mãe. Eu morava com ela, não pagava nenhuma conta. Eu já tinha 25 anos, sem estar formado. Aí bateu aquela crise, né?”, lembra o produtor.
“Eu não tinha dinheiro pra nada. Eu não sabia nem se ia dar público. No rodapé do cartaz do Abril tinha uns oito apoios que, se juntasse tudo, não pagava o som e a luz. Eram equivalentes hoje a 200 e 250 reais. Era ridículo. Então, eu não tinha como alugar uma van, buscar todo mundo. Todo mundo era da cidade, todo mundo chegava lá pra tocar. A galera de Peixinhos foi passar o som de manhã e ficou lá direto, não tinha dinheiro de passagem pra voltar pra Peixinhos, pra depois voltar à noite. Então, eles levaram umas quentinhas pra comer”, lembra.
Paulo André com cartaz de edição de 2009 do Abril pro Rock,
festival de música criado por ele. Foto: Breno Laprovitera
O primeiro Abril pro Rock reuniu bandas e artistas de diferentes gêneros musicais. Tão eclético, para usar uma palavra frequente na época, o festival, inclusive, pode ter estimulado uma ideia, a de que o Movimento Mangue, capitaneado pelas bandas Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, poderia ser muito bem o abre-alas de uma grande leva de diversas outras bandas e artistas que despontavam em Pernambuco e que quisessem, claro, ficar sob esse imenso guarda-chuva. Pouquíssimos ficaram de fora dele, como a Câmbio Negro HC.
Essa edição teve 13 atrações: Academia do Medo, Chico Science & Nação Zumbi, Tempo Nublado, Paulo Francis Vai Pro Céu, Cobaia Kid, Zaratempô, Blusbroders, Lula Côrtes & Má Companhia, Delta do Capibaribe, Xamã, Mundo Livre S/A, Maracatu Nação Pernambuco e Weapon. Como o evento teve grande repercussão na mídia, os donos do estabelecimento surpreenderam Paulo André com uma faixa na entrada, que tinha uma boa intenção, mas pecava do ponto de vista histórico: “O Circo Maluco Beleza saúda os participantes do primeiro festival de rock do Recife”.
“Enfim, deu tudo certo, mas não sobrou um real pra mim nessa primeira edição. E minha mãe: ‘Eu não acredito que você trabalhou tanto e não ganhou nada! A conta de telefone daqui vai estourar!”. E eu falei: “Não, mãe. Eu ganhei muito mais do que dinheiro ali’”, lembra Paulo André, que tinha uma visão de longo alcance, de empreendedor – palavra que nem era moda na época.
A segunda edição demonstrou que ele estava certo. Aconteceu em dois dias e teve transmissão da MTV para todo o país – algo que, por si só, já era uma baita notícia para Pernambuco, visto que as coberturas da emissora ficavam antes restritas aos eventos do Rio de Janeiro e de São Paulo. A terceira edição comprovava o crescimento do Abril pro Rock. Foi realizada durante quatro dias, com 20 bandas e mais de 10 mil pessoas na plateia. A partir daí, o evento entrou para o calendário cultural não só do estado, mas do país, com artistas de outros lugares disputando uma vaga na programação.
Desde a primeira edição do Abril pro Rock, Chico Science & Nação Zumbi era considerada a atração principal do festival, uma espécie de Jimi Hendrix de Woodstock, um nome tão fundamental para o evento e para a movimentação que ocorria em Pernambuco, que ninguém questionava isso e nem precisava afirmar. Era algo simplesmente percebido, sentido e constatado.
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Não demorou para que a afinidade e a confiança mútua entre Paulo André e Chico Science se concretizasse no convite, a poucos meses dali, para que se tornasse produtor da banda. Ele, então, como bem define o clichê, se entregou de corpo e alma. As histórias que comprovam sua dedicação para projetar a banda nacional e internacionalmente estão dentre as muitas narradas no seu primeiro livro, Memórias de um motorista de turnês, lançado pela Cepe Editora neste ano e que, após ter esgotado em tempo recorde, ganha nova tiragem.
Na publicação, ele conta, sem o rigor da ordem cronológica, muitos causos que viveu e testemunhou, como observador do mercado musical, como ouvinte, como fã, dono de loja de discos e também produtor da Chico Science & Nação Zumbi, de diversos outros artistas e realizador do Abril pro Rock.
Após a “turnê” de divulgação do livro, através de palestras, debates e entrevistas, o produtor pretende se debruçar sobre a narração da história do Abril pro Rock e de sua trajetória com Chico Science & Nação Zumbi. A publicação já tem nome, Inconformados, e um público ávido por ler esse material – uma forma de o leitor aplacar a ausência de Francisco de Assis, morto em 2 de fevereiro de 1997, e até hoje um trauma coletivo na vida cultural pernambucana e especialmente na de Paulo André, que, para colocar no papel essas memórias, precisa lidar com as emoções que elas lhe despertam.
Chico Science morreu, com apenas 30 anos, indo para uma festa em Olinda. O acidente automobilístico chocou o país. Não se pode afirmar que o artista estava no auge, pois ele tinha ainda possibilidade imensa de ganhar visibilidade e reconhecimento maiores, tanto no Brasil, quanto no exterior. Mas a sua morte foi tão impactante quanto a de outros nomes da música mundial que partiram precocemente, como Kurt Cobain, Janis Joplin, Jim Morrison, Jimi Hendrix...
Paulo André e Chico Science tinham praticamente a mesma idade, o produtor é de 1967 e o cantor, de 1966. Em outubro de 1993, eles passaram o mês no Rio de Janeiro e a gravadora Sony Music começou “a dar certa pressão porque eu não tinha experiência”. Mas o artista insistiu no nome do pernambucano. “Eu não tinha estrutura realmente, eu trabalhava no meu quarto, como escritório, na linha residencial da minha mãe. Ninguém sabia disso, mas o telefone que está lá em Da Lama ao Caos era a linha da minha casa.” Paulo não tinha assistente oficial. As ligações eram atendidas por sua irmã Sonally. Às vezes, eram 10, 12 ligações para as quais ele precisava dar retorno.
Página de recados de ligações telefônicas deixados para Paulo
André por sua irmã. Imagem: Acervo pessoal/Cortesia
De alguma forma, esse esquema funcionava e o produtor conseguiu agendar centenas de shows internacionais para Chico Science & Nação Zumbi nos mais diversos países. “Eu sabia que a gente estava vivendo um momento histórico, independentemente de qualquer coisa. Eu tinha essa consciência e eu falava pro Chico”. O mangueboy passou um bom tempo ameaçando voltar para o seu emprego na Emprel, até que finalmente foi convencido de que a banda iria vingar. “A gente tomou essa decisão de investir muito no mercado internacional”, afirma Paulo. A estratégia ia contra a vontade da gravadora Sony, que preferia o investimento no mercado nacional. Mas, diante de um país dominado pela axé music, pagode e sertanejo, para artistas como Chico Science & Nação Zumbi, que faziam um som tão peculiar, inovador, nem um pouco comercial e que caberia dentro da classificação inespecífica da world music, a saída ainda era o aeroporto mesmo.
Para Paulo, dois aspectos foram determinantes para ele e a banda conseguirem realizar tantos shows internacionais: ser fluente em inglês e a experiência com direção. “Seria inviável a gente ter andado tudo aquilo com um motorista contratado”, avalia. E são agora essas histórias de motorista, muitas hilariantes, que ele conta no seu livro e com muita disposição nas palestras. É indisfarçável o prazer que ele tem em contá-las. Parodiando o clássico do forró, todo tempo quanto houver pra ele é pouco.
A autodenominação “motorista de turnês” não é problema pra ele. Porém, nunca quis ser chamado de empresário. “Eu sou um produtor cultural. Nunca fui um vendedor de shows, nunca quis isso, inclusive com coisas mais comerciais que me propuseram. Eu quis gerenciar carreiras. O livro é uma tentativa de desmistificar o papel do produtor. E, pra fazer uma turnê internacional daquele jeito, é preciso um nível de empreendedorismo muito grande. Então, por isso, eu terminei o livro dizendo que não importa o tamanho do veículo, mas a forma como se dirige. Metaforicamente, era isso.”
“O empreendedorismo cultural, que já era extremamente necessário para você sair do lugar sem esperar da gravadora, de um grande empresário, de algum apadrinhamento, hoje é muito mais necessário, porque a concorrência aumentou. Naquela época, tinha muita banda legal, mas não havia as ferramentas de se divulgar e não tinha uma gravadora para se lançar. Então, é óbvio que eu prefiro o mundo como ele é hoje, em que todo mundo pode se lançar. Imagina caras de cinco gravadoras decidirem quem ia ser contratado e lançado no Brasil”, pondera.
Depois de Chico Science & Nação Zumbi, Paulo André produziu outros artistas como DJ Dolores y Orquestra Santa Massa, Siba e a Fuloresta, Cascabulho e Cabruêra, com turnês internacionais pelos Estados Unidos, Canadá e Europa. Além do Abril pro Rock, também criou outras iniciativas, como o Porto Musical e a Associação dos Festivais Independentes (Abrafin). E também fez curadoria para outros eventos, como a Womex (World Music Expo).
Hoje, com 55 anos e três filhos, o produtor diz não ter mais a mesma disposição para enfrentar aquela correria de turnês de quase 30 anos atrás, mas vem realizando muitas palestras para plateias diversas. Em um encontro recente com estudantes de uma escola pública, ele deu o seguinte conselho: “Galera, eu tenho duas coisas pra falar pra vocês e elas têm a ver com música. Eu vou usar um funk antigo que, apesar de não ser da geração de vocês, tenho certeza que todos conhecem, que diz assim, ‘Ado, ado, ado/ Cada um no seu quadrado’. Pessoal, não. Seja o quadrado da família, seja o quadrado da rua, seja o quadrado do bairro, da igreja, da turma, sempre estejam abertos a irem a outros quadrados. A vida tem muita coisa pra ser vivida e vista. E a outra música é de Zeca Pagodinho, que diz assim, ‘Deixa a vida me levar, vida leva eu’. Não, pessoal, não deixem a vida levar vocês. Levem a vida. Vocês é que levam a vida. Não deixem o tempo passar”.
Memórias de um motorista de turnês foi lançado
este ano pela Cepe e já se encontra em segunda
impressão. Imagem: Divulgação
Na época em que Paulo André Moraes Pires começou, praticamente não existia esse tipo de palestra, de produtor cultural, de economia criativa, de produtor musical. “Minha geração bateu cabeça fazendo. Não teve apadrinhamento, nem coisa do tipo.” Hoje, as oportunidades de se obter conhecimento são muitas. Em outra palestra, desta vez no Armazém da Criatividade, do Porto Digital, em Caruaru, ele participou de um encontro com alunos. “Dei uma geral no mercado brasileiro, um pouco da história, mercado internacional e tal. No outro dia, a professora Izabela Domingues mandou um feedback. Uma das alunas agradeceu e disse: ‘Depois da palestra de ontem, eu tive certeza, eu vou ser produtora cultural’”.
DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.