Na manhã de 5 de setembro, a resolução da indicação ao Oscar foi divulgada em comunicado à imprensa assinado pela produtora cearense Bárbara Cariry, presidente da comissão de seleção da Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais: “A escolha de Marte Um para representar o Brasil no Oscar 2023 foi uma decisão democrática e importante do júri. O filme trata de afeto e de esperança, da possibilidade de seguir sonhando em meio a tantas dificuldades econômicas e políticas. Marte Um sintetiza bem o cinema brasileiro, com qualidade narrativa e técnica, que vem sendo realizado hoje, representando a diversidade do país”.
Ao sublinhar o afeto e a esperança, e a “possibilidade de seguir sonhando em meio a tantas dificuldades econômicas e políticas” semanas antes do resultado do segundo turno das eleições presidenciais, a justificativa não poderia ter sido mais apropriada. O enredo de Marte Um se ancora na família formada por Tércia (Rejane Faria) e Wellington (Carlos Francisco) e seus filhos Eunice (Camilla Damião) e Deivinho (Cícero Lucas), nos dias transcorridos logo após a eleição de 2018 e a confirmação de Jair Bolsonaro como presidente eleito do país.
Deivinho joga futebol com maestria e o pai deposita nele o sonho de vê-lo como atleta profissional do seu Cruzeiro de coração; mas o que o garoto quer, mesmo, é ser astrofísico. Eunice, que todos chamam de Nina, pensa em se mudar com a namorada Joana (Ana Hilário), mas não sabe direito como assumir seu relacionamento ou a vontade de sair de casa. Tércia cumpre sua rotina de faxinas, mas fica abalada ao presenciar uma pegadinha e se achar refém de uma maldição. E Wellington, funcionário exemplar de um condomínio de moradores brancos, orgulha-se dos quatro anos de sobriedade nos Alcoólicos Anônimos.
Eles vivem e se viram nos seus corres na Contagem natal de Gabriel Martins, cidade de 400 mil habitantes na região metropolitana de Belo Horizonte, que havia sido cenário do seu longa anterior, No coração do mundo (2019), uma codireção com Maurílio Martins. Juntos, os dois são metade da Filmes de Plástico, quarteto complementado por André Novais Oliveira e Thiago Macêdo Correia. Todos eles têm créditos como produtores de Marte Um e são recorrentes, em múltiplas funções, nas fichas técnicas dos curtas e longas do coletivo, a exemplo de Temporada, de 2018, dirigido por André, produzido pelos quatro e chancelado pela empresa fundada em 2009.
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Agora em dezembro, Marte Um – título inventado a partir de Mars One, projeto do engenheiro holandês Bas Lansdorp, que em 2011 quis instalar a primeira colônia humana no planeta – terá um teste de proporções siderais: no dia 21, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anunciará a short list, ou a lista semifinalista da categoria de melhor filme internacional, com 15 títulos distinguidos das mais de 90 submissões do mundo inteiro.
Estão no páreo, entre outros, Argentina, 1985, de Santiago Mitre; Close, do belga Lukas Dhont (Grande Prêmio do Júri em Cannes); o francês Saint Omer, de Alice Diop; o indiano Last film show, de Pan Nalin; o mexicano Bardo, de Alejandro Gonzáles Iñarritú (indicado em 2000 por Amores brutos e apontado como melhor diretor por Birdman e O regresso, em 2014 e 2015, respectivamente); o argelino Our brothers, de Rachid Bouchareb; o espanhol Alcarras, de Carla Simon (Urso de Ouro na Berlinale); e o coreano Decision to leave, de Park Chan-wook.
Os cinco indicados serão revelados em 24 de janeiro e a 95ª cerimônia do Oscar ocorrerá em 12 de março, no Dolby Theatre, em Los Angeles, na Califórnia.
“Vamos torcer para chegarmos nessa short list de dezembro e para conseguir a indicação em janeiro. São coisas históricas para o Brasil. A última vez em que chegamos na short list foi em 2007. E uma indicação foi há quase 25 anos… Tem muito tempo. Acho que tem muita coisa massa rolando e, de tantos encontros que Marte Um proporcionou, esse pode ser um”, diz Gabriel Martins à Continente em uma entrevista por chamada de vídeo, em setembro, quando ele já sabia que passaria a maior parte de novembro na campanha de publicidade para os votantes da Academia. “A gente tem que estar nesse corpo a corpo mesmo. Não me incomodo.”
O ator Cícero Lucas no papel de Deivinho, o menino que quer ser astrofísico.
Foto: Embaúba Filmes/Divulgação
Em 2007, O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, chegou à penúltima rodada. Da década de 1990 saíram as três últimas indicações nacionais ao Oscar de melhor filme estrangeiro, como a categoria era denominada até 2019. Em 1996, O quatrilho, de Fábio Barreto, perdeu para o holandês A excêntrica família de Antonia, de Marleen Gorris. Em 1998, foi a vez do irmão de Fábio, Bruno Barreto, concorrer com O que é isso, companheiro?, sendo derrotado mais uma vez para o representante dos Países Baixos, o excepcional Caráter, de Mike van Diem.
No ano seguinte, Central do Brasil, de Walter Salles, representou o Brasil com um currículo impressionante: Urso de Ouro de melhor filme e Urso de Prata de melhor atriz para Fernanda Montenegro, em Berlim, e as láureas de filme estrangeiro nos Golden Globes, nos EUA, e no Bafta, na Inglaterra. No entanto, quem saiu com a estatueta dourada foi o italiano Roberto Benigni, por A vida é bela. Benigni ainda arrebataria o troféu de melhor ator. Fernanda… bem, ela perderia o Oscar de melhor atriz para Gwyneth Paltrow por Shakespeare apaixonado, numa derrota que a veterana Glenn Close descreveria em 2020 com a seguinte frase: “Não faz o menor sentido”.
Antes de tudo isso, nossa primeira indicação ao Oscar tinha sido em 1963, com O pagador de promessas, de Anselmo Nunes, vencedor da Palma de Ouro em Cannes no ano anterior. O cinema brasileiro também figurou na mais glamourosa das festividades da indústria cinematográfica em 2001, quando o curta-metragem Uma história de futebol, de Paulo Machline, apareceu no top 5 da categoria ficcional; em 2004, com Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, indicado a melhor diretor, roteiro adaptado, fotografia e edição; em 2016, com O menino e o mundo, de Alê Abreu, um dos finalistas para melhor animação; e em 2020, com o documentário Democracia em vertigem, de Petra Costa.
Contudo, até hoje, mesmo tendo sido o primeiro país da América do Sul agraciado com uma Oscar nomination, como se diz no idioma da premiação, o Brasil nunca celebrou uma vitória. A Argentina levou em 1986 (A história oficial, de Luis Puenzo) e em 2010 (O segredo dos seus olhos, de Juan José Campanella) e o Chile ganhou em 2018, com Uma mulher fantástica, de Sebastián Lelio.
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“É um espelho da minha infância, eu era bem esse garoto que usava óculos, com cara de nerd, e como o Deivinho, sou muito sonhador também”, pontua Gabito, como o diretor é conhecido pelos amigos. Como não sonhar, portanto, com mais essa decolagem de Marte Um? Por que não esperar que tal marco possa ser obtido com um filme protagonizado por negras e negros e viabilizado pelo edital lançado em 19 de janeiro de 2016 pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura e pelo Fundo Setorial do Audiovisual, intitulado Chamada pública Longa BO afirmativo (“BO” é sigla para “baixo orçamento”)?
A redação do edital era peremptória: “A presente chamada pública destina-se, exclusivamente, à seleção de 3 (três) projetos de produção independente de obras cinematográficas de longa-metragem de baixo orçamento, inéditas, de ficção, com uso ou não de técnicas de animação, com temática livre, dirigidas por cineastas afro-brasileiros e/ou negros”. E um dos objetivos era “ampliar o protagonismo de novos cineastas afro-brasileiros e/ou negros na produção audiovisual nacional”.
O ator Carlos Francisco interpreta Wellington, que é porteiro e adora futebol.
Foto: Embaúba Filmes/Divulgação
Marte Um recebeu cerca de R$ 1,25 milhões deste edital (que nunca mais se repetiu, cumpre frisar) e foi feito por uma equipe majoritariamente preta, de tom de pele igual a mais da metade dos 212,7 milhões de habitantes do Brasil. Nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Características Gerais dos Moradores, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE em julho passado, irrompe a constatação de que, entre 2012 e 2021, mais pessoas se autodeclararam pretas, em um crescimento de 7,4% para 9,1%, e pardas – de 45,6% para 47% – na população total do país. Proporcionalmente, pode-se inferir, segundo o IBGE, que em uma década “a população que se declarou preta cresceu 32,4% e a parda, 10,8%, taxas superiores ao crescimento da população total do país (7,6%)”.
Entretanto, esse contingente maciço da população ainda se vê pouco nos filmes, nas séries e nas novelas. São “milhões de pessoas a quem artificiosamente inculcaram o medo, o complexo de inferioridade, o estremecimento, a genuflexão, o desespero, a subserviência”, na voz de Aimé Césaire, em Discurso sobre o colonialismo. Obra seminal sobre racismo, fascismo e fantasmas coloniais, publicada em 1950 por este poeta surrealista negro nascido na República da Martinica, foi usada como epígrafe na introdução de Pele preta, máscaras brancas, do compatriota Frantz Fanon, relançado no Brasil em 2020, pela editora Ubu.
Representatividade, eis um dos alicerces a testemunhar a relevância deste longa-metragem no Brasil de 2022, em cuja trama a família protagonista não está acondicionada em uma roupagem de subalternização ou circunscrita a aspectos da criminalidade, e, sim, livre para exercitar carinho, coragem e cuidado e cultivar a esperança de almejar as estrelas.
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O roteiro de Marte Um começou a ser rascunhado em 2014. “Primeiro veio a imagem de um menino que é muito bom de bola, mas, mesmo podendo ter uma carreira ou futuro nisso, ele tem um outro sonho, que é menos óbvio ou menos palpável, talvez, para um garoto da origem dele. E aí vêm os questionamentos do porquê desse sonho não ser óbvio nem próximo desse garoto. Eu também estava refletindo, e isso era bem perto da Copa do Mundo do Brasil, sobre uma crise de identidade no nosso país. Uma crise que tinha a ver com nossa história e com a nossa maneira de ver as possibilidades de futuro. Muitos conflitos geracionais, muitas demandas de grupos diferentes não conseguiam se comunicar… De uma certa forma, deu no que deu: um Brasil muito dividido. Para além disso, queria pensar o centro da família brasileira que, no caso do filme, é negra, que acorda, trabalha, tem sua rotina, se separa, se une. A lógica do planeta pontua uma ideia mais existencial. Porque eu queria falar da rotina muito prática de trabalho, que tem a ver com questões terrenas, mas ao mesmo tempo falar de uma coisa muito maior: o que estamos fazendo aqui no mundo? Como nos relacionamos com o outro?”, situa Gabriel Martins.
Ele continua: “E queria falar de um garoto sonhador, que tem a ver comigo, muito interessado por ciência, pelo espaço, por ficção científica e também muito fã de Star Wars, e de um rito de passagem que é também sobre romper o lugar da ausência da comunicação. Porque a gente precisa falar sobre as coisas, né? Verbalizar sentimentos. Ao longo da história do filme, as pessoas não conseguem ser ouvidas: o pai não ouve o Deivinho, a mãe não escuta a Nina… Acho que tem uma solidão ali, em todo mundo, que vai se tornando menor. E esse é um rito de passagem que talvez até eu, como cineasta, cumpra no gesto de fazer um filme que rompe o silêncio sobre certas narrativas negras possíveis”.
Nesse sentido, Marte Um é tanto um posicionamento político, fruto do empenho e do repertório de um dedicado realizador com consciência do seu lugar e da sua capacidade de concretizar “certas narrativas negras possíveis”, como uma obra que dialoga com plateias diversas. Na narrativa fílmica, há fluidez e aquele contrato de suspensão da realidade, ou melhor, da transferência desta realidade para o enredo ficcional que se descortina em duas horas de projeção. Na sala de exibição, a encarar o écran como Deivinho mira o firmamento, ou mesmo diante da televisão, com o longa já disponível nas plataformas VOD (video on demand), como Claro TV+ e Vivo Play, e com a chance de vê-lo em família, como Wellington, Tércia e a prole jogando carteado em uma das sequências, somos fascinados pela criação daquele cotidiano e pelos dramas íntimos dos personagens, identificando-nos com cada um.
Em um momento, entendemos Deivinho e seu anseio interestelar e torcemos pela paixão LGBT+ de Eunice e Joana; em outro, mergulhamos na angústia de Tércia e acompanhamos a teimosia de Wellington em fantasiar o herdeiro como um craque azul e branco. Tecendo com delicadeza aquela urdidura dramática, com auxílio de parceiros habituais como o diretor de fotografia Leonardo Feliciano, a diretora de arte Rimenna Procópio e Maurílio Martins e Guto Parente na montagem, Gabriel Martins esculpe um cinema de consistência, qualidade e fácil comunicação com o público, à altura das influências que ele desfia na conversa com a Continente: Milton Nascimento, o Clube da Esquina e Gilberto Gil, John Cassavetes, em especial Uma mulher sob a influência (EUA, 1974), e Charles Burnett e O matador de ovelhas (EUA, 1978), um dos títulos fundamentais do conjunto de filmes da L.A. Rebellion e referência direta para Marte Um.
Negro, Burnet filma o cotidiano de uma família de pele igual à sua e operária como milhares de descendentes dos escravizados que começaram a chegar aos Estados Unidos ainda no século XVI, no tráfico proibido apenas no século XIX. “Esse é um filme que já vem me influenciando há mais tempo, por ser sobre cotidiano e sobre filmar um espaço e as pessoas ali, uma família tentando se entender. Assim como o Cassavetes me influencia muito na forma de pensar a família e a dinâmica de relações e atuação naqueles cômodos da casa. São obras que me acompanham desde sempre, como a música de Milton e Gil”, revela Gabito.
Se Charles Burnett é um farol para Gabriel, é provável que ele se apresente assim também para outros jovens realizadores negros em um país onde o setor audiovisual é clivado e impactado por recordes de raça e gênero.
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Em 2020, o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), ligado ao Instituto de Estudos Sociais e Políticos – IESP da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, publicou seu boletim de número 7, uma edição especial nos 10 anos do grupo fundado em 2008.
Intitulado Raça e gênero no cinema brasileiro – Desigualdades entre diretores(as), roteiristas e personagens de filmes nacionais de grande público, de autoria de Marcia Rangel Candido, Juliana Flor e Jefferson Belarmino de Freitas, o boletim apresenta “resultados que correspondem à observação das principais funções (direção, roteiro e atuação) dos 10 filmes brasileiros de maior público entre os anos 1995 e 2018, excluídos os gêneros documentário, animação e infantojuvenil”, em cotejo com a listagem dos longas-metragens lançados no período, obtida no site do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), um órgão da Agência Nacional do Cinema – Ancine. “Vale pontuar que os primeiros colocados em termos de público costumam concentrar grande parte do total de pessoas que frequentam as salas de cinema”, adverte o relatório.
O primeiro gráfico explicita o desnível abissal que ratifica a desigualdade racial no cinema: “O grupo social que aparece menos representado em todas as principais funções do cinema brasileiro é o de mulheres pretas e pardas, que não exerceu atividade de direção e roteiro em nenhum dos 240 filmes analisados; constituindo também apenas 4% do elenco selecionado para os longas-metragens. Homens pretos e pardos têm um desempenho levemente melhor e são 2% dos diretores, 3% dos roteiristas e 13% dos personagens”.
Em contrapartida, de acordo com o estudo comparativo, “o gênero masculino de cor branca, por sua vez, domina todas as funções, principalmente as de construção narrativa, como as de diretor (84%) ou roteirista (71%), sendo ainda 49% do elenco”. Das 240 obras em questão, apenas cinco podiam ser comparadas a Marte Um, com roteiro e direção de um negro, e nenhuma era similar a Amor maldito, de Adélia Sampaio, que em 1984 se tornou a primeira mulher negra a dirigir um longa no Brasil.
“Para mim, Marte Um é um aquilombamento”, enxerga Camilla Damião, que em Eunice tem seu primeiro personagem num longa. “Estou no início da minha história e ser dirigida por um diretor negro é quase poder se ver no espelho, sabe? Todos nós viemos de um processo de pessoas brancas que contam nossas histórias do ponto de vista delas. E quando Gabriel vem com esse roteiro, com essa família, não é só a história da Nina e do Deivinho, mas a minha história e de várias pessoas desse país que geralmente não têm suas histórias mostradas na TV ou no cinema. Marte Um é um quilombo urbano. E é a nova cara do cinema brasileiro, a nova maneira de contar histórias. Sempre tenho dito isso nas entrevistas”, comenta a atriz, que falou à Continente em trânsito para o litoral do Rio Grande do Norte, onde participaria da noite de abertura da 9ª Mostra de Cinema de Gostoso.
Camilla Damião faz o papel de Nina, que quer contar à familia sobre o namoro
com Joana (Ana Hilário). Foto: Embaúba Filmes/Divulgação
“Um dos tentáculos do racismo é desumanizar as pessoas negras. E o filme consegue resgatar a nossa humanidade de uma maneira muito nossa, mas atinge uma linguagem universal que atravessa qualquer tipo de barreira. É muito bonito ver essa humanidade despertada a partir de personagens negros como o menino que quer colonizar Marte. É uma história que todas as pessoas conseguem acessar”, acrescenta Camilla.
É verdade: de janeiro até agosto, Marte Um circulou por mais de 40 festivais e mostras internacionais. Ganhou o prêmio de melhor filme do público do San Francisco International Film Festival, em abril, na Califórnia, e o troféu de melhor longa do Black Star Film Festival, em agosto, na Filadélfia.
Intérprete de Tércia, Rejane Faria esteve no Black Star, como contou à reportagem. Figura chave para Marte Um, foi ela quem indicou Camilla, com quem dividiu o set de uma série televisiva rodada em Belo Horizonte e, foi ela que, com Carlos Francisco, que faz seu par Wellington, havia estrelado Rapsódia para o homem negro (2015) e Nada (2017), curtas dirigidos por Gabriel. Para a atriz, Tércia é “puro movimento, uma mulher sempre pronta para acolher, que gosta de dançar, trabalha fora e está alçando pequenos voos, mas ainda é presa a uma estrutura do passado”.
Mesmo com uma sólida carreira, Rejane Faria conta que ficou insegura quando o diretor a abordou para lhe dar seu primeiro papel como protagonista de um longa-metragem. “Quando ele me disse que estava escrevendo o roteiro desde 2014 e o tempo todo pensava em mim para essa personagem, é lógico que falei para ele que estava OK, que queria fazer, mas tive um pouco de insegurança. É evidente! Porém, pelo roteiro, vi que era algo pulsante, mesmo difícil de fazer, e embarquei no sonho dele e no Marte Um”, comentou em uma conversa por WhatsApp na primeira semana de novembro, do interior da Paraíba, onde estava prestes a começar as filmagens de Yellow cake, do cineasta pernambucano Tiago Melo.
Na Filadélfia, ao acompanhar o festival Black Star, ela se deu conta de que estava ajudando a engendrar uma história sem fronteiras. “Quando vi o filme pela primeira vez, em janeiro, era uma sessão no dia da exibição em Sundance. Então tinha outra energia e me peguei nos detalhes do meu trabalho como atriz. Aí, quando fomos ao Black Star, que é o maior festival de cinema negro do mundo, assisti com atenção e a reação do público me impressionou… Muita emoção, muito choro. Percebi que esse filme é universal. Está tocando em um lugar que não distingue as condições geográficas. Está tocando no coração das pessoas.”
Rejane Faria vive a faxineira Tércia, que acredita estar sob uma maldição.
Imagem: Embaúba Filmes/Divulgação
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Mineira como Rejane, Camilla e Gabriel, Lélia González foi professora, filósofa e antropóloga, ativista pioneira na reflexão sobre a cultura negra no Brasil e cofundadora do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro. Múltipla, ela ainda participou ativamente da gênese do Movimento Negro Unificado e do Olodum. Segundo o Geledés – Instituto da Mulher Negra, ela é “a primeira intelectual negra no país”, descrita assim no Dicionário Mulheres do Brasil e na Enciclopédia Encarta Africana e em Mulheres Negras do Brasil.
Falecida precocemente aos 59 anos, em 1994, Lélia deixou uma incontornável contribuição teórica e política para os estudos de gênero e raça. E definiu, de modo incisivo: “Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo: negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial neste país, vai ser muito difícil, no Brasil, chegar ao ponto de efetivamente sermos uma democracia racial”.
Não adianta, para nossa nação, cindida pelas chagas dos séculos de escravização que trouxeram ao Brasil mais de quatro milhões de negras e negros arrancados à força de seus países, celebrarmos a pujança da produção contemporânea de cineastas negras e negros de outros países se não agirmos efetivamente para transformar nosso status quo.
Sem dúvida, é importante monitorar as carreiras de norte-americanos como Ava Duvernay (Selma e a série Olhos que condenam), Jordan Peele (Corra! e Não, não olhe) e Spike Lee, que em 1989 já se insurgia com seu Faça a coisa certa e, entre mais de 20 longas, estabeleceu posicionamentos fundamentais em obras como Malcom X e BlacKkKlansman.
E é incrível, também, vibrar com Ladj Ly, filho de imigrantes malineses que, em 2019, tornou-se o primeiro cineasta negro francês a competir no Festival de Cannes (de onde saiu com o Prêmio do Júri, dividido com Bacurau, dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles). Seu Os miseráveis foi, também, o primeiro candidato da França ao Oscar de filme internacional dirigido por um negro. Como Marte Um.
Mas é imperativo apoiar, prestigiar e referendar o audiovisual contemporâneo pensado e produzido pelas realizadoras negras e cineastas no país de dimensão continental. Porque são essas pessoas que vão nos empurrar, como nação, à representatividade merecida. “A arte é libertadora, porque nos leva à visão não na questão adoecida, de sofrimento, mas da possibilidade do sujeito negro de se enxergar numa outra posição que não a de objeto”, pontua a psicóloga Késia Rodrigues.
“Somos acostumados a ver negros no lugar da criminalidade, do racismo, do sofrimento. Em Marte Um vemos uma criança sonhando, uma criança que não quer ir para o lugar do esporte e, sim, ser astrofísico, ou seja, o filme também coloca o corpo negro em um desejo intelectual. E cria outras narrativas sobre nossa história multifacetada, tirando as personagens negras do lugar do sofrimento ou da alienação e criando uma personagem que deseja um amor para além de heteronormatividade. É um grande avanço, se formos pensar na arte de 20 anos atrás ou mesmo em Cidade de Deus, filme em que os negros apareciam como criminosos ou na subserviência de pessoas brancas. Durante muito tempo, o negro no cinema nacional sempre precisou de um branco para existir”, corrobora a psicoterapeuta mineira e analista em formação com passagem por grupos de estudo do Instituto AMMA Psique e Negritude, organização não governamental “pautada pela convicção de que o enfrentamento do racismo, da discriminação e do preconceito se faz necessariamente por duas vias: politicamente e psiquicamente”.
Para Késia, o enfrentamento político, psíquico e cultural se dá em uma certeza: basta de miséria e sujeição. “O sujeito negro foi enraizado em um lugar de dominação racial, mas acredito que agora essa disputa de narrativa conseguirá tensionar a história sobre o Brasil, sobre nós e nossa colonização, de forma que figuras negras e dos povos originários e quilombolas possam reescrever suas narrativas. A educação é muito importante, mas a arte consegue alcançar um lugar muito afetivo da imagem e do reconhecimento. Um filme como Medida provisória, feito por uma equipe majoritariamente de pessoas pretas, é essencial para tirar o negro da posição de assujeitado”, defende.
Ela se refere ao longa Medida provisória, de Lázaro Ramos, e às obras de Jeferson De, que em 2000 instituiu o Dogma Feijoada e o manifesto Gênese do cinema negro brasileiro, como imprescindíveis nesse contexto. “Além dessa representatividade nas telas, uma pauta que tenho defendido bastante é expandi-la para os lugares da política. Para não ficar uma representatividade dentro de uma semiótica, sem chegar ao concreto. A população negra é 56% do país, mas ainda é subrrepresentada nos espaços de tomada de decisão”, alerta.
Os atores Alfred Enoch e Taís Araújo, em cena de Medida provisória.
Foto: Mariana Vianna/Divulgação
Talvez seja por isso também que, na visão de Carmen Luz, a escolha de Marte Um para representar o Brasil no Oscar seja uma modalidade de reparação histórica e política. “Penso que é um jeito inteligente do cinema brasileiro de voltar às suas práticas de fomento que existiram até 2016, até o golpe de Estado que vitimou a presidenta Dilma Rousseff e todas as políticas progressistas existentes e em vias de existir”, condensa a cineasta carioca.
“A sensibilidade política de Marte Um, e da vertente contemporânea do cinema negro da qual ele é parte, fortalece o momento de composição e recomposição da sociedade brasileira. Isso tem a ver com uma certa proposta de fazer o Brasil se encarar no espelho e perceber o comum nas diferenças; e tem a ver, também, com a conquista de parte de uma série de demandas e lutas históricas do movimento negro brasileiro”, complementa.
Carmen já atuou como curadora do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, cuja 15ª edição transcorreu em outubro, em salas da capital fluminense, um evento crucial para cimentar a difusão desta mesma “vertente contemporânea do cinema negro” ao qual ela alude.
“Participo dele desde a primeira edição como cineasta, palestrante, mediadora, professora de oficinas de formação e também como curadora. Quem idealizou o encontro foi o Zózimo, mas como tive a oportunidade de conviver com ele, acabei estando presente enquanto o festival era sonhado e gestado por ele”, lembra a diretora de Um filme de dança (2013), documentário que radiografa corpos negros em trajetória de excelência artística em diferentes vertentes e companhias de dança. Falecido em 2013, aos 75 anos, Zózimo Bulbul, cujo nome de batismo era Jorge da Silva, foi um ator, produtor e roteirista essencial na cinematografia afro-brasileira.
Curioso que Carmen mencione o ato de sonhar antes de a Continente lhe inquirir sobre a coincidência/convergência da estreia de Marte Um e do subsequente início da sua jornada rumo à indicação ao Oscar com a reta final das eleições presidenciais.
“O lançamento naquele momento estimulou a possibilidade de se acreditar numa mudança, mas também de uma espécie de olhar Sankofa para a gente andar para frente. O filme funcionou como uma bandeira de luta para termos esse olhar Sankofa e alimentarmos aquela ideia do Paulo Freire do esperançar. Gabito e seus companheiros tiveram a sensibilidade de ver, sentir e entender que uma nação constituída de muitos povos negros e indígenas nunca deixou, nem pode deixar, de sonhar. Sonhar é a mesma coisa que viver. Nós, negros, não fazemos nada mais do que lutar, ou seja, viver para existir e para provar que somos seres que merecem, como outros seres, exisitirmos plenamente. E o sonho é essa possibilidade de invenção de outros mundos para além desse”, opina.
Sankofa é um dos ideogramas do sistema de escrita Adinkra, conjunto de símbolos que traduzem as ideias emanadas de provérbios, manejado pelos povos acã da África Ocidental. Nesse provérbio-símbolo em específico, assim explica o site do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros – Ipeafro, o lema é: “nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás”.
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Em Nome de batismo – Alice, vencedor do prêmio de melhor curta-metragem do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários em 2017, a realizadora pernambucana Tila Chitunda faz o exercício de voltar e apanhar o que ficou para trás – no caso, a própria história de sua família.
“Meus pais são angolanos, fugiram da guerra civil na década de 1970, já com cinco filhos na época, e só eu nasci no Brasil nesse contexto de retomada de vida. Na minha infância, em Olinda, eu tinha muita dificuldade de entender o meu lugar, porque estudava numa escola particular onde não existiam pessoas iguais a mim”, recorda a realizadora em uma conversa virtual numa manhã de novembro, ela no fuso horário da Suíça, onde vive desde 2016.
“E o racismo está tão enraizado na sociedade brasileira, que, até hoje, uma pessoa em situação de vulnerabilidade social se espanta ao pedir esmolas na casa de minha mãe quando ela lhe responde que é a dona da casa. No imaginário daquela pessoa, uma mulher preta, morando em um bairro de classe média em Olinda, não poderia ocupar aquele lugar”, acrescenta.
Tila Chitunda, diretora do curta Nome de batismo – Alice.
Foto: Ji Nakamura/Estúdio Romã/Divulgação
Tila sustenta que, do curso de Rádio e TV, na Universidade Federal de Pernambuco, enveredou para a produção audiovisual porque “queria contribuir para construção de outros imaginários, de outras narrativas que envolvessem as pessoas negras”. Em Nome de batismo – Alice, esta integrante da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro – APAN, instituição fundada em 2016, viaja a Angola natal dos seus pais para conhecer suas primas e tios, suas tias e primos, sua herança, seu passado e seu futuro.
“Como realizadora, creio que uma parte da minha produção está muito ligada à busca da minha ancestralidade, até por causa do deslocamento que meus pais fizeram. Mas também parto de histórias que são minhas, como em Deslocamentos, paraíso e caos, curta que fiz a convite do Instituto Moreira Salles em 2020, no qual falo da minha condição de mãe de duas crianças pretas, de não estar mais no Brasil e de viver uma pandemia vendo o que aconteceu com George Floyd nos EUA e todo esse levante de intolerância étnica e racial, para falar do mundo, de algo que todos nós podemos ver e viver aqui.”
Gabriel Martins, André Novais Oliveira e a Filmes de Plástico, Yasmin Thayná, Renata Martins, Jeferson De, Juliana Vicente, Viviane Ferreira e Grace Passô são nomes citados por Tila como referências na realização audiovisual contemporânea negra no Brasil. “Acho importante poder contar histórias a partir da experiência da gente, dos pontos de vista da gente, pois até agora a História predominante é masculina, branca e heteronormativa. Acredito que só a partir do momento que nós, as mulheres, as pessoas pretas, indígenas e LGBTQIAP+ ocuparmos de forma regular e massiva os espaços de poder, que incluem os espaços de realização e exibição de filmes, as diversidades culturais, étnicas, sexuais e religiosas serão percebidas como um valor positivo, e não uma ameaça à sociedade. Cinema é poder. Como tal, contribui para a construção e desconstrução de pensamento e de visão do mundo”, alinhava.
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Nos dois meses que separaram o anúncio do postulante do Brasil à indicação ao Oscar de melhor filme internacional e o fechamento desta reportagem, toda a tripulação de Marte Um não parou. Em setembro, Gabriel Martins foi um dos convidados do casal Lázaro Ramos e Taís Araújo ao jantar em homenagem à atriz norte-americana Viola Davis, protagonista de A mulher rei (2022), ela mesma vencedora de uma estatueta de melhor atriz coadjuvante por Um limite entre nós (2016). “Já tinha sido incrível poder estrear no mesmo ano do Medida provisória. Até troquei uma ideia com o Lázaro antes do lançamento para ouvir sua experiência e pegar um pouco desse axé que o filme dele trouxe”, assinala.
O axé chegou, sem dúvida. “O filme superou 85 mil espectadores, um número excelente. A trajetória do filme tem a ver com o momento do país, com a mensagem de esperança e otimismo, mas também com o trabalho autoral forte da Filmes de Plástico, que sempre buscou um cinema de qualidade em diálogo com o público mais amplo. Nosso recorde anterior era de Arábia, de Affonso Uchoa e João Dumans, com 12 mil. O próprio No coração do mundo teve 8 mil espectadores. Logo, Marte Um é o nosso blockbuster”, brinca Daniel Queiroz, um dos sócios da distribuidora Embaúba Filmes.
Na última sexta-feira de outubro, o produtor Thiago Macêdo Correia supervisionava, dos EUA, a logística das sessões exclusivas para a Academia. Embora tenso com o resultado – naquele momento ainda incerto – das eleições presidenciais, ele estava feliz. “Sou de uma família humilde de Teófilo Otoni, no interior de Minas Gerais, e Gabriel, Maurílio e André são da periferia de Contagem. Compreendemos a realidade da vida com restrições. Não crescemos com exemplos possíveis do que conseguiríamos alcançar e nem o próprio cinema, quando começamos, era um sonho possível, porque era limitado a uma elite. Não somos da elite: fomos lá e tomamos de assalto um espaço que não era nosso. Hoje estamos no lugar representado pelas narrativas que escolhemos contar, como essa de um cineasta preto sobre uma família vivendo dramas comuns. E agora queremos que outras pessoas se sintam representadas e pensem: queremos fazer isso também. Este é um ato político”, entrevê.
E é “fazer revolução” para o ator Carlos Francisco, que em novembro foi a Los Angeles, San Francisco e Nova York para apresentar seu Wellington, cruzeirense que nem ele e Gabriel. “O filme humaniza os personagens negros, aquela família reverbera em tantas outras formações familiares, e isso é colocar o racismo em pauta de forma incontestável”, sublinha. Ele está animado – “Temos o sonho de estar nos maiores lugares de representatividade do trabalho e o Oscar é isso na indústria do cinema” – e radiante com a oportunidade de coroar décadas de carreira. “Fui ver o filme aqui em Belo Horizonte em vários horários, em vários dias. As pessoas ficavam até o fim e se emocionavam muito. Chorei baldes”, confessa à Continente.
Lágrimas negras caem, saem, doem… Versos de Jorge Mautner e Nelson Jacobina imortalizados na voz de Gal Costa, que partiu no mesmo novembro em que Marte Um progredia em seu voo perseverante. “Belezas são coisas acesas por dentro/Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento”: o brilho no olhar de Deivinho há de acender o Brasil para que nunca mais o sofrimento apague a beleza da representatividade. E que assim Miguel e Joaquim, os filhos da jornalista pernambucana Michele Cruz, cresçam se vendo e se percebendo no cinema, na televisão e nos sonhos interespaciais.
“Passei a infância inteira sem me descobrir como negra, sem nenhuma referência, nem nada que me identificasse assim, só as chacotas sofridas no colégio. Fui a primeira a me formar no tempo certo na família, cheguei no mercado bem jovem e também sofri preconceito por ser mulher, negra, periférica”, rememora Michele. “Só me descobri preta quando Miguel, meu primeiro filho, nasceu: menino lindo e muito mais preto que eu e meu marido Douglas. A ancestralidade não erra. Tudo mudou e a conversa sobre valor, respeito, luta, empoderamento e empatia começou cedo, pois eles precisam ser antirracistas também. E nisso tudo as referências são muito importantes. Precisamos de mais Panteras negras – herói preferido dos meus – e de mais filmes feitos e estrelados por gente preta, de literatura infantil, teatro, dança e tudo mais que for referência para essa geração que já se orgulha de sua cor e que não se curva a nada. Aprendi da pior forma, mas eles já estão aprendendo a lutar e não aceitar desde cedo. Espero que consigam.”
Que assim seja: disso também depende a esperança de um novo tempo no Brasil e no mundo.
LUCIANA VERAS, repórter especial da Continente e crítica de cinema.