Portfólio

Gio Simões

As narrativas e seus detalhes

TEXTO Erika Muniz

01 de Dezembro de 2022

'@rubi click indiscreto de @4ever_bianca na noite mais louca de todas. Só quem esteve lá vai entender! LOL',  2022, 80 x 60 cm. Impressão fineart em papel Canson photo matte

'@rubi click indiscreto de @4ever_bianca na noite mais louca de todas. Só quem esteve lá vai entender! LOL', 2022, 80 x 60 cm. Impressão fineart em papel Canson photo matte

Imagem Gio Simões/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 264 | dezembro de 2022]

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Na prateleira de um banheiro com azulejos lilases e azuis, objetos evidenciam os anseios e os rituais de beleza de quem posa ao centro. Um frasco de creme para o rosto, um tubo de loção para a região dos olhos, uma formulação que contribui com a perda de peso e, quase fora do enquadramento, uma caixa de um medicamento tarja preta. Ao fazer o autorretrato, o intuito provavelmente seria postá-lo nas redes sociais para ganhar o máximo de likes e compartilhamentos. Caso isso não ocorresse conforme previsto, a postagem seria arquivada e a vida seguiria seu curso até outro momento que pudesse ser capturado pelas câmeras dos smartphones

É possível derivar ainda mais sobre o que aparece e sobre o que fica escondido na pintura digital @chiara_dinizz Aprendi a ser o máximo possível de mim mesma (2021), da artista pernambucana Gio Simões, que integra a série Born to be loved. Os 15 trabalhos que compõem esse mais recente conjunto foram lançados em setembro deste ano, em exposição na Garrido Galeria. São obras que apresentam narrativas encontradas com frequência em perfis de influenciadores ou outras figuras midiáticas pelas redes sociais. Entre pitadas de humor e ironia, a série apresenta um viés crítico acerca de temas como a vaidade e o exibicionismo que a era digital vem impulsionando nos últimos tempos. 

Quem acompanhou o sucesso de Black mirror, série da Netflix, ao ver telas de Born to be loved, pode se reencontrar com reflexões proporcionadas também na obra televisiva. Em Queda livre (2016), episódio da terceira temporada, por exemplo, a busca por belas poses e avaliações positivas é o que rege a vida social da protagonista Lacie. Das refeições aos looks e, até, possíveis encontros amorosos, cada decisão da personagem se dá com base no quanto essas escolhas podem agregar ou subtrair à sua imagem pública e virtual. No mundo de Lacie, as classificações alheias são expostas com frequência nas redes e isso promove um ambiente de vigilância, hipocrisia e cobiça entre as pessoas de seu círculo social. 




Acima, Mojubá Exu Mulher, 2021, 42 x 30 cm. Acrílica s/ tela.
Abaixo, Ganesha, o removedor de obstáculos, 2021, 110 x 77 cm.
Aquarela e pastel seco sobre papel de algodão.
Imagens: Gio Simões/Divulgação


Embora esse tipo de argumento seja comum a obras distópicas, práticas avaliativas como essas poderiam ficar restritas à ficção. Mas não é bem assim que a coisa tem funcionado. No mundo “real”, isto é, o nosso, qualquer dúvida sobre o que pedir no delivery ou onde se hospedar durante uma viagem pode ser concluída após uma rápida olhada nas avaliações de usuários de produtos e serviços disponíveis pelos aplicativos. A própria curtida em si das redes sociais já é uma forma de avaliação exposta para todos. E é em busca desses likes que os pavões – alegorias que habitam as telas dessa mais recente série desenvolvida por Gio Simões – se apresentam. Obras como @4ever_bianca Good girls go to hell (Do story pro feed) (2022), Depois daquela ceia (2021) e @celine.lee With ma gals! (2022) contam com personagens dividindo o enquadramento das selfies com suas bolsas caríssimas, roupas de marca, jóias, corpos sarados, lugares “instagramáveis” e drinks. Na televisão ou nas pinturas, somos convocados a pensar sobre os caminhos e valores que pautam a sociedade atual.  

“Acho que o tema da vaidade me atrai desde o começo da minha produção, mesmo quando eu ainda estava em uma busca totalmente técnica. Acho que as minhas primeiras séries são um reflexo dessa busca. Sempre me senti muito atraída pelo realismo. Todas as vezes que eu ia visitar museus, nas minhas viagens, o que mais me fascinava eram as pinturas clássicas. Ficar horas diante de uma obra de natureza morta, com uma técnica ‘impecável’, que reproduzia completamente aquela realidade”, comenta a artista, em entrevista à Continente. Não por acaso, é pelo realismo – ou pela reinterpretação de espaços, cenas, personagens com referências do real, que se unem a elementos outros da imaginação da artista – que o trabalho de Gio se caracteriza. 

No autorretrato Snow White (2014), ela recria, em pastel seco, o banheiro colorido com estética vintage do antigo Barchef, pub localizado no Bairro de Casa Forte, zona norte do Recife. Nele, a artista aparece encarando o espelho, revelando uma dimensão recorrente em sua obra: a construção de performances e cenários associados às potencialidades do feminino. Recentemente, Gio retomou o diálogo com essa tela, que já revelava de seu apuro técnico e habilidade em capturar o interesse de quem pretende descobrir seus detalhes. A tela Muito além de nós (2022) traz a artista em outro momento de sua vida, com a maternidade circunscrevendo o trabalho. Gio aparece com seu filho Noah em um cenário de outro banheiro com decoração marcante, como se houvesse uma temporalidade marcando as obras. Desta vez o cenário é situado na Garrido Galeria, espaço que a representa atualmente. 

A trajetória de Gio Simões nas artes visuais acontece na sequência de sua história com a moda. Quando criança, sua mãe tinha uma confecção de roupas e, em certo momento, a fábrica foi para o quintal de casa. Na infância, a artista conviveu com materiais e artigos de modelagem, imaginando, inclusive, as vestimentas que queria criar. “Eu me divertia muito. Depois, comecei a customizar as minhas próprias roupas, aprendi a costurar e não tinha dúvidas de que seria estilista”, relembra. Aos 18 anos, ela entrou para a área como produtora, mas também chegou a fazer figurinos, realizar trabalhos como stylist, estudar modelagem, até ter a própria marca de roupas. Mas a vontade de ampliar formas de expressão criativa falaria mais alto e, nesse processo, Gio se encontra com a pintura. 

Embora nunca tenha feito cursos na área, seus estudos individuais foram fundamentais para chegar ao aprimoramento técnico demonstrado – com diferentes materiais. Logo que decidiu que a pintura seria uma possibilidade de expressão, foram necessários somente alguns meses para que Gio Simões desenvolvesse um conjunto de obras em pastel seco, que viria a ser exibido na sua primeira exposição, intitulada Nude, em 2014. 


Muito além de nós, 2022, 100 x 150 cm. Aquarela, acrílica e pastel seco s/ papel de algodão. Imagem: Gio Simões/Divulgação

“Por conta do sucesso, a gente já marcou uma segunda exposição no mesmo ano. Comecei a produzir para a Blush. Nela, eu ainda me usava muito como modelo, posava, me fotografava e tentava reproduzir aquilo para mim. Na Nude, todas são com um fundo branco, não têm rosto, eu ainda não sabia desenhar rosto. Queria fazer uma coisa de cada vez, ainda estava estudando a anatomia, a textura da pele, a luz, a sombra. Na Blush, decidi me desafiar um pouco mais e colocar outras texturas”, relembra, sobre os processos de suas primeiras séries. 

A pluralidade de técnicas utilizadas na série Born to be loved, que conta com trabalhos desenvolvidos em acrílica, óleo e no suporte digital, evidencia possibilidades expressivas que costuram a obra de Gio Simões. Além dessas, a pernambucana também trabalha com fotografia,  pastel seco – a exemplo da obra Behind that curtain (2014) – e com aquarela. Ao contrário das outras técnicas, a aquarela aparece menos em sua produção recente, só que essa minuciosa ferramenta de expressão foi responsável por promover diversos encontros, trocas e aprendizados ao longo de sua trajetória. 

“Hoje, acho que (a aquarela) é uma das mais difíceis, porque é difícil controlá-la. Não é como o óleo, que você pode ir sobrepondo camadas infinitamente. Ou como a acrílica. A aquarela tem mais esse lugar de ou você se apropria do elemento água para trazer fluidez, deixar ir e se abrir para a imprevisibilidade desse resultado ou você vai fazer uma outra coisa. E eu tendo a ir para o realista, o minucioso, o perfeccionismo, então, acabei encontrando um grande desafio: dominar essa técnica para fazer o tipo de pintura que gosto”, comenta Gio. E complementa: “Gosto muito de todas (as técnicas). Adoro trabalhar com aquarela, adoro trabalhar com pastel. Nessa minha teimosia de querer ‘aprender com o erro’, comecei a sentir que talvez conseguisse chegar a um lugar interessante com a acrílica e com o óleo, justamente por essa possibilidade de estar sempre adicionando camadas. É como se eu pudesse ‘errar’ infinitamente ali. É como se cada tela, para mim, fosse uma escola, porque aprendo muito a cada trabalho”. 

CRIATÓRIO




Gio Simões em seu ateliê n’O Criatório, em Gravatá.
No detalhe, seus materiais de trabalho. Fotos: Breno Laprovitera


Atualmente, a artista reside em Gravatá, no agreste pernambucano. Mas já passou temporadas de estudos em Berlim, na Alemanha, e morou também no Recife, sua cidade natal. Desde 2014, o terraço da casa em Gravatá foi se transformando em seu ateliê e conta com uma vista inspiradora para a natureza da região. De dia, a iluminação natural toma conta do ambiente e é possível assistir às belezas e aos sons que os habitantes das matas produzem enquanto ela trabalha. Lá, fica o Criatório, espaço de residências artísticas, oficinas de aquarela mediadas por Gio, além de estúdio de gravações audiovisuais e sonoras, gerido por seu companheiro, Cássio Sales. O Criatório já foi palco de festival de música, locação de filmes e espaço de escrita para roteiros cinematográficos. Por conta desse fluxo artístico, os intercâmbios culturais costumam ser fomentados por lá. 

Com frequência, fragmentos da paisagem que rodeia o Criatório aparecem reinterpretados em algumas das pinturas da artista – sobretudo as que compõem a série dedicada aos arcanos do tarô. A partir de um processo de autoconhecimento e estudos sobre esse oráculo, Gio começou, em 2017, a recriação da carta O Enforcado (Arcano XII) (2017), na qual ela reencena um movimento numa das árvores do local inspirador onde vive. Desde esse início, obras como Transmutação (O Arcano XIX) (2019), pintada a partir de uma fotografia com as artistas e amigas Clara Moreira e Juliana Lapa num momento compartilhado pelas três, e Epílogo (O Arcano XXI) (2019), tela que traz um portal aberto na imensidão verde da mata da região onde a artista vive, vão surgindo e compondo o deck de tarô que ela vem produzindo. 


Primeira carta, Transmutação (O Arcano XIX), 2019, 100 x 80 cm.
Óleo sobre tela. Segunda carta, 
Epílogo (O Arcano XXI), 2019, 110 x 82 cm. Pastel seco sobre papel de algodão. Imagem: Gio Simões/Divulgação

“Cada obra é realmente o resultado de uma exploração pessoal, de fazer uma leitura e deixar uma imagem vir. Ficar trabalhando no quadro o tempo que ainda tivesse que aprender com aquele arcano e entender por que ele está vindo para mim naquele momento. Então, a sequência em que essas cartas foram criadas também narra uma história para mim. Hoje, olhando para trás, (essa sequência) faz muito sentido. Não é que eu tenha usado o tarô como um tema para o meu trabalho. Pelo contrário, ele foi parar no meu trabalho porque era algo que eu estava vivendo – e que ainda estou – e que acho que não vou mais deixar”, explica. 

Até aqui são 10 obras desta série, cada uma delas representando um arcano maior (são 22 maiores, no total). Cada arcano, inclusive, foi desenvolvido com técnica e composição cenográfica singular, a partir do que mais se alinhava aos caminhos que a carta trazia à artista no momento de suas produções. Há um tempo a artistas vem aprofundando seus conhecimentos sobre este oráculo milenar em curso sobre os arcanos maiores, o que tem trazido significados a obras já desenvolvidas e contribuído, agregando vivências, para trabalhos futuros dentro da série. 

Entre outras temáticas que circunscrevem os trabalhos de Gio Simões estão os diferentes campos da espiritualidade. “Meu altar pagão tem de tudo. Todos os rituais, fazer fogueira, estudar muito. Me interessam o misticismo, o ocultismo. (A espiritualidade) é uma coisa que me pega bastante e fala muito de mim também”, explica. 

Na série Ofertório (2021), diferentes formas de exercer a religiosidade aparecem de maneira vibrante. Ao longo das obras, cenários compostos por altares individuais de devoção a diferentes entidades se intercalam a peças vintage, que trazem outros significados aos detalhes. Na tela que dá título ao conjunto, por exemplo, a imagem de Iemanjá aparece acompanhada de flores e velas. É como se nos aproximássemos de crenças de alguém, de forma delicada, a partir de objetos íntimos que integram as pinturas. Integram essa série de altares, também, a pintura Mojubá Exu Mulher (2021), que traz uma Pombajira cigana acompanhada de um vaso de flores e um cigarro aceso, e Ganesha, o removedor de obstáculos (2021), com imagem da divindade hinduísta.

ERIKA MUNIZ, jornalista com formação também em Letras.

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