Resenha

Abrir a caixa do ensaio e achar a vida

Livro ‘A vida curta de um fato’ registra embate entre o ensaísta John D’Agata e o checador Jim Fingal

TEXTO GUILHERME GONTIJO FLORES
ILUSTRAÇÕES HALLINA BELTRÃO

01 de Dezembro de 2022

Ilustração Hallina Beltrão

[conteúdo na íntegra | ed. 264 | dezembro de 2022] 

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John: Eu só fiz alguns ajustes.
Jim: Então seus “ajustes” estão fora de controle.
(A vida curta de um fato, p. 88)

Em 13 de julho de 2002, o adolescente de 16 anos Levi Presley se jogou do alto do Cassino e Hotel Stratosphere, um dos pontos mais famosos da cidade de Las Vegas, para uma queda de 350 metros de onde nunca mais poderia voltar. É um caso absolutamente único e irretornável numa vida singular; porém, ao mesmo tempo, pode parecer um número a mais em longas estatísticas sobre pessoas que decidem encerrar a própria vida, sobre políticas pessoais e públicas em relação à depressão, à tristeza ou à solidão em sociedades por todo o mundo. 

O choque que o suicídio sempre provoca ou, no mínimo, algum mal-estar, na maioria das pessoas: penso inclusive no suicídio assistido, como o do cineasta francês Jean-Luc Godard, aos 91 anos de idade, em setembro de 2022. É quase tabu nas mesas de chá; algo que fica, no mais das vezes, não dito, ou semidito (como no caso da morte do artista plástico Jaider Esbell, em novembro de 2021), pelo gosto difícil da aceitação dos vivos. A morte não está definitivamente fora da vida. Por isso é preciso falar dela, a morte; por isso é preciso falar dele, o suicídio; por isso não poderemos nunca parar de falar dela, a vida. 

Mas o problema desta breve resenha é um pouco menos doloroso e, talvez, ligeiramente mais complicado. Começa em 2003, quando o ensaísta norte-americano John D’Agata viu seu ensaio sobre a morte de Levi Presley e os casos de suicídio em Las Vegas ser recusado pela própria revista que o havia encomendado. A justificativa naquele momento era de que D’Agata tomava um excesso de liberdades, terminando por apresentar erros factuais que afetavam as possibilidades de um ensaio. Por causa disso, a revista The Believer se propôs a publicar o artigo; porém, por precaução, convocou o jovem checador Jim Fingal para analisar tudo que tinha sido escrito por D’Agata: nas suas pesquisas, Fingal encontrou pilhas de pontos questionáveis, se considerasse a ética do jornalismo como régua avaliadora. Isso engatilhou uma série de discussões, primeiro com a participação do editor da revista, depois apenas entre o ensaísta e o checador , que se estendeu por sete anos, até que em 1º de janeiro de 2010 o ensaio finalmente saiu com o título What happens there (As coisas que acontecem lá). 

Mas não é aqui que nada termina. 

Fato é que o verdadeiro embate entre Fingal e D’Agata acabou se tornando um dos livros mais curiosos e instigantes que pude conferir nos últimos tempos: em inglês saiu pela W.W. Norton & Company com o título The lifespan of a fact, que acaba de ser publicado no Brasil como A vida curta de um fato, em tradução de Irinêo B. Netto, publicada em parceria pelas editoras PUCPress e pela Arte e Letra. Pelo que pude ver até o momento, a obra saiu por estas bandas sem muito alarde, recebendo menos atenção do que merecia. 

É um pouco difícil explicar o livro: trata-se de uma leitura transversal e profunda de todos os dados que Fingal checou e questionou para D’Agata, com uma minúcia tão impressionante, que muitas vezes mais parece ficção. Temos sempre o uso de três fontes tipográficas distintas: 

1. Primeiro, numa fonte maior e centralizada, vemos o texto corrido de uma parte do ensaio original escrito por D’Agata.
2. Em seguida, em negrito e entre aspas, lemos cada trecho checado por Fingal.
3. Cada trecho recebe, por fim, em fonte simples, aquilo que o checador conseguiu averiguar, para confirmar ou questionar as soluções textuais do ensaísta.
4. Vez por outra D’Agata aparece em negrito com suas respostas, que se tornam diálogos em negrito com Fingal. Nesses momentos, temos como se fosse um diálogo com seus nomes pessoais: John e Jim. 

Vejam um caso curioso, quando Fingal questiona o tempo de queda do corpo de Presley. O debate se dá porque, no texto, D’Agata nos dá o número de 9 segundos; ao passo que o relatório do médico legista tinha sugerido a estimativa fisicamente mais correta de 8 segundos até atingir o chão. D’Agata reconhece que o número tinha sido primeiro estimado em 9 segundos, para depois receber uma revisão; mas que prefere deixar tudo como está, porque o número 9 acabou interferindo em toda a escrita do ensaio. Quando Fingal insiste no ponto, chegamos a isto: 

John: (...) O ensaio fica como está. Caso contrário, ele ficaria um lixo.
Jim: Ele ficaria “um lixo” se ficasse mais correto?
John: Sim. (p. 22)

Está em jogo uma discussão bastante complexa de linguagem, mas também de modos de vida. O que importa mais, afinal: a verdade inequívoca do tempo da queda, ou a qualidade da linguagem que a expressa de modo a gerar um impacto sobre quem lê? A disputa entre os dois se desdobra em questões análogas sem parar, e a capacidade de Fingal de checar tudo assusta o próprio D’Agata. Para se ter uma ideia, o ensaio de cerca de 30 páginas se torna um livro com 270; por vezes, até maçante pelo excesso de detalhes. Em outras, fica até engraçado, como neste momento, em que Fingal contesta a factualidade de uma declaração sobre uma suposta “mulher da Las Vegas Teen Crisis” e supõe que ela seja a mesma que aparece em outras anotações feitas por D’Agata: 

John: Como você poderia saber se essa é a mesma mulher que estou citando? Eu mudei a identidade dessa mulher. Até onde sei, “Las Vegas Teen Crisis” nem existe.
Jim: Porque sou muito bom naquilo que faço.
John: Tão bom que você conhece os funcionários de organizações que não existem?
Jim: Bom o suficiente para perceber suas intenções. (p. 26)

O tom pode variar bastante entre os dois. Por exemplo, quando Fingal pede o comprovante de uma doação que D’Agata teria feito e, ao mesmo tempo, questiona detalhes da vida da mãe do ensaísta, para saber se não seria ficção, a resposta é sumária e irritada:

John: Não tenho o hábito de pedir recibo de doações. E você não vai chegar nem perto da minha mãe. (p. 56)

Esse mesmo embate reaparece depois, com ânimos à flor da pele. Aqui transcrevo do jeito que o livro nos mostra o texto e o questionamento (negrito para o trecho do ensaio, fonte normal para o comentário de Fingal, depois a resposta de D’Agata).

“Minha mãe estava confeccionando bijuterias para ganhar um dinheiro extra.” (FINGAL)Como ele não quer me dar o contato da mãe, não consigo confirmar essa informação, nem se ela tem mesmo um gato ou não, e se precisa mesmo de “um dinheiro extra”. Embora ela tenha de ser muito talentosa para conseguir um dinheiro extra vendendo artesanato.
John: Tenha muito cuidado com o que fala, imbecil.

É uma verdadeira briga de mundos, mas também de pessoalidades. Pouco tempo depois, ainda no começo do livro, imerso entre fatos checados, questionamentos e discussões, Jim Fingal diz para si mesmo, como que tentando entender o que deve fazer diante dos problemas com que se depara: 

Jim: Nota para mim mesmo: John não é jornalista. E também não é escritor de não ficção. Porém, ele é um escritor de textos meio jornalísticos que não são, necessariamente, ficção. Entendido. (p. 29) 

“Textos meio jornalísticos que não são, necessariamente, ficção.” Pergunto-me muito sinceramente se alguém consegue mesmo entender tudo que isso é. Porque a frase que ele usa para tentar explicar o que encontra no ensaio de D’Agata é também uma definição possível e provisória do que pode ser o gênero ensaio, e também dos seus limites e perigos. Isso porque o risco do ensaio – sua chance de descambar para devaneios, deformações, ou até erros – é também seu grande trunfo. Assim como, do seu modo, o grande feito de A vida curta de um fato é não sucumbir ao desejo de responder peremptoriamente se a ética correta é a do jornalista e checador, ou a do ensaísta e literato. A escritora e tradutora norte-americana Lydia Davis, citada na orelha do livro como um blurb de efeito, dá uma chave certeira para pensar o resultado dessa caixa-preta escancarada, como se fosse caixa de Pandora e revelação da máquina da escrita: percebe ela como temos diante de nós “um embate dramático e fascinante a respeito do que a não ficção deve, ou pode, ser”. 

Sim, porque há muitas coisas que a não ficção deve, ou pode, ser. E muito fica aí suspenso entre os verbos deve e pode. Assim, abertamente. No caso em questão, nenhuma delas vai alterar o fato de que Levi Presley se lançou à morte no verão de 2002, como tantos outros seres humanos fizeram, fazem e farão. E mesmo assim se mostram absolutamente necessárias entre os vivos. Se a morte vem como um corte incontornável do real, por outro lado, a necessidade humana de lidar simbolicamente com o fim, e portanto com a vida, deixará sempre uma abertura complexa entre as relações de verdade e veracidade de tudo que se pensa e se diz neste planeta. 

Mais especificamente, o embate de Fingal e D’Agata tem a força de recusar a palavra final, o que parece resultar numa espécie de metaensaística, ou até de polifonia (para usar aquele conceito caro a Bakhtin), que atravessa todo o livro. Rapidamente percebemos que há uma verdadeira ironia em dizer que o livro é de John D’Agata e Jim Fingal, porque, na maior parte do tempo, o livro é de um contra o outro, de um embate entre as escolhas éticas e linguísticas de lidar com a realidade do mundo. O leitor, a leitora, leitores em geral poderão se ver muitas vezes como possíveis juízes de uma batalha sem vencedores claros. Ou melhor, com uma única vitória explícita: a do esforço singular de D’Agata e Fingal para se exporem assim em pleno embate, frágeis nos seus anseios, ferrenhos nas suas ideias, dialogicamente unidos na discordância. 

Uma solução de grande relevância na versão brasileira da obra, que nesse aspecto se sai claramente melhor que a edição norte-americana, é apresentar como apêndice (pp. 235-264) o ensaio tal como publicado na revista The Believer, para que possamos conferir quanto da checagem de Fingal resultou em alterações significativas. E a resposta eu adianto para vocês: muito pouco, ou pelo menos muito menos do que se poderia esperar. Ensaísta e checador se encontram, se engalfinham, para cada um seguir o seu caminho; um pouco como água e óleo, que só podem se misturar por um certo tempo, até que o chacoalhar se amanse, e tudo volte a ser claramente diferente. Unidos ficam até o fim do livro num gesto: os direitos autorais são doados para uma bolsa de estudos criada em homenagem a Levi Presley na Academia Faixa Preta da Associação Americana de tae kwon do, em Las Vegas, destinada a crianças carentes, aos vivos que aqui vivem. 

Chegando ao ensaio no fim do livro, mesmo conhecendo todos os seus problemas, é fascinante ver como ele continua a funcionar. Do mesmo modo, diante desse funcionamento, o ensaio, os questionamentos de Fingal – ou pelo menos muitos deles – parecem permanecer irrefutáveis. O que fazer? Sai melhor quem lê os dois, quem vive essa linguagem vivíssima do ensaio ao mesmo tempo em que pode pensar e repensar, pesar e repesar o dilema do que é dito. Isto é, entre os dois mundos, o melhor é sua fusão contrastiva e sem conciliação. Ao fim e ao cabo, parece muito a nossa própria vida, a de todos. 

No entanto, aqui chego ao ponto em que, de resenhista e poeta, preciso me tornar professor e checador do livro, isto é, compreender suas camadas de feitura. Perguntava-me: como os dois fizeram este livro? E fui atrás de entrevistas onde comentassem toda a questão. Foi meio chocante – e ao mesmo tempo esperado – descobrir, numa entrevista que os dois concederam em 2012 a Weston Cuffer, para a Kenyon Review, que, em primeiro lugar, o processo de checagem não durou realmente sete anos, mas entre seis meses e um ano. Fingal conta que “o resto dos ‘sete anos’ foram na verdade conversas que surgiram da decisão (de trabalhar no material e fazer um livro)”. O resultado disso é revelado com uma franqueza quase crua por D’Agata: 

Nós dois amplificamos conscientemente a hostilidade dos comentários. Entendo a forma das trocas entre Jim e eu como uma farsa exagerada. No cerne está um embate real, um debate que tivemos de fato e que continuou no nosso processo de checar fatos na vida real. Mas em algum momento desse processo a gente também decidiu fazer um livro sobre o processo, e nesse momento a gente reviu os andaimes das nossas discussões e aumentamos o volume no modo de discutir essas questões. Por que a gente fez isso? Porque, por mais fascinantes que nós dois sejamos, eu e Jim, também somos caras de modos bem comedidos, e a gente sabia que a maioria dos leitores provavelmente não ficaria fascinada com duas figuras numa discussão sóbria sobre essa questão nerdíssima da veracidade da não ficção. Embora vez por outra eu desse umas lapadas no Jim durante o processo de checagem, nunca fui tão babaca quanto a persona do escritor no livro. Mas é esse sarcasmo do escritor – e a eventual disposição do checador de revidar – que deixa o livro meio divertido, eu acho. Então a gente ficou tentando encontrar um jeito de fazer uma questão séria, mas meio árida (a veracidade), parecer relevante e interessante (piadas de pau). 

Fazer uma “farsa exagerada” sobre “essa questão nerdíssima da veracidade”; em outras palavras, aumentar o volume do impacto por meio de uma autoficção controlada, para pensar como pode funcionar o limite ético do que lida com o mundo. No fundo, D’Agata e Fingal concordaram em se mostrar de modo mais precário do que realmente são, em nos convencer de um embate rude, em resumidamente nos fascinar ficcionalmente com uma questão absolutamente real e necessária. De fato, algumas conversas acontecem como parte de um romance: 

Jim: Como ainda tenho bastante texto para checar, talvez você possa me ajudar, pois as regras ainda não estão claras para mim. Pelo que você disse, um ensaísta pode escrever o que der na telha e inventar citações que são atribuídas a pessoas reais que vivem no mundo real. É isso mesmo? Se for, não é isso que as pessoas chamam de ficção?
John: Mudei o significado do que foi dito, Jim? Não. Só ajustei a frase de modo que ela se encaixasse um pouquinho melhor no texto e para que ela repercutisse nos outros parágrafos. É o que os escritores fazem.
Jim: OK, agora entendi. A regra é: não existem regras desde que você escreva bonito.
John: É uma interpretação de merda do que acabei de dizer.
Jim: Mas você não era o grande defensor do direito que as pessoas têm de “interpretar”? (p. 87) 

Não há mesmo saída. E isso o livro diz com todas as palavras. Estamos aqui entre elas, precisamos delas para lidar com o mundo, a vida, a morte. Cabe a cada um interpretar, e também aceitar a demanda do debate. Fica então a sensação de que essa interpretação nos convocaria a alguma coletividade conciliatória entre pontos de vista conflitantes. Vejam bem: não estou falando de um meio-termo em que tudo convive às mil maravilhas. Nada disso. A vida curta de um fato é o convite ao convívio do dissenso. E, como tal, é uma pérola para discutir o que pode ser ou vir a ser a ficção, a não ficção e, com isso tudo, também os nossos frágeis sonhos de democracia. 

GUILHERME GONTIJO FLORES, poeta, tradutor e professor na UFPR. Autor de carvão :: capim, História de Joia, Potlatch, Tradução-Exu e Uma A Outra Tempestade (os dois últimos com André Capilé) entre outros, publicou traduções de Robert Burton, Propércio, Milton, Safo, Rabelais e Celan, entre outros. Foi coeditor da revista blog escamandro e é membro da banda Pecora Loca.
HALLINA BELTRÃO, designer e ilustradora, mestre em Design Editorial.

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