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As revoluções libertárias em Pernambuco

Leia trecho do livro ‘Liberais & liberais – guerras civis em Pernambuco no século XIX’, publicado pela Cepe Editora

TEXTO Socorro Ferraz Barbosa

01 de Setembro de 2022

Imagem Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 261 | setembro de 2022]

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COM AÇÚCAR, SEM CAFÉ
 

Economia
Pernambuco, na metade do século XIX, apresentava características de inserção numa economia de plantação, com base escravista. A abundância da terra e a ausência de imigrantes apontavam ao investidor aplicação de capital, prioritariamente, na mão de obra escrava. Com terras a preços muito baixos, ou de graça, a expansão da lavoura de açúcar poderia se realizar desde que o plantador dispusesse de mão de obra escrava para o desenvolvimento daquela cultura. Essa particularidade levava à dependência mútua entre o setor agrícola e o comercial. O capital desse setor era aplicado nos negócios que diziam respeito à mão de obra escrava e ao adiantamento para as despesas com a plantação do açúcar e do algodão. O crédito se vincula primeiramente ao comércio, mas também ao setor agrícola, tendo como garantia a possível colheita e a quantidade de escravos que um plantador possuísse. Esta transação comercial era geralmente feita pelas “casas comerciais” de portugueses e por algumas estrangeiras, principalmente as inglesas. 

A atividade industrial era de fato quase inexistente. O Alvará de Dona Maria I, anulando a proibição às manufaturas, foi neutralizado pelo Alvará de 1809 e pelos acordos de 1810, feitos entre a Inglaterra e Portugal. A própria Abertura dos Portos, que, na opinião de Eulália Maria Lahmeyer Lobo, “encerrou o compromisso colonial, atingiu apenas o comércio exterior, sem pretender abalar as relações econômicas de produção ou circulação interna”. 

A empresa agroaçucareira, apesar de liderar as exportações brasileiras, enfrenta três grandes dificuldades que se apresentam nesse período: a queda dos preços, a concorrência com a produção das Antilhas e o açúcar de beterraba. 

No início do século XIX, a posição de Pernambuco no comércio de importação, da Metrópole para a Colônia, foi, segundo José Robson Arruda, uma posição de equilíbrio e alternância com a Bahia, com quem disputava ora o segundo, ora o terceiro lugar em relação ao Rio de Janeiro preponderante. De 1796 a 1803, Pernambuco ocupa o 3º lugar; de 1804 a 1811, com exceção de 1806, Pernambuco ocupa o segundo lugar. O mesmo autor, analisando a posição das regiões brasileiras no comércio de exportação, da Colônia para a Metrópole, conclui pela posição também preponderante do Rio de Janeiro, cabendo à Bahia a segunda posição e a terceira a Pernambuco até 1803. Em 1804, Pernambuco ocupa a segunda; em 1805, ocupará a primeira posição, descendo para a segunda em 1806, nela permanecendo até 1809; em 1810 e 1811, havia declinado para a terceira posição. 

Durante este período, a balança comercial de Pernambuco aponta superávits no movimento das exportações sobre as importações. O açúcar e o algodão lideravam as exportações, seguidos de alimentos, courama, drogas, ouro, madeiras e vários gêneros. Observa o autor que, no movimento de importação dessa província (da Metrópole para a Colônia), os produtos alimentares tendem a aumentar o volume e os produtos resultantes das fábricas tendem a diminuir, apenas o linifício aparece com um relativo aumento. 

A partir de 1811, Pernambuco ocupará a segunda posição nas exportações de açúcar, comparando a sua produção com toda a Colônia, ultrapassando o Rio de Janeiro; em relação ao algodão, nesse mesmo período, a província continuou, ao lado do Maranhão, liderando a comercialização desse produto, apesar de não obter mais os altos índices de 1801 a 1807. 

Com o declínio da ocupação francesa, Portugal retoma, aos poucos, seu comércio com o Brasil e, em 1814, Pernambuco exportou um volume orçado em 5 milhões e 321 mil cruzados e importou 4 milhões e 733 mil cruzados. A agricultura aumentou e o movimento comercial ultrapassou o do Rio de Janeiro e o da Bahia. Esse movimento, entretanto, não chegou a causar prejuízos no comércio português, apesar de Portugal haver exportado para Pernambuco 2 milhões em ouro e prata. 

No Relatório do Ministro da Fazenda, de 1821, constam informações sobre o estado dos cofres desta Província em 1819, e a expectativa já não era a mesma dos anos anteriores a 1817. Além da despesa própria da Província, que era de 545:183$757 réis, incluíram-se também 566:400$000 de pagamentos de letras sacadas pelo Tesouro e consignações do Banco. Em outubro deste ano (1819), o governador Luís do Rego informava que deveria “acudir as despesas” com tropas e hospitais militares para organizar a defesa da Província. O relator reconhece dois fatores como responsáveis pela situação financeira deficitária de Pernambuco: as comoções que ocorreram desde 1817, que determinaram a diminuição das rendas e o aumento de despesas, e a separação da Comarca das Alagoas por ter sido elevada à categoria de província. Em 2 de março de 1821, o governador anuncia o aumento do soldo à tropa, a separação da Província do Rio Grande do Norte, a criação de uma Relação, pagamentos das diárias aos deputados, às Cortes de Portugal, como aos da Assembleia deste Império, gratificações aos membros do Governo, aumento dos ordenados aos empregados e criação de novos lugares na burocracia, mesmo que não fosse atribuição sua. O ministro criticou a atitude do governador e lembrou que tudo isso obrigava a Província a despesas extraordinárias “das quais se não pode dar ideia por falta das necessárias participações e remessas dos Balanços explicados”. 

A situação das finanças do Brasil, a partir de 1820, não parece ter sido diferente da do restante das províncias, especialmente a de Pernambuco. 

Reclamava o Ministro da Fazenda, Manuel Jacinto Nogueira da Gama, de não poder apresentar, como “devera e desejara”, as contas sobre alguns recursos da Província de Pernambuco, não obstante haver exigido, a todas as províncias, informações sobre dívidas ativas procedentes de ajustamentos das contas das Décimas das Casas, imposto das heranças e legados, administração do dízimo do açúcar e empréstimos contraídos do Tesouro, importando em 40:000$000. A desinformação do ministro sobre as províncias justificava a falta de noções claras e circunstanciadas sobre o estado da Fazenda Pública. A situação da Fazenda Nacional, longe de um equilíbrio entre a receita e a despesa, levava o ministro a finalizar o seu relatório a Sua Majestade Imperial lamentando estar o Tesouro empenhado, até o fim do primeiro semestre, em 30 milhões e meio de cruzados, com os credores solicitando seus pagamentos, sem que tenha recursos extraordinários para fazer face às despesas extraordinárias. Sem ter clareza sobre a situação das províncias, afirma o imperador que delas “nada podemos esperar nas atuais circunstâncias”, antes, pelo contrário, seremos obrigados a socorrer algumas delas, como já fica indicado , com mais de 15.280,000$000 anualmente e a suprir as despesas dos seus deputados. Pelo relatório da Junta da Fazenda, a Província de Minas Gerais foi a única, segundo o Ministro, a enviar informações sobre rendas e despesas de forma circunstanciada, e a Província do Rio de Janeiro era a principal, considerando-se o movimento de exportações e importação. A variedade das importações nos dá ideia do grau de consumo daquela região. Observou Eulália Maria Lahmeyer Lobo que os negociantes do Rio de Janeiro se haviam constituído, já em fins do século XVIII, num grupo de pressão, independente dos homens ligados à atividade fundiária. Pelo volume de negócios feitos, puderam acumular capital e fornecer crédito ao rei e aos proprietários rurais. Esta situação refletia-se na política, permitindo que os mesmos se fizessem representar na Câmara Municipal e diretamente ao rei ou aos órgãos superiores da administração da metrópole. 

A posição dos comerciantes do Rio de Janeiro é bem superior à dos comerciantes de Pernambuco. Mais abastados que estes e com maior prestígio social, eram até agraciados com a Ordem de Cristo, que lhes conferia status aristocrático. Já os negociantes de Pernambuco, massacrados pela Cia de Comércio da Paraíba e Pernambuco, apenas se enobreciam se se tornassem proprietários de terras. Mais do que afastar o atravessador português, a independência possibilitou o aparecimento de uma nova ordem nas relações entre o Brasil e o capital internacional. Aparentemente, é como se a Inglaterra tivesse apenas substituído Portugal numa relação mercantilista. Mas esta aparência oculta a importante intervenção do modo de produção capitalista na economia brasileira. Na realidade, tendo o Rio de Janeiro se transformado no centro das atividades mercantis, estaria implicado, mais que qualquer outra praça, num processo de dependência com a Inglaterra. O domínio da Inglaterra, que se deu através da expansão do comércio, tem suas raízes na combinação das forças produtivas com as relações sociais, o que também explica duas observações sobre este período, de dois historiadores distintos. Eulália Lobo, reportando-se à Independência, escreve: “o fato novo e decisivo foi a formação social brasileira orientada para contribuir à elevação da taxa média de juros”. Da afirmativa da historiadora, compreendemos que, se os comerciantes do Rio de Janeiro eram os que emprestavam tanto ao Erário como aos proprietários, e se também eram estes os intermediários das relações com os ingleses, logo perceberam a necessidade de um volume melhor de capital maior para suas transações internacionais, diminuindo, portanto, a circulação do capital destinado aos empréstimos, logo aumentando internamente o caixa para maior flexibilidade dos negócios internacionais. Como consequência, a taxa média de juros se eleva, tendo repercussão nas outras praças de comércio do país. 

A segunda observação foi feita pelo historiador José Honório Rodrigues. Reclamando da ausência de explicações sobre o papel hegemônico do Rio de Janeiro no processo da Independência, o historiador afirma ter sido o Rio de Janeiro o financiador da Guerra da Independência. É, portanto, lógico que, passada a tempestade, chamasse a si preponderância também política. A Bahia e Pernambuco seriam as províncias mais afetadas pela nova investidura do Rio de Janeiro. 

Os comerciantes das principais praças de comércio não estavam familiarizados com o sistema de crédito a juros. A função do Banco do Brasil foi, quase que também, formadora de uma nova mentalidade no que diz respeito ao comércio de ações, pagamentos de dividendos, créditos e especulação, substituindo aquela forma de fazer e pensar negócios com base apenas no metal. Nesse ponto, percebe-se, também, que a influência da Inglaterra na vida econômica do Rio de Janeiro foi bem maior do que na de Pernambuco. 

A historiografia tem comprovado que as relações comerciais da província de Pernambuco, quanto à comercialização de açúcar, na primeira metade do século XIX, sempre se fizeram mais intensamente com Portugal, enquanto a comercialização do algodão encontrou na Inglaterra seu maior parceiro. Os estudos de José Ribeiro Júnior sobre quantidade e valor do açúcar e algodão exportados do porto de Pernambuco para Portugal, entre 1812 e 1826, registraram, nesse tempo, a superioridade do açúcar sobre o algodão. Glacyra Leite, utilizando estes estudos  (ver tabelas 1 e 2), conclui que exportação de algodão caiu bastante após 1822. 

Dados sobre o movimento da exportação de algodão e do açúcar do porto de Pernambuco no período nos levam a dizer que a exportação do algodão se destacava em relação aos outros produtos, e tudo indica que aumentou na direção do comércio com os portos britânicos. Comparem-se dados que estão presentes tanto na Relação de Receita da Junta da Fazenda de Pernambuco, em 1819, como no Balanço Geral de 1823 (ver tabelas 3, 4 e 5). 

Tendo em vista o movimento de importação do ano de 1823, comparando-se com os outros produtos, logo se vê a superioridade das importações oriundas dos portos britânicos. 

Na Receita e Despesa da Junta da Fazenda de Pernambuco de 1819, o valor que se coloca ao lado dos produtos na coluna Receita significa o que a Província obteve de renda através dos impostos de seus produtos. Comparando-se os subsídios dados ao açúcar e ao algodão, logo se percebe a diferença: açúcar 46:583$504 e algodão 177:640$639. Observando-se os itens da coluna Despesa, podemos ver os grandes gastos com a remessa ao Tesouro (597:296$399). O restante dos itens está ligado a gastos com uma política repressiva e de defesa militar. 

No Resumo das Importações e Exportações da Província de Pernambuco, extraído do Balanço Geral de 1823, as nossas exportações para os portos britânicos alcançaram o valor de 1.759:883$800, bem maior do que o valor das exportações de mercadorias para os portos portugueses, que, no total, chega a 297:754$300. É bem conhecida a dificuldade de colocar nos mercados ingleses fibras têxteis, café e açúcar brasileiros que viessem a competir com os produtos das Índias Ocidentais Britânicas. Portanto, os valores das exportações para os portos britânicos devem ser preferencialmente da comercialização do algodão. No movimento das importações, encontramos a mesma tendência. Dos portos portugueses, os valores alcançaram, nesse ano, 495:398$520, enquanto os britânicos alcançaram 720:337$900. Conclui-se que o volume de negócios com os portos britânicos e o capital circulante na Província de Pernambuco, que até então vinham sendo prejudicados pelos preços do açúcar no mercado internacional, alcançaram números significativos, beneficiando não somente os comerciantes do algodão em Pernambuco, mas a própria administração, através de arrecadação alfandegária da Província. 

Numa visão mais global dessa economia, o escrivão da Mesa Grande, juiz interino da Alfândega de Pernambuco, Caetano Francisco Lumachi, informa que o balanço geral de importação e exportação da Província de Pernambuco se iniciou em 1801, mas que só foi amplamente reorganizado através da Provisão de 6 de novembro de 1810. No espaço de 23 anos, isto é, de 1801 a 1823, a província exportou, em mil réis, o valor de 56.244:152$254 e importou 51.130:845$288, tendo, pois, um saldo a favor das exportações de 5.113:806$966. Nos anos anteriores a 1799, os rendimentos da Alfândega pouco alcançavam 60 contos de réis anuais e, desta data até 1804, os rendimentos alcançaram 100 contos de réis, anualmente; de 1810 a 1822, excederam a 200 e 300 contos de réis, chegando, em 1823, a um montante de mais de um milhão de contos de réis. É, ainda, através destas “observações demonstrativas” que o escrivão nos põe a par de que os direitos obtidos pela Alfândega, no espaço de 25 anos, ainda eram regidos por uma legislação fiscal do século XVIII, decreto de 9 de julho de 1794, do antigo reino de Portugal. Pernambuco continuava a pagar réditos da Polícia do Rio de Janeiro, em conformidade com o Aviso de 4 de dezembro de 1810 e do Alvará de 25 de abril de 1818. A partir de 1821, esses réditos passaram à massa dos impostos pagos na Alfândega. De 1801 a 1823, a Província de Pernambuco, segundo ainda o escrivão, importou 130.418 escravos da Costa d’África; e alerta para se recuperar o crescente rendimento que a entrada de escravos deixa à Fazenda Nacional, caso o tráfico seja suspenso. De um subtotal de escravos de 79.215, 52.720 foram taxados em 800 réis, o que produziu de renda 42:176$00, e 26.495 escravos o foram em 1.400 rs. Para que a diferença de 600 rs. passasse a referida massa de Direito da Alfândega, abatendo-se 1 por 100 até o fim de 1820 para o tesoureiro da Alfândega. Transferiu-se à Polícia do Rio de Janeiro a quantia de Rs. 78:567$116 no ano de 1821. Em 1819, tais impostos haviam rendido, entre direitos e polícias, mais de 93:000$0 (noventa e três contos de réis). 

Nas “observações”, Francisco Lumachi registra, ainda, o abalo financeiro e econômico que a separação das Províncias de Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará causou à economia e às finanças de Pernambuco, mas que os “seus dois grandes ramos da produção — açúcar e algodão” — têm-lhe permitido continuar “florescendo”; cita outros produtos de exportação, como madeira, courama, mel e aguardente e lamenta o estanco do pau-brasil para a Fazenda Nacional e Imperial. Escreve sobre o desempenho excelente da exportação sobre a importação, acusando o algodão como o produto que mais lucro oferece à Província e que, por esta razão, não se produz mais farinha e a importação desse produto da Bahia e do Rio de Janeiro leva grande soma de dinheiro efetivo; o comércio das carnes com o Rio Grande do Sul, em detrimento da carne seca do Ceará, cujas oficinas estão destruídas, é “outra porta aberta por onde sai bastante numerário”. 

Evidencia-se uma dependência da atividade produtiva em relação ao capital comercial que praticamente desempenhou um papel usurário, ora cobrando juros muito altos sobre dívidas, ora se apropriando de propriedades mais férteis e de maior facilidade no acesso ao porto. 

A historiografia tem largamente difundido a rivalidade entre grupos ligados à atividade do açúcar e grupos ligados à atividade do algodão, e que a história de Pernambuco, nas primeiras décadas do século XIX, é a história dessas lutas. Ao mesmo tempo, tem também comprovado que os comerciantes se tornaram grandes proprietários, mas que não abandonaram a sua atividade no setor financeiro. Consenso, também, existe entre os estudiosos do período sobre o papel hegemônico de Pernambuco nessa região, comparando-se ao Rio de Janeiro, para a região Sudeste; e que o aparecimento de um novo produto, como o café, com mercado e preços promissores, levaria de roldão a economia nordestina e, consequentemente, a importância política no cenário nacional. 

Observando-se, detalhadamente, os números da Alfândega, nos anos que antecederam aos conflitos que ocorreram em Pernambuco, entendemos, imediatamente, que eles são indicadores de que os comerciantes estavam auferindo grandes lucros. Foi assim antes de 1817, antes de 1821 e antes de 1824. 

Examinando-se os anos que antecederam à Revolução de 1817, a Companhia de Comércio de Pernambuco e da Paraíba, que tinha como acionistas capitalistas estrangeiros, monopolizou o comércio e fretes, não para navios portugueses, mas para navios estrangeiros, prejudicando as atividades que haviam se estabelecido entre negociantes locais e negociantes portugueses. Portanto, nos anos que antecederam 1817, estavam fora dos negócios o capital local e grande parte do capital português; após a queda de Pombal, as Mesas de Inspeção passam a ser parte de uma política portuguesa de maior liberdade; eram elas constituídas por um comerciante exportador de açúcar ou tabaco, um pequeno proprietário e um grande proprietário, tendo sido instaladas no Maranhão, em Pernambuco, na Bahia e no Rio de Janeiro a partir da metade do século XVIII. 

O soerguimento da economia de Pernambuco, em fins do século XVIII e início do século XIX, aparece no bojo geral da recuperação da economia de plantação: a Revolução do Haiti provoca a desorganização da produção açucareira e possibilita a Portugal recolocar no mercado internacional o açúcar brasileiro com preços mais altos. A Independência dos Estados Unidos e as Guerras Napoleônicas beneficiaram a nossa exportação de algodão; o arroz da Carolina do Sul e o couro da Bacia do Prata cederam lugar aos nossos produtos idênticos, o que contribuiu para aumentar as exportações de arroz do Rio de Janeiro e de couro em Pernambuco. Contudo, esta conjuntura favorável não se estabiliza, ou melhor, não consegue intervir nas relações sociais, modificando estruturas antigas. Os fatores que possibilitaram ao Rio de Janeiro intervir na taxa média dos juros e ainda no financiamento da Independência, possivelmente, em Pernambuco, não existiram. A economia de Pernambuco baseava-se em dois produtos que não encontravam mercados estáveis, duradouros, porque dependiam também de conjunturas mais instáveis — o açúcar e o algodão. Os negociantes de Pernambuco pensaram, em determinados períodos: 1817-1821, 1822 e 1824 -, que poderiam romper os laços que os amarravam e os impediam de encontrar a liberdade econômica e política; no primeiro e segundo conflitos contra o Governo Metropolitano, e no terceiro e quarto contra o Governo do Rio de Janeiro. 

Se essa conjuntura foi dominada pelos homens de negócios, tanto em Pernambuco como no Rio de Janeiro, o que levaria as duas regiões a disputarem a hegemonia? Em primeiro lugar, os negociantes do Rio de Janeiro estavam atrelados a um produto com mercado promissor, o café, sem concorrência à vista ou a médio prazo. Em segundo, a presença da monarquia portuguesa ampliou a função portuária e centralizadora do Rio de Janeiro. O Banco do Brasil, fundado em 1809, transformou a mentalidade dos comerciantes, aumentando o meio circulante e oferecendo aos comissários crédito com o endosso de comerciantes e recusando o endosso dos fazendeiros. 

Antônio Penalves Rocha, em sua tese de doutorado, já citada, apresenta a sociedade brasileira do início do século XIX de um certo modo estável, por ter como referencial as relações entre Metrópole e Colônia, com supremacia de Portugal, apesar das diferentes classes que participavam da produção e do comércio. Na sua opinião, após 1808, a presença do Estado Português no Brasil desestabilizou o Império, por oferecer à grande lavoura escravista concessões que não puderam ser oferecidas às outras classes dentro do Império. Outros atos governamentais favorecendo os negociantes da Inglaterra, em detrimento dos de Lisboa, contribuíram, ainda, para este desequilíbrio. A abertura dos portos e a suspensão da proibição à indústria teriam acelerado as contradições no próprio Império, e nem mesmo a presença de representantes da grande lavoura nos quadros burocráticos do Estado conseguiu resolver os complicados problemas que a monarquia portuguesa enfrentava: adaptar a monarquia a um lugar social diferente daquele ao qual estava ajustada; adaptar a colônia de modo que ela pudesse comportar a sede de um estado formado pela antiga metrópole, possessões na África, na Ásia e no Brasil, e não romper com a Inglaterra, tendo que conviver com a complexidade de sua atuação no mundo português sem perder partes deste Império. Uma das funções da economia política seria a de fazer com que a classe dominante acreditasse que o desenvolvimento econômico seria a receita ideal para evitar revoluções. 

Dentro deste contexto é que as memórias encomendadas a teóricos, como Silvestre Pinheiro Ferreira, vão tentar tirar a monarquia portuguesa do absolutismo e levá-la, sem grandes perdas de poder, ao constitucionalismo. As tentativas para evitar as revoluções foram vãs dentro desse quadro de desestabilização apresentado por Antônio Penalves. Não foram apenas os portugueses do Porto que se sentiram lesados com a presença do governo português no Brasil. Pernambuco sofreu uma amarga derrota e uma terrível repressão, por ter se insurgido em 1817, apostando na conjuntura instável do Império. Os mais importantes líderes da revolução foram comerciantes, militares e burocratas. Algumas medidas tomadas pelo Governo revolucionário, citadas por Carlos Guilherme Mota,24 são indicadoras do que mais incomodava a elite: o Governo provisório, a 9 de março de 1817, aboliu o Alvará de 20 de outubro de 1812 que determinava tributação sobre “carne, loja de fazendas e molhados, embarcações, remoção do gado para o interior (Paraíba) em favor da agricultura...” e “isenção para o algodão de metade dos direitos de exportação, e, a 2 de março de 1817, determinava o governo revolucionário a montagem da nova moeda”. 

A desestabilidade atingiu de uma forma definitiva o Brasil e em relação a estes dois grandes centros disputavam a hegemonia externa — Portugal e Inglaterra — e, internamente, o Rio de Janeiro preponderava sobre as províncias. O momento não era de depressão econômica. Pelos dados, podemos até falar de uma certa euforia. Os pernambucanos acreditavam poder utilizar esses fatores conjunturais para as grandes reformas desejadas. 

Além dos fatores econômicos conjunturais, há que se levar em consideração a estrutura social em que ocorreram os conflitos, as rebeliões do século XIX em Pernambuco. 

Sociedade
Observando a desagregação da herança colonial, Sérgio Buarque de Holanda escreveu em O Brasil Monárquico que a sociedade desenvolvida no Brasil, nesse período, não tinha homogeneidade racial, social nem política. As antipatias entre portugueses do velho e novo mundo estavam presentes em todo o país, especialmente em Pernambuco, nas “aspirações de infidelidade à coroa portuguesa”, o que se pode constatar até pelas incursões aproximativas com a França, desde o século XVII.25 

Do mundo dos brancos participavam portugueses, que não se consideravam estrangeiros, espanhóis, franceses e ingleses. No século XIX estes vão dividir, nos centros urbanos, posições sociais com alemães, dinamarqueses, suíços, suecos, norte-americanos e italianos. A situação de privilégio não era indistinta, para todos os brancos, dentro dessa sociedade. Nem estavam eles no mesmo patamar onde se entrincheirava a elite, mas, todos, incluindo os pobres, se distanciavam do mundo dos negros. 

Constituiu-se a sociedade, ao longo de três séculos de colonização, por populações de três diferentes continentes, de estruturas econômicas e sociais que não conheciam similitudes ou paralelismos. Distanciadas geograficamente das outras, essas populações tinham bases essenciais de estratificações irreconhecidas e, num movimento dialético, destruíram velhas estruturas e criaram uma nova sociedade que não encontrava estreita correspondência na Europa ou na África. 

A presença de diferentes raças, com funções preestabelecidas dentro do sistema, definia a atuação de cada uma nos mundos do trabalho e do ócio e, consequentemente, o seu lugar na sociedade. Além das diferenças de cor, e de função, aumentavam as diferenças sociais. O fenômeno da desigualdade social ultrapassa a condição de pertencer a determinada raça. Não devemos considerar as diferenças raciais como as únicas responsáveis pela desigualdade social. É preciso um mergulho analítico para compreender como esta sociedade se movia e em que direção. 

Se distinguirmos a sociedade essencialmente do ponto de vista jurídico, pois é este que formaliza quem tem direito à propriedade e à cidadania, a grande divisão será entre escravos e livres. Stuart B. Schwartz, no seu livro Segredos internos, com muita propriedade escreve que os portugueses faziam, originalmente baseados em diferenças raciais esta distinção. No Brasil, entretanto, não há notícias de escravos brancos, e, desde o primeiro momento do estabelecimento da colonização, o elemento nativo foi escravizado e depois substituído pelo africano. 

A conjunção de escravidão e latifúndio determinando o tipo da sociedade colonial que Gilberto Freyre estudou, não resultou numa sociedade cuja divisão era entre os livres e os escravos. Entre estes e aqueles, houve um mundo de gradação social que também se baseou na cor e na propriedade. Entre os livres, podemos encontrar o grande proprietário de agricultura e de gado, o pequeno proprietário, incluindo o lavrador e o pecuarista, o importador e o exportador ligados às atividades mercantis, os que se ocupavam da burocracia, militares, juízes e outros, e ainda o pequeno comerciante. Entre os escravos, os da lavoura, os da pecuária, os que trabalhavam em zonas auríferas, os escravos de ganho e os domésticos. Entre livres e escravos, há uma categoria de homens mestiços livres e que ocupavam várias funções na sociedade, algumas relevantes, mas todas dentro de certos limites. 

Décio Saes, analisando a posição das classes dominantes no processo de formação da sociedade brasileira no século XIX, propõe desagregar o conjunto de classes dominantes delimitando cada classe proprietária e suas frações, assim como definindo a relação entre os interesses de cada uma dessas classes. Para ele, os proprietários de escravos não constituem uma classe social e, sim, uma categoria policlassista — uma ordem, e a classe dominante poderia ser dividida em escravista e não escravista. 

Bobbio escreve que não se pode pertencer a uma classe por direito, mas somente de fato, e que o nascimento não é critério suficiente para se fazer parte de uma determinada classe social. Por sua vez, Marx e Engels admitiram que a classe era uma característica singularmente distintiva das sociedades capitalistas; e Marx sugere em A ideologia alemã que a própria classe é um produto da burguesia. 

Esses estudos teóricos, quando restritos a modelos para análise da sociedade brasileira, sofrem colisão com parcelas dessa complexidade. Os conceitos de classe e sua divisão estão mais perto de construções teóricas do que da realidade histórica. Se esta sociedade não pode ser incluída na lista das sociedades capitalistas, se não foi um puro exemplar da sociedade feudal, preferimos nos guiar pela assertiva de Thompson:

a noção de classe traz consigo a noção de relação histórica. Como qualquer outra relação, é algo fluido que escapa à análise ao tentarmos mobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura... A relação precisa estar encarnada em pessoas e contextos reais. 

A realidade em Pernambuco era a de que todos da classe dominante possuíam pelo menos escravos domésticos. Não houve nessa sociedade, até 1850, latifundiários e industriais não escravistas; ao menos não encontramos o seu registro. O nascimento não só determinava o lugar na sociedade, mas o destino dos indivíduos, e isto ia muito além da problemática econômica. O aparelho policial nunca fez distinção entre o negro livre ou o escravo. 

Se a sociedade do século XIX impunha aos homens de cor o seu lugar, a sua função, não podemos afirmar que negros e mulatos se identificassem ideologicamente. Esta afirmativa também é válida para os brancos. Nos conflitos e rebeliões que estudamos, estes grupos se moviam independentemente da cor, uns contra os outros, tendo os homens de cor, em qualquer dos grupos em conflito, na maioria das vezes, a posição subalterna. 

Há ainda que considerar o papel da burocracia na movimentação dessa sociedade. Em estudos feitos por Pereira da Costa e nas Devassas da Revolução de 1817 e de 1824, a liderança desses movimentos sempre esteve a cargo de uma elite que estudou em Coimbra, em Paris e em Londres. Em geral filhos de senhores de engenho ou de altos comerciantes, importadores e exportadores. Eles estão presentes também nos cargos administrativos do aparelho de Estado: “O povo de cor não é apto para todos os cargos administrativos e não poderá ser também para o sacerdócio”, observou Henri Koster, arguto analista da sociedade pernambucana no século XIX. São dele também as observações de que, pelo aventureirismo dos portugueses e pela ampliação dos domínios no Brasil, as leis se fizeram brandas e, consequentemente, mestiços ganharam terreno. Nas lutas contra holandeses ou na Guerra da Independência, negros e pardos lutaram em seus batalhões específicos ao lado dos brancos. Nessas ocasiões, a igualdade entre os homens se impõe.

SOCORRO FERRAZ BARBOSA é professora associada do Departamento de História da UFPE. Fez estudos doutorais em História Política na Universidade de Bielefeld, Alemanha; doutorouse em História Econômica, na USP; foi professora visitante na Faculdade de História e Geografia da Universidade de Salamanca e pesquisadora em vários arquivos: Apeje, em Pernambuco, Arquivo Nacional e Biblioteca Nacional, Arquivo Ibero-Americano, em Berlim; Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo da Torredo Tombo, Biblioteca da Ajuda e Biblioteca Nacional, em Lisboa.

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