Curtas

A viagem de Pedro

A mais arriscada travessia de Laís Bodanzky

TEXTO Neusa Barbosa

01 de Setembro de 2022

Cauã Reymond interpreta D. Pedro I no filme

Cauã Reymond interpreta D. Pedro I no filme

Foto Fábio Baga/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 261 | setembro de 2022]

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Tanto quanto D. Pedro I (Cauã Reymond), a diretora e roteirista Laís Bodanzky está fora de sua zona de conforto no drama histórico A viagem de Pedro. E não apenas por se tratar de seu primeiro filme de época, ambientado em 1831, tendo como cenário um navio inglês em que se deslocava o imperador, numa polêmica volta a Portugal, anos depois de indispor-se com a própria pátria ao proclamar a Independência do Brasil.

Não é a primeira vez que a cineasta paulistana penetra na voz interior de um personagem masculino, como faz mais uma vez aqui, depois de incursões bem-sucedidas em sua estreia, o premiado Bicho de sete cabeças (2001), e As melhores coisas do mundo (2010), nos dois casos, com protagonistas bem jovens, ao contrário do filme mais recente. A complexidade do perfil de Pedro I também é imensamente maior. Afinal, a também roteirista Laís Bodanzky lançou-se ao desafio de imaginar sentimentos e situações que se passam no interior de um personagem histórico solidificado no imaginário coletivo dentro do que ela mesma define como “uma lacuna histórica”, nos letreiros finais.

Em A viagem de Pedro, Laís corre mais riscos talvez do que nunca antes numa carreira que vem se mostrando segura e sobreviveu incólume a um período do outro lado do balcão da política audiovisual, por dois anos à frente da Spcine, sem abalar o conceito daquela que é uma das mais expressivas diretoras surgidas nos anos 1990. O risco se manifesta não só pela disposição de preencher os vazios de informação sobre o retorno do imperador à terra natal. Mais ousado é olhar do avesso os contornos de um símbolo masculino estabelecido do poder, adotando um ponto de vista feminino crítico, não raro zombeteiro e demolidor sobre um dos mais notórios expoentes do patriarcado nacional em pleno Bicentenário da Independência, quando a expectativa é que lhe prestem homenagens.

É extremamente revelador dessa intenção que se adote como narradora em off uma mulher, Leopoldina (Luise Heyer), a primeira e falecida imperatriz, que funciona como uma espécie de memória implacável das inúmeras crueldades do marido, latejando na psique de um homem obcecado pelo poder – não é outro seu objetivo com a travessia do que arrebatar do irmão, Miguel (Isac Graça), o trono português, em favor de sua própria filha mais velha, Maria.

Para alguém tão voluntarioso, não é nada menos do que constrangedor Pedro enfrentar uma crise de impotência que já dura meses com sua segunda e jovem esposa Amélia (Victoria Guerra), algo insuportável para alguém que colecionou amantes e filhos com toda a liberdade de que desfruta por seu sexo e posição. Mesmo o olhar intimidado de Amélia o incomoda, sentindo-se desnudado com a perda do controle da capacidade mais estimada de seu próprio corpo.

Ainda que evitando condescendência com seu protagonista, a diretora não é impiedosa a ponto de roubar a humanidade a um personagem que se apresenta, de saída, antipático – e é outro desafio, desta vez para Cauã Reymond, afastá-lo do registro de vilão caricatural, do qual o ator se safa a contento, no fio da navalha. Materializando de modo onírico suas lembranças de menino, cuidado pelos pouco afetuosos pais D. João VI e Carlota Joaquina (João Lagarto e Luísa Cruz), com uma mãe que ostensivamente prefere o caçula Miguel, o filme compartilha com o espectador uma possibilidade de síntese psicológica de Pedro que, se não o absolve totalmente, sugere o contexto que o formou.

Acrescenta outra camada, esta de outra ordem, a atração de Pedro por espionar, e depois finalmente frequentar, o dormitório dos negros, muitos deles escravos que trazia do Brasil. O relato erótico de Dira (Isabél Zuaa), misturando alguns dos idiomas africanos a bordo, tem o condão de criar, ao mesmo tempo, um parâmetro de empoderamento feminino e um contraste eloquente com o ocaso sexual e político do imperador.

O fato de o relato passar-se, em sua maior parte, a bordo de um navio ao largo do Atlântico, desterritorializado entre dois continentes, fortalece o contexto, ainda que tenha criado, certamente, desafios operacionais à filmagem. A fotografia de Pedro J. Márquez e a direção de arte de Adrian Cooper, no entanto, traduzem de maneira cristalina as dificuldades da jornada desta verdadeira cidade em movimento, com 250 tripulantes confinados em tão pouco espaço, sem que se dissolvessem as enormes diferenças sociais e étnicas a separá-los.

Uma dificuldade adicional, esta também para o espectador, será provavelmente a escolha da diretora de que haja tantas sequências oníricas, remetendo às lembranças de Pedro de seu passado com a amante Domitila (Rita Wainer), a marquesa de Santos, às alucinações que o acometem, fruto de uma saúde precária, e também a liberdade que o filme se dá de imaginar o confronto de Pedro com o irmão, que ele antecipa num pesadelo.

Por esta opção, além da preferência por um clima de estranheza já desde a narração em alemão de Leopoldina e as inúmeras cenas escuras ou à meia-luz, A viagem de Pedro é o filme mais expressionista da obra de Laís Bodanzky, localizando-se assumidamente no território instável da ressignificação da figura do imperador num momento em que ele abandonava o Brasil, aonde chegou menino e criou uma identidade mítica, de volta a um Portugal que acreditava que ele o havia traído. De todo modo, de nenhuma forma o filme contribuirá para quem quer que queira polir qualquer aura de herói. Transformado em estátua a adornar praças, em Portugal e no Brasil, esse Pedro contraditório e exposto nos olha e ainda pergunta quem é.

NEUSA BARBOSA é jornalista, crítica de cinema, editora e criadora do Cineweb.

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