Entrevista

"Música não é só festa"

Compositor, vocalista e baixista da banda Devotos, Cannibal fala sobre sua trajetória intimamente ligada ao bairro Alto José do Pinho, seus novos projetos e a expectativa do show no 'Rock in Rio'

TEXTO Erika Muniz

01 de Setembro de 2022

O músico Cannibal em seu fusca

O músico Cannibal em seu fusca

Foto Rennan Peixe

[conteúdo na íntegra | ed. 261 | setembro de 2022]

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No início da pandemia, em uma das lives de que participou, ao ser questionado sobre os anseios de vida, Cannibal afirmou: “Meu sonho é uma creche no Alto José do Pinho e a Devotos tocar no Rock in Rio”. Para a alegria do cantor e compositor pernambucano e de seus fãs, um desses sonhos tem data para se concretizar. No dia 2 de setembro, o power trio formado por ele (baixo e voz), Neilton Carvalho (guitarra) e Celo Brown (bateria) sobe ao palco do evento carioca a convite da banda Black Pantera. Esse palco será mais um espaço ocupado pela Devotos, mas também uma plataforma para que o trabalho realizado há mais três décadas pelo grupo no Alto José do Pinho, zona norte do Recife, seja conhecido por um público ainda maior, alimentando a possibilidade de o sonho da creche em seu bairro se tornar realidade.

Na sua juventude, Marconi de Souza Santos, o Cannibal, que é apaixonado por futebol, chegou a treinar nas categorias juvenis do Santa Cruz, seu time de coração. Mas, quando a música chegou em sua vida, logo percebeu que teria que fazer uma escolha e a verve artística falou mais alto. De seu interesse e envolvimento com o movimento punk nasceu a Devotos, em 1988. Outros projetos também compõem sua trajetória, a exemplo do Café Preto, em que explora a musicalidade do dub e do eletrônico. Em 2018, quando a Devotos completou três décadas de existência, Cannibal lançou pela Cepe Editora Música para o povo que não ouve, contando a trajetória da banda. O livro acaba de ter reimpressão.

Em uma tarde, depois de levar sua filha, Maria Vitória, à aula de teatro, Cannibal reservou um horário para receber a equipe da Continente em sua casa, no Alto José do Pinho. Caminhamos pelo Alto, onde o artista era cumprimentado por moradores, até escolhermos a escadaria da Rua Macaparana para a realização desta entrevista. Entre os temas trazidos estão os projetos recentes da Devotos, a exemplo do álbum Devotos punk reggae, que convoca as influências do som feito pela banda com o gênero jamaicano no repertório, o seu entusiasmo pelos vinis, além da importância da educação, da cultura e de ações sociais que fazem parte da história e das letras de sua banda.

CONTINENTE No mais novo single da Devotos, Dança das almas (2022), o tema da reforma agrária aparece. Mas ações e temas sociais permeiam as letras e fazem parte da história da banda. Queria que você comentasse a importância dessa abordagem na sua arte.
CANNIBAL Devotos é uma banda que surgiu para mudar o quadro social através da música. Surgiu, aqui, no Alto José do Pinho, justamente pela dificuldade que a gente via e que sente até hoje. Tem várias formas de reivindicar, alguns reivindicam com livros, outros com filmes, fotografias, escolhemos a música como forma de arte para reivindicar. E vendo o que a gente tinha na nossa frente, o que faltava para nós, esse descaso do governo com as periferias, com o Alto José do Pinho. Logicamente, a gente é nascido e criado aqui e não teve muito luxo, principalmente, com comida; a gente não teve muito luxo com terra, a gente não teve muito luxo com nada e vendo a vasta imensidão de tanta terra que esse Brasil tem... E tantas pessoas querendo, simplesmente, viver do que plantam, a gente vendo aquela guerra, donos de terra botando as pessoas para fora, invadindo, aquilo faz você pensar: “Não está legal. Acho que dá para todo mundo. O país é muito grande, o Brasil é muito grande. Acho que dá para dividir para todo mundo”. Quando você vai entendendo o que está acontecendo no mundo, política e socialmente falando, já vê que a parada é uma coisa de exclusão mesmo e de se apossar do que é do outro e também de sempre diminuir, de sempre deixar você como o menor, como o pequeno. E a Devotos sempre contestou isso. Falar sobre a reforma agrária dentro dos nossos temas, para nós, é essencial, porque em tudo o que é excludente a gente bate. A gente tanto trata desse tema da reforma agrária como trata do racismo, da homofobia, das pessoas que sofrem gordofobia. Acho que tudo isso está englobado no meio social que a gente vive. Como vivemos com pessoas que sofrem com isso, a gente convive, alguns são nossos amigos mesmo, trazemos para as nossas letras. Falar de reforma agrária e trazer uma pessoa como Chico César para fazer o trampo, para cantar com a gente, é muito gratificante e é muito rico. Sentimos a necessidade de passar isso para as comunidades, de passar isso para os subúrbios, porque é um tema social em que a sociedade está envolvida, mas sabemos que, musicalmente e culturalmente falando, não está na mídia. Não é isso que toca na periferia, não é isso que toca no subúrbio, não é isso que toca no periférico. Então, ter bandas como Devotos que tocam e cantam isso e ter a participação de Chico, que é um cara que também se envolve na causa, faz as pessoas se alertarem que dentro das comunidades têm várias culturas, várias artes que tratam de temas sociais e são muito importantes para quem mora dentro do subúrbio. Música não é só festa.

CONTINENTE Como foi a participação de Chico César e como rolou esse convite.
CANNIBAL Chico é um cara que a gente admira. Conhecemos Chico há muitos anos, desde que ele era Secretário de Cultura de João Pessoa (PB). Fomos fazer um Seis e Meia, um projeto que ele tinha lá. Isso em 2010, acho. Cada vez mais admirando tudo o que ele faz. Costumo dizer que consideramos muito mais o punk nas atitudes do que na música. Têm pessoas que fazem música punk, mas não têm atitude punk nenhuma. Existem muitas pessoas que conheço que não fazem música punk, mas têm muita atitude punk, não só nas letras, mas também nas ações, e Chico é um desses, que a gente faz questão de trazer para junto, porque o que ele canta, o que ele luta, é o que a gente luta. Nos identificamos muito. Trazer pessoas desses outros meios, que não fazem punk, não fazem hardcore, que não fazem metal, para nós, é essencial, porque nos faz crescer e aprender muito. Acho que, quando você tem o pé no chão de que você não é o único e pode aprender com outras pessoas, com outros ritmos, com outros comportamentos, com outras posições, você cresce na sua área, no que está fazendo. É isso que Devotos faz, nunca fomos uma banda que pensou em fazer uma coisa direcionada para um público ou para artistas que são do hardcore, do punk e tal. Fazemos uma coisa porque a gente curte também. Celo gosta de The Smiths, The Cure, Legião Urbana, coisas mais pop; Neílton gosta mais de guitar bands, gosta mais de blues; eu gosto mais de punk e a gente sai escutando o que o outro escuta. A gente se influencia muito e traz para a nossa essência, para a nossa arte, para a nossa música individual, para o nosso gosto.

Logicamente, quando vamos fazer um disco, quando vamos compor, isso entra naturalmente. Fazemos a mesma coisa, quando vamos procurar uma participação. Já tivemos participação de João Gordo, de Clemente (Nascimento, do Inocentes), já tivemos participação da nossa área. Você colocar participação de pessoas que não têm nada a ver com a sua área, mas que tematicamente têm a ver, que é justamente aquele cara que não veste a roupa punk, mas é um punk em atitude, é um punk na sua arte. Isso para nós é muito gratificante. Me lembro de que, na época em que a gente começou a fazer isso, muita gente meteu o pau. O segundo disco da Devotos tem a participação de Dado Villa-Lobos, que também produz o disco; do Ras Bernardo, que foi o primeiro vocalista da Cidade Negra; do China, do Sheik Tosado; do Toni Platão, da banda Hojerizah. Pessoas totalmente fora do movimento punk, mas, ao mesmo tempo, pessoas totalmente dentro, pelas suas atitudes. Isso causou uma coisa muito louca na mídia. Aquela que não estava acostumada com isso. Na verdade, a mídia que não estava acostumada com pernambucanos, porque a gente é muito plural na nossa essência. Não conseguimos ser bitolados em uma coisa só, escutamos de tudo. A galera que nunca veio ao Recife, que vai ao festival de bandas, como o Abril pro Rock, e está vendo a ciranda de Lia de Itamaracá, vai ver essa mesma galera que está na roda punk da Devotos. Para nós, isso é muito natural, mas para pessoas que não são daqui, que não têm a visão de dentro do Brasil e, principalmente, de dentro do Nordeste, do Recife, em Pernambuco, é uma coisa muito inesperada. Naquela época, chocava. Hoje, a gente já vê as coisas se abrangendo mais. Acho que por causa da tecnologia, já estão se juntando mais. É dessa forma que vemos como do caralho ter a participação de Chico com a gente. Um cara que, nas palavras dele, admira também Devotos.


Capa do single Dança das almas, da Devotos com Chico César,
lançado este ano. Imagem: Neilton Carvalho/Divulgação

CONTINENTE De que maneira a pluralidade cultural não só do Recife, mas do Alto José do Pinho, influencia a sua criação?
CANNIBAL Isso já vem desde criança. Já que a gente está em um período da política muito forte, daqui a pouco tem eleição para presidente… Lembro muito bem, aqui, na comunidade, Miguel Arraes subir no Alto José do Pinho para fazer os comícios dele. Naquela época, os comícios eram sempre com música, tinha o artista que vinha cantar, que trazia o público, então começavam e terminavam com o artista. Na maioria dos de Arraes, quem subia era Reginaldo Rossi e ele fazia em cima do caminhão de Seu Valter, que ainda é vivo e mora na frente da minha casa. A gente era muito guri escutando aquilo. Terminava a parada de Reginaldo Rossi, em um dia ou, até, no mesmo dia, passava o maracatu. No final de semana, no (clube) Bonsucesso, ia ter a (festa) Manhã de Sol Cubana. A gente era bombardeado de ritmos e de culturas. Então, nascendo dentro de uma pluralidade como a do Alto José do Pinho, não tem como você ser um músico, ser um artista bitolado. Nanica Papaya, B.U., A Ostenta, O Verbo, Matalanamão, Faces do Subúrbio, vão surgindo bandas diferentes umas das outras, mas dentro da mesma comunidade, com influências da própria comunidade, porque não tem como você ver o Maracatu Estrela Brilhante passar e ficar parado, sem tirar alguma coisa dali. De repente, o mestre do maracatu chega e diz: “Olha, a gente está cantando a música do Devotos em ritmo de maracatu”. Passa o maracatu cantando Punk rock hardcore. A mesma coisa acontece com o Afoxé Ylê de Egbá, a mesma coisa acontece com os caboclinhos. Quando tem qualquer evento, que a gente convida, a galera está junto.

CONTINENTE Você curte mais o processo de composição, de gravação ou quando está no palco com o seu público?
CANNIBAL (Abre um sorriso) É o palco, é o público. Aquilo é tudo, né? Uma vez dei uma entrevista para Cunha Júnior. Estávamos em São Paulo, no Sesc, e ele fez uma matéria para a TV Cultura. Falei para ele que a primeira arte que você faz, você faz para você e não faz mais outra igual, porque todas as outras que você fizer, depois que você entra no meio, é para alguém, é pensando se vai ser legal, se vai ser bom, se as pessoas vão gostar. Pode ser pior ou melhor que a outra, mas ela nunca vai ser igual. A primeira arte é muito pura. É tipo o primeiro disco da Devotos, que é muito puro. Chega até a ser leigo em letra e em música também. Depois dali, a gente começa a ter uma evolução, mas é aquela arte que a gente diz: “Isso a gente não vai conseguir repetir nunca”. Depois que você faz a primeira arte, que você entra no meio, você faz pensando: “Poxa, como é que a galera vai aceitar? Como é que vai ser com a imprensa? O que eles vão dizer?”. Na primeira, você não pensa em nada disso, você só quer compor, só quer fazer. Para mim, quando chega a hora de tocar e de mostrar para o público, é o que mais piro. É o que mais fico esperando, porque música, para mim… Tu não vais nem acreditar, a gente tem 33, quase 34 anos de banda, mas toda vez que vou para o palco, fico nervoso. Pode ser qualquer palco, se tu me chamar para tocar na tua casa, eu fico nervoso. Se eu for para um Abril pro Rock, fico nervoso, fico chato durante o dia, não como direito. (Risos) Nunca pulei, mas acho que é a mesma coisa de pular de paraquedas. Sempre fico querendo que aconteça logo o show. Quero é estar no palco.

Agora, também quando piso no palco e dou o primeiro acorde, acabou-se! Sou eu e a galera ali. Desce um santo. Não sei como é aquilo, não. Começa a dar umas coisas em mim, que não sei explicar, consigo ter uma interação muito grande. E a gente nunca fez nada em um ensaio, tipo: “Ah, vou dizer isso, vou falar aquilo. Depois dessa música, a gente vai fazer assim”. Nunca foi assim. Então, quem vai para um show da Devotos, nunca vai ver um show igual ao outro, porque a gente é muito sentimento. Teve show que foram só as músicas tocando; teve show que falamos muito e tocamos menos; tem show que a galera diz que foi do caralho. “Pô, aquele show de vocês foi foda”. E foi um dos piores da gente, porque a gente sentiu que não estava tocando legal, não tava passando legal, não ensaiou legal, não foi aquela coisa que a gente queria em cima do palco. Mas a galera disse que foi um show do caralho. Estar sempre em cima do palco me arrepiando, esse lado é muito mágico, é a coisa que mais me emociona. A galera pode até não acreditar, mas algumas músicas da Devotos, tipo C.O.S., Eu tenho pressa, Punk Rock, sou eu cantando e me arrepiando.


Cannibal e Wally, roadie e amigo que lhe apresentou o heavy metal.
Imagem: Arquivo pessoal/Cortesia

CONTINENTE Quando o punk rock chega na sua vida?
CANNIBAL O punk chega na minha vida quando saio do Alto José do Pinho, da (escola) Santa Maria e vou para a Carlos de Lima Cavalcanti, em Casa Amarela. Sempre gostei de funk, baile funk, James Brown e estava sempre ali, mas nunca tinha prestado atenção em letra. Nem da música nacional nem da internacional. O negócio era se divertir, dançar e aquela parada toda. Quando vou para o Carlos de Lima e conheço Wally, que é roadie até hoje, ele começa a me mostrar uns discos. Ele me mostra um Iron Maiden, que foi o meu primeiro álbum de rock. Inclusive, o primeiro de rock que comprei foi um Iron Maiden e curti pra caralho, gostei muito. Ouvi e, achei massa. Mas, aí, conheci uma galera. Sempre gostei de andar de skate e conheço uma galera que me convida para ir para o movimento punk. “Olha, tem uma galera que se encontra no Centro da cidade”. Era Akio Irie, Noriyuri Asano e Lael. Vou me encontrar com essa galera, quando colo com eles, os caras começam a me mostrar umas músicas, rock pesado, que não era a mesma coisa do metal, não era a mesma coisa do Iron Maiden e com que me identifiquei na hora. Quando vi as capas, quando vi a galera, quando vi os músicos dessas bandas, vi que pareciam muito comigo. Os do metal, não, os do metal eram sempre brancos, mas o som, eu gostava pra caralho. Já os do punk, que eu nem sabia que eram punk, eram parecidos com a gente, com a comunidade. Comecei a ir mais para o lado do punk. Quando escutei Inocentes, vi as letras e vi o Clemente, negro, ali na frente do palco, guitarra na mão, cantando, um frontman, eu disse: “Esse cara sou eu, velho!”. (Risos) Bem Roberto Carlos, mas “esse cara sou eu”. A identificação foi muito forte.

Já dentro do movimento punk, indo para ensaios de outras bandas, eu não queria fazer banda. A galera ficava me influenciando. Quando vi o Clemente, disse: “Se um dia fizer uma banda, vai ser igual a desse cara”. Tanto é que, se a galera escutar Devotos antes do Agora tá valendo, parece muito com Inocentes, parece muito com Cólera, parece muito com aquelas bandas de São Paulo, a influência era muito forte. Conseguimos ter uma identidade, como banda, no Agora tá valendo. A gente passou nove anos tocando igual a qualquer banda de São Paulo. Então, o punk entrou na minha vida meio que saindo do Alto José do Pinho, conhecendo um amigo em uma escola chamada Carlos de Lima Cavalcanti, ele me mostrando o heavy metal, andando de skate e a galera do skate me levando para o lado do punk. De repente, eu estava totalmente envolvido com o movimento, com banda, fanzine. Como falei, não queria fazer banda, mas fui praticamente “obrigado” a formar a Devotos por Lael, que era o vocalista do SS-20. Ele dizia: “Forma tua banda, forma tua banda. O nome da banda é Devotos do Ódio. Tu vais tocar no IIIº Encontro Antinuclear. Arruma umas bandas, que a gente vai botar a galera para tocar”. Foi aí que entrei de cabeça no movimento punk.

CONTINENTE E sobre a relação de vocês com o reggae? Até porque, nesse novo trabalho da Devotos, vocês vão por esse caminho.
CANNIBAL Devotos sempre teve um reggae no meio. A gente não sabe por que, no primeiro disco, o Agora tá valendo, não tem nenhum reggae. Mas a gente já tinha músicas com punk e reggae misturados, hardcore com reggae ou só reggae, sempre gostamos de fazer essa mistura. Depois do Agora tá valendo, cada disco tinha uma ou duas músicas com reggae. Muito antes dessa pandemia, a gente já tinha essa ideia de colocar todas em um disco só, pela consideração e respeito que a gente tem pelo reggae e por ter esse ritmo em nossa música. Mas também por saber e já ter se ligado que esses ritmos se juntaram desde os anos 1970, desde a época do The Clash mesmo, uma coisa que está muito na essência do punk. Está nas vestes, nas roupas, por ter um cara do reggae, o baixista do Big Audio Dynamite – que era totalmente envolvido com grifes, com roupas, aquelas paradas todas e trazia a galera do punk para conhecer o que ele vestia. E ele mostrou o reggae para a galera. Isso fez o leque dentro do movimento punk se abrir cada vez mais. Não era só a música, era a música, o estilo, as vestimentas, tudo estava junto. Falar sobre isso, colocar isso dentro da nossa música e fazer um disco só de punk e reggae, autoral, na Devotos, para nós, é essencial. A gente tinha que fazer, não podia só ficar: “No próximo disco vai ter mais uma música de reggae”. A gente queria colocar todas em um disco só. A gente chama Pedrinho (Diniz, produtor musical e arranjador) para fazer os arranjos e ele traz naipe de metal, traz percussão, traz backing vocal, traz teclado, então, ficou roots, né? Que foi o que a gente quis falar para os caras: “Já que vai ser assim, então, vamos fazer uma música roots mesmo. Deixar aveludada, porrada, na essência do reggae”. Deu certo para caralho, a gente está curtindo muito. A galera fica achando: “Devotos agora é reggae?”. “Não, sempre rolou reggae na nossa música”. A gente fez um disco em homenagem ao reggae, que é um ritmo que a gente sempre curtiu e que está junto da gente em vários sentidos, tanto no lado da exclusão, quanto no lado musical. O reggae e o punk são ritmos de resistência. São dois ritmos que vêm da cultura negra e, como negros que nós somos, vivemos resistindo. Acho que é isso que faz a gente ficar forte também. Quando isso se une, estamos resistindo, mas ficamos cada vez mais fortes nessa união. 


Cartaz do IIIº Encontro Antinuclear, onde ocorreu a estreia da
Devotos, em 1988. Imagem: Arquivo pessoal/Cortesia

CONTINENTE E o Café Preto, fala sobre esse seu outro projeto.
CANNIBAL O Café Preto é o que a gente conversou sobre a musicalidade, sobre a multiculturalidade do Alto José do Pinho. Você ter tudo envolvido e, de repente, não ficar quieto. “O que vou fazer a mais aí? Vou montar uma banda. Mas montar uma banda igual à Devotos? Vou fazer uma coisa totalmente diferente, uma parada mais eletrônica, mais envolvida com o dub, que é uma vertente do reggae.” Foi essa ideia. Tinham muitas letras do Devotos que eu queria musicar em ritmo de dub, aí, convidei o Bruno Pedrosa para fazer as batidas, que convidou Pierre Leite para fazer as bases com ele. Ele chega para mim e me dá oito músicas para eu compor em cima. “Vou escrever e a parada vai ser totalmente diferente. Vou falar de uma coisa mais sentimental, de histórias de carinho, de amor, essas paradas todas.” Ficou legal para caralho porque meio que chocou, né? Acharam que vinha uma coisa mais voltada para o social e não, veio uma coisa totalmente diferente.

Acho que isso é o legal do Café Preto, porque é feito por um cara que toca punk e hardcore, com uma banda como o Devotos, mas não quer fazer o que o Devotos faz. A gente quer fazer uma coisa totalmente diferente. O mais legal disso é quando apresentei o Café Preto às pessoas. Não apresentei como minha banda. Antes de o Café Preto sair, a gente gravou, eu começava: “Escuta isso aí”. O cara escutava: “Pô, que legal, velho. Quem é?” “Sou eu”. O cara fazia: “Não és tu não”. Passava um pouquinho: “Mas nessa parte não estás cantando, não”. “Sou eu.” (Risos) Todas essas surpresas, lembro muito bem. Os looks são do Eduardo Ferreira, que convidei para fazer as roupas do Café Preto. Ele pirava: “Você se transformou e tal”. A ideia é essa, não é eu me transformar, mas é ficar mais distante da Devotos, para poder ter liberdade de compor ali em cima. Foi assim que surgiu o Café.

CONTINENTE Acompanhei suas lives e vi sua relação com os vinis. Tem algum preferido, daqueles que não saem da sua radiola? Você é daquelas pessoas que vão para as feiras procurar vinis?
CANNIBAL (Risos) Tenho um problema muito sério com vinil, visse? Porque tenho um cartão de crédito, então, é um perigo. Principalmente, quando vou a uma loja ou a uma feira de vinil. Fico achando que sou rico, vou passando o cartão, vou pegando e quando a fatura chega, vejo que sou pobre mesmo. Sou apaixonado, escuto, adoro vinil. Tenho uma parede de CDs, em casa, mas o que boto para escutar é vinil. Quando vou lavar os pratos, vou dar um grau na casa, minha discoteca básica, eu tiro do vinil. É muito difícil, para mim, ter um que eu coloque todo dia, um preferencial. Antigamente até tinha, Inocentes e Bad Brains, eram 24 h escutando esses dois. Hoje, estou muito aberto, escutando muitas coisas. Tem um cara chamado William Onyeabor, um nigeriano, que faz uma parada meio africana com umas guitarras, uma coisa bem Fela Kuti. Os dois são da mesma época, anos 1970, e estou escutando muito. É um disco que ganhei de Dado Villa-Lobos. Ele foi para Portugal e o genro dele tem uma loja de discos, eu disse: “Dado, se por aí tiver esse disco, se tu achar, traz para mim”. Ele achou e mandou para mim. Estou escutando muito. Isso é uma parada nova? Não, os caras são dos anos 1970, mas as pessoas estão conhecendo agora. Hoje mesmo, pela manhã, peguei o Bob (Marley) e botei para ouvir. De vez em quando, vem um Bad Brains, que estou a fim de ouvir e boto de novo. Daqui a pouco, o Inocentes. Tenho um vinil da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, do Maestro Forró, que de vez em quando escuto, tem essas paradas todas. Hoje, sou muito de ouvir várias coisas. Antes era mais radical, escutava muito mais punk. Ouvia várias coisas, mas eu tinha uma coisa direcionada, era muito mais punk a parada.


Cannibal em loja de produtos musicais, diante de vinis,
sua paixão até hoje. Imagem: Arquivo pessoal/Cortesia

CONTINENTE Em meio a esse desmonte que vem acontecendo no país, sobretudo nos últimos anos, como você enxerga a importância de investimentos e políticas públicas voltadas à educação e cultura para o povo brasileiro?
CANNIBAL Enxergo do modo que sempre enxerguei. A cultura e a educação fazem esse mundo girar de uma forma positiva. Vivemos em um país onde, infelizmente, cultura e educação não são prioridades, porque, se fossem, não teríamos o presidente que a gente tem hoje. Se fosse, não teríamos as mazelas que temos hoje. Se fossem, não estaríamos tão direcionados a só pensar em dinheiro, mas em saúde. Se fossem, a gente estaria direcionado a pensar em educação, em capacitar cada vez mais os professores e em dar um salário mais digno a eles que são a mãe e o pai de todas as profissões. Na minha cabeça, não entendo quando um professor vai reivindicar e, de repente, um policial vai lá e mete o cassetete nele. Meu irmão, você bater em um professor é o mesmo que você estar batendo em sua mãe, em seu pai. Se você está usando uma farda, é por causa dele. Se você está pagando o pão de cada dia da sua família é porque você teve um professor. Essas coisas todas passam pela educação, essas políticas são muito necessárias e cada vez mais são. É por isso que acho que é muito bom a gente se envolver. É muito bom se ocupar e você ver negros, pessoas LGBTQIA+, pessoas gordas dentro da política. Estou falando já de um lado partidário, de se envolver como candidato mesmo e estar lá um vereador, um prefeito, um presidente que lutou e que luta pelas causas sociais desde sempre. E não botar qualquer um, alguém que nunca mudou sua rua, que nunca varreu o chão de sua casa, que nunca entrou em uma comunidade, nunca entrou na favela, que nunca teve empatia social. Colocar (uma pessoa assim) dentro de um cargo de chefe de uma nação é muito perigoso. E a gente está sentindo isso agora. Vejo como essas políticas públicas são importantes para gente se envolver e se ocupar, porque, se não lutamos contra a gordofobia, contra o racismo, contra várias mazelas do mundo, se não for nós mesmos, se não for as pessoas que sofrem com aquilo, ninguém vai mudar. Se a gente esperar essa galera que assina a caneta mudar por nós, não vai acontecer. Por eles, a gente vai continuar lavando carros, vai continuar tomando conta dos carros, trabalhando para eles. Se a gente não pensar em um dia pegar a caneta, cada vez mais a gente vai estar sofrendo, cada vez mais vai falar sobre isso. Acho que precisamos pular essa página de só falar sobre isso, temos que falar sobre como vamos resolver.

CONTINENTE Nestes mais de 30 anos da Devotos, vocês já viveram algum tipo opressão ou preconceito pela música que vocês tocam ou por virem de onde vocês vêm?
CANNIBAL Opressão e preconceito, infelizmente, fazem parte da vida de quem toca punk e hardcore e da vida de quem é de periferia. É uma coisa que parece que não muda. Desde o começo, a Devotos era uma banda muito oprimida. Até quando a gente ia para shows, aqui, no Alto José do Pinho, nas periferias. Íamos de ônibus e, nas voltas, o ônibus não subia o Alto. A gente tinha que descer na Avenida Norte. Quando saía do ônibus, que ia subir a ladeira, sempre tinha um carro da polícia que mandava a gente parar, abrir as pernas, deitar no chão. Diziam que aqueles instrumentos não eram nossos, que não éramos músicos. Passaram-se anos e anos acontecendo isso com a Devotos. Fora a gente ter que sempre estar provando alguma coisa para poder entrar (na programação). Não que você queira entrar a pulso, mas você sabe que existe uma cadeia musical de festivais, e que é muito difícil de entrar. Aí, já não falo mais só como Devotos, falo como banda alternativa. Sinto que isso acontece com vários grupos do Recife. É muito difícil entrar em festivais. E são bandas muito fodas, só que – pelo estigma, ou não sei por quê – por serem bandas de hardcore e de punk, não estão dentro de festivais. Vejo um preconceito grande com o punk, com o movimento punk, de tanto tempo que isso rola com a gente.

No Carnaval que teve no Recife em 2020, antes da pandemia, pararam o nosso show, na Várzea. A polícia parou o show porque a gente estava cantando uma música de Chico (Science), depois tocou uma da Devotos, que eles não gostaram. Foram na produção. Chegaram para mim e disseram que, se a gente cantasse de novo aquele tipo de música, eles iriam acabar o show. Continuamos, mas é uma coisa que acontece, que não vai parar de acontecer. Mas a gente não vai parar por causa disso. A gente não vai ceder à repressão, porque é uma banda que surgiu para mudar o quadro social através da música. Se não reverberar, se não falar das opressões que sofremos, não estamos fazendo nada. Vamos sempre lutar pelo nosso objetivo, que é coletivo e social, não é um objetivo só para a banda. É além do musical. Devotos tem 30 anos, são tantas coisas que aconteceram nesse período que, para você entrar em certos lugares, tem que ser muito maleável. A banda tem que ser muito maleável. Trocamos muitas ideias, sabemos a importância dos eventos, aqui, no Recife. Sabemos a importância que a Devotos tem. Às vezes, a gente não estar nesse evento não quer dizer que ele não preste. O que ficamos pensando é por que a gente não toca naquele evento, já que o público fica perguntando se a gente vai tocar. “Vocês vão tocar em tal evento?”, “Este ano vocês vão tocar?”, “Na prévia, vocês vão tocar?”,  mas a gente nunca tocou. A gente se pergunta qual é a história. É porque é uma banda punk? É porque é uma banda de periferia? A gente já sofreu tanta coisa, que fica com isso, refletindo o porquê de a gente não tocar nesses eventos. Aí, continuamos o barco, porque o Brasil é muito grande e sonhamos em tocar na Lua. Não dá para você canonizar ou focar num evento em que você não está tocando, a gente tem que focar no mundo. Esse lance de tocar no mundo já nos rendeu três tours europeias, através da Mess Prod, selo francês, que lança nossos discos na Europa. Essa é a nossa história.


O trio formado por Neilton (guitarra), Celo (bateria) e Cannibal (baixo e vocal), no início da carreira. Imagem: Arquivo pessoal/Cortesia

CONTINENTE Neste ano, vocês vão tocar com Black Pantera, no Rock in Rio. Esse é um festival que foi muito importante para o rock e para a música brasileira. Como vai ser estar nesse palco?
CANNIBAL Estar dentro do festival, lógico que a gente pira, sempre falei isso. Já tinham feito a proposta, para você ter ideia, há quase um ano, só que eles pediam sigilo. Quando começou a pandemia, com as lives acontecendo, lembro que alguém perguntou para mim qual era o meu sonho e eu disse: “Meu sonho é uma creche no Alto José do Pinho e a Devotos tocar no Rock in Rio”. A ideia da creche todo mundo já sabe. É uma comunidade que nunca teve uma creche. Tem muitas mães jovens aqui no Alto José do Pinho que precisam trabalhar e a gente sabe, quem mora em comunidade, em subúrbio, sabe como é nocivo crianças na rua. Nocivo de várias formas, desde o lado do desvio, para o tráfico, até o dia a dia, de mortes com carro e a ociosidade também. O lance de querer tocar no Rock in Rio foi uma coisa muito de não ser só música. Sabe aquela coisa de você lutar por uma causa social através da música e você conseguir abranger mais gente? É aquilo, você vai tocar em um festival que vai para o mundo. O mundo vai saber nossa temática, vai saber o que a gente luta e o que a gente quer para a sociedade. As pessoas vão ouvir e dizer: “Meu irmão, os caras não estão aí para brincadeira, não”. Mesma coisa quando a gente subiu no (palco do) Marco Zero, que a galera foi para lá pensando que a gente ia aliviar e fizemos do jeito que tocamos no Alto José do Pinho, com discurso e tudo. De repente, ser convidado a tocar no Rock in Rio, para nós, foi uma sensação muito foda. Não sei descrever, porque só vou conseguir quando descer do palco. Porque até agora a gente está meio anestesiado com a história. Anestesiado de um lado muito positivo, porque sabemos que o som que a gente faz, não só Devotos, como Black Pantera e bandas que tocam como eles, são necessários em uma época como esta. Em um festival como aquele vai ser muito foda, porque a galera vai olhar para as causas sociais não por causa da Devotos, nem por causa do Black Pantera, mas vai olhar de um modo muito mais de querer se envolver. Quanto mais grupos, pessoas estiverem falando sobre isso, é do caralho. Porque quando você pega um artista grande falando sobre isso, é muito positivo, mas quando você pega artistas que são da periferia e que sofrem isso, a proporção muda. É muito grande. Por isso que quando Emicida, Djonga, Mano Brown, Clemente falam é muito foda. Porque os caras sentem na pele, é muito diferente.

CONTINENTE Agora, conta da sua infância e da sua relação com o futebol, que você gosta muito, não é?
CANNIBAL Minha infância toda era jogar bola  no meio da rua. Aos 12 anos, comecei a jogar. Na época se chamava “dente de leite”, no Santa Cruz. Joguei até os 14, depois parei, comecei com banda, depois voltei de novo para o Santa Cruz e já tinha a Devotos. Aí, vi quando a banda bateu mais em mim, já senti que era aquilo que eu queria. Foi quando o treinador olhou para mim e disse: “Cara, tua parada é música, tua parada é tocar, tu não vais conseguir relacionar as duas profissões. É melhor você seguir”. Eu já não treinava como gostava, como deveria, já não corria como queria correr, já chegava pensando em tocar, pensando em ensaiar, pensando em compor. Então, foi assim a minha vida com o futebol, mas, até hoje, jogo futebol. Foi muito foda porque eu deixava ensaio para bater pelada, para poder treinar. Marcava ensaio com os meninos, Celo e Neílton iam ensaiar e eu ia jogar bola, ia para campeonato. Nunca pensei que ia ser músico. Mesmo tendo uma banda, não sonhava que eu ia viver daquilo, minha vivência era o futebol. Foi muito louco e cheguei muito perto de ser profissional. Na época que eu estava no juvenil, tinha a transição de juvenil e juniores, aí, treinava nas duas bases. O técnico, na época, era o Ramón (da Silva Ramos). Quem estava treinando com a gente eram Rivaldo, Válber, Pistolinha, Preto, o zagueiro Robson e essa galera toda subiu para o profissional. Isso era 1990. Em 1995, os caras foram campeões. Rivaldo foi para Mogi Mirim, depois Válber também. Depois, os caras foram para o Corinthians, depois Rivaldo foi para o Barcelona. E eles ganharam o mundo.


Neilton, Celo e Cannibal no Festival de Inverno de Garanhuns, em 2022. Foto: Antônio Melcop/Secult-PE/Fundarpe/Divulgação

CONTINENTE O que mudou na representação do Alto José do Pinho, a partir do reconhecimento e da divulgação da arte de vocês, de outras bandas e dos movimentos culturais daqui, nos veículos de imprensa? Como a valorização dessa cultura feita aqui modificou a relação dos próprios moradores com esse lugar?
CANNIBAL Acho que a primeira coisa que aconteceu foi a gente conseguir tirar o Alto das páginas policiais. Não digo nem de tirar, mas conseguir colocar o Alto nas páginas culturais, porque, até então, ele só era conhecido pela violência que existia, pelo tráfico. Isso era muito foda porque fazia a comunidade ter uma baixa autoestima. Ela não se conhecer, não se ver. Você morava no Alto e dizia que morava em Casa Amarela, não dizia que morava no Alto José do Pinho. É uma coisa muito comum, quando você mora em uma comunidade que todo mundo acha que é violenta. Tudo o que se passava de ruim no Alto José do Pinho, passava na televisão, nas rádios, e, de repente, surgem as bandas propagando coisas positivas no Brasil. Na MTV, Folha de S.Paulo, rádios, TVs e a comunidade começa a se ver diferente. Você começa a se olhar no espelho e dizer: “Sou linda, sou maravilhosa”. E você olhava no espelho e dizia: “Estou muito feia”. Você não mudou nada, está do mesmo jeito, mas tem uma autoestima, uma personalidade que você começa a dizer: “Sou linda, sou maravilhosa e quero continuar assim. Para continuar assim tenho que me envolver com aquele ambiente”. Foi isso que aconteceu com o Alto José do Pinho. Eles (os moradores) começaram a ver as bandas dentro da comunidade na TV e nas páginas culturais. Quem era do Alto, mas morava em São Paulo, ligava para a família e dizia: “Vi o Alto José do Pinho. Vi os caras daí tocando. Quem eram aqueles meninos? Lembro daqueles meninos”. “Ah, os meninos nasceram aqui, são daqui.” “Ah, quero conhecer quando for para aí.” De repente, quando tu estás no teu trabalho, que tu não trazia ninguém para a comunidade, o cara do teu trabalho diz: “Meu irmão, quero ir lá no Alto. Teu Alto é foda. Como é que a gente faz para ir lá? Quero conhecer Zé Brown, quero conhecer Adilson, do Matalanamão, quero ir no Caldinho do Biu, quero ir no Bar do João”. Coisas que eram praticamente impossíveis de acontecer naquela época. Foi isso que a gente conseguiu: tirar o Alto das páginas policiais, trazer para as páginas culturais e alavancar a autoestima da comunidade. De dizerem: “Sou do Alto José do Pinho, moro aqui”. Tenho relato de um cara chegar para mim e dizer: “Onde eu trabalho, digo que moro no Alto José do Pinho, o cara diz que não moro, não, porque aqui só moram artistas”. (Abre um sorriso) Isso é muito foda. É massa ele dizer isso, porque tinha uma época em que diziam que “só moravam bandidos”. Tem essas paradas que a gente conseguiu através da cultura, através da arte, através da música. Começar as ações sociais a acontecerem. Tem o Alto Sustentável, que trabalha mais com o meio ambiente; a Poesis, do Jailson Oliveira, que é uma coisa mais para o lado da literatura, do teatro; O Centro Dom João Costa, que é a menina dos olhos daqui, que abrange tudo. O Centro Dom João Costa é uma coisa que já tem há 50 anos. Deborah Colker, quando veio fazer o Cão sem plumas, fez a oficina dela no Centro. A gente levou para lá. Aqui, no CDJC, uma amiga minha que faz comida vegan queria trabalhar esse lado de você não jogar a comida fora e a gente foi fazer um curso aqui para a comunidade, e foi feito no Centro Dom João Costa, que é comandado pelas freiras daqui da comunidade, e que abre espaço para o Maracatu Estrela Brilhante, abre espaço para o Afoxé Ylê de Egbá. Então, não tem preconceito religioso, é totalmente abrangente. Isso é muito legal de ter aqui.

CONTINENTE O álbum Agora tá valendo foi lançado em 1997, quase 10 anos depois do início da banda, em 1988. Por que demorou esse tempo para vocês lançarem o primeiro disco?
CANNIBAL A gente não sabe. A gente pode pensar em tudo, desde exclusão, preconceito, por ser uma banda de periferia. Devotos já tinha um público foda, grande, formado. Lembro que, naquela época, já dentro do movimento Mangue, que a gente vinha bem antes, tinham vários selos (musicais) aqui no Recife. Muitas bandas lançando e Devotos não acontecia. Acho que foi um orixá que desceu na cabeça de Maurício Valladares e disse: “Olha, vai lá no Abril pro Rock, que vai ter uma banda que tu vais gostar”. Ele vai, escuta Devotos no APR e diz: “Quero essa banda”. Porque, se passasse aquilo ali, acho que não ia acontecer nada. A não ser que a gente mesmo gravasse. Não sei como é que ia ser. Naquela época, gravar uma fita demo era quase impossível. Lembro que a gente comprava horas em estúdio. A gente participou de um festival, o Recife Summer Fest, que era antes do Abril pro Rock, de Paulo André também. A gente participou junto com Eddie. Fabinho (Trummer) deixou gravando uma fita lá com o show. Gravou a Eddie, quando terminou, ele deixou gravando também com a Devotos. Quando terminou o show, ele disse: “Cannibal, gravei o show de vocês. Vocês querem?”. “Pô, quero.” Aí, ficou legal para caralho e a gente fez uma fita demo, começou a vender e guardar a grana. Toda vez que tinha uma graninha, a gente ia lá no estúdio: “Olha, uma hora”. Depois vendia mais uma quantidade de fitas: “Mais uma hora de estúdio.” Conseguimos, acho, umas cinco ou seis horas de estúdio, não me lembro. Gravamos quatro músicas e fizemos a primeira fita demo. Foi assim que a gente conseguiu gravar nossa primeira fita demo. Entrar em um estúdio para gravar um disco era impensável. Não passava nem pela nossa cabeça, a gente queria só tocar. A gente não sabia onde ia chegar. Foi muito louco quando Paulo André chega para mim, eu estava jogando bola, batendo pelada em um campinho, aqui, no Alto José do Pinho, chamado Buraco, que não existe mais. Paulo André me chamou e disse: “Maurício Valladares gostou muito e quer gravar Devotos, pela BMG, pelo selo Plug e tal”. Aí, a gente grava o primeiro disco, mas foi louco. Até hoje, não entendendo como uma banda passa tanto tempo para gravar um disco, porque foram nove anos. Não entendo, porque a gente já tinha um público muito forte.


O músico jogou no “dente de leite” do Santa Cruz durante a adolescência. Imagem: Arquivo pessoal/Cortesia

CONTINENTE Neste ano são 30 anos do Manifesto Manguebeat. O que você acha que mudou da relação de quem é de fora daqui de Pernambuco ao olhar para a música feita aqui?
CANNIBAL Acho que o Manguebeat, se a gente for falar direitinho, é a mãe e pai de tudo isso, né? A gente é pernambucano, a gente pesquisa, escuta, sabe o que o Manguebeat fez, a galera já fazia nos anos 1960, 1970, mas não conseguiu unir, porque o que ninguém tinha feito no mundo foi conseguir unir as culturas, as artes. E ele conseguiu isso. Dentro do Manguebeat tinha a galera das artes plásticas, da fotografia, da dança, tinham os estilistas, que faziam as roupas, tinham as grifes, Macosa, Período Fértil, tinham cineastas. Tinha tudo isso e era tudo voltado para a música. Quando você subia no palco do Abril pro Rock, quem ornamentava eram os artistas plásticos. Quem fazia os clipes das bandas? Lírio Ferreira, Cláudio Assis, o pessoal da TV Viva também. Renato L fazia fotos da galera, Gil Vicente. Uma galera foda. O Manguebeat trouxe tudo e fez as pessoas começarem a olhar e valorizar a própria cultura. Começou a olhar para o cordel, para o maracatu, para a rabeca, para si mesmos. Isso foi muito grande. A cereja do bolo foram essas culturas dizerem: “Meu irmão, a gente não está fechado, não. Chega aqui, vamos juntos”. Aí, traz Devotos, traz as bandas punks para perto. Mundo Livre S/A já nasceu no Manguebeat, mas Fred Zero Quatro era do punk. Chico Science, mesmo fazendo toda ideia do Manguebeat, vem do hip hop.

Então, você vê, era uma cultura da mente muito aberta. Coisas que faziam nos anos 1970, faziam nos outros anos, mas que era fechado entre eles. Você não via tanta arte envolvida. Acho que, quando você vê o Manguebeat surgindo, você vê vários outros componentes perto dele, porque ele abria os braços para tudo. Você tinha altos programas aqui, Canto do Mar, Sopa Diário, que eram programas em que as bandas traziam os grupos de qualquer área que fosse. O Alto José do Pinho, quando tinha um show, subia todo mundo para o Bar do Orlando. A galera do Movimento Mangue subia. Banda Eddie, Fred Zero Quatro, os fotógrafos, a galera vinha, os jornais todos vinham. O que estás fazendo (esta entrevista) é uma coisa muito raiz, porque os repórteres daquela época, eles sentiam a matéria, eles vinham na comunidade falar com a gente. A gente não mandava por e-mail, não fazia uma coisa muito tecnológica. Eles sentiam de perto e a matéria ficava muito bonita. Você lia pensando que estava no Alto José do Pinho, porque os caras vinham até onde nasceu a história. Isso é muito rico, quando você vai. Você escuta Chico? “Meu irmão, vai lá ver onde Chico nasceu. Vai lá em Peixinhos”. “Vai na comunidade do Alto José do Pinho, para tu veres como é que é”. E o cara se encanta com tudo, sente de uma forma diferente.

CONTINENTE Nos primeiros ensaios da Devotos muita gente ia acompanhar no estúdio. Algumas bandas surgiram assim; como era isso?
CANNIBAL Isso foi uma das coisas mais fodas no Alto José do Pinho. A gente ensaiava no estúdio de Lee, que era aqui, na Mangabeira. Lee era primo de Celo. De bandas que existiam, eram Devotos e uma chamada B.U., que era a de Celo. Nessa, eu tocava bateria. Quando tinha ensaio da Devotos, os amigos desciam e ficavam ao redor do estúdio. Quando a gente parava o ensaio, para tomar uma água, todo mundo ficava pegando os instrumentos. De repente, foi Nanica Papaya, foi o Matalanamão, foi o Faces do Subúrbio, foi o III Mundo. Todos tocando com os mesmos instrumentos. O mais foda é que cada um fez seu estilo. Nanica Papaya, reggae; Faces do Subúrbio, rap; Matalanamão, aquele punk que não era igual ao da Devotos e tal. As bandas eram cada uma diferente das outras, falando das mesmas coisas e todo mundo junto, tocando com os mesmos instrumentos. Isso foi muito do caralho aqui. Acho que eram 13 bandas, na época, e dois bateristas, que eram Celo e Peste, tocando nelas. Bateria era uma coisa difícil de tocar, então, a coisa mais difícil de encontrar era baterista. Mas, aí, surgiram todas as bandas justamente, porque eram os amigos dos amigos que iam para os ensaios, se sentavam, ali, e de pouquinho em pouquinho iam tirando um som quando a gente parava de tocar.

CONTINENTE O que você gostaria de dizer para quem vai ler a sua entrevista?
CANNIBAL Quero dizer que a galera se goste mais, se ligue mais, leia mais. Que tragam para junto coisas positivas, porque a gente está passando por um período negacionista muito grande. De o próprio ser humano se autonegar. Acho que temos que estar mais ligados nisso, em pessoas que fazem com que as coisas rolem positivamente. Tem muita gente positiva no mundo. Às vezes, ficamos batendo o martelo nas coisas ruins e dando mais visão, dando mais ibope a essas coisas, mas tem muita coisa positiva acontecendo no mundo e acho que a gente tem que preservar isso. Cada vez mais pesquisem, leiam, se cuidem. Vou sempre falar isso. Sou músico, sou artista, tenho que estar na rua, tenho que aglomerar e para que isso aconteça, galera, vocês têm que se vacinar, tem que vacinar seus filhos, as pessoas que vocês gostam. Pensem sobre isso, porque a arte, a música, a literatura, o teatro, a dança, a fotografia, salvaram muitas vidas nessa pandemia e a gente tem que continuar sobrevivendo. E, para isso, temos que aglomerar, mas, para aglomerar, a gente tem que ter saúde. E, para ter saúde, a gente tem que ter vacina no braço. Então, se liga aí!

ERIKA MUNIZ, jornalista com graduação em Letras.

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