Um polonês a serviço da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1629-1639)
Entre os anos de 1624 e 1654, a Companhia neerlandesa das Índias Ocidentais ocupou parte dos territórios do Nordeste do Brasil. Empresa de capital privado que obteve da República das Províncias Unidas dos Países Baixos, em 1621, o monopólio do comércio e a autorização para conquistar terras e navegar em águas situadas de ambos os lados do Oceano Atlântico, foi criada como uma arma contra a monarquia habsburga, contra quem a República travava um longo conflito conhecido como a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648). O objetivo primário da Companhia foi minar as bases da economia ultramarina que alimentavam o império espanhol e abrir os portos das colônias espanholas e portuguesas para as embarcações mercantes da República, ao mesmo tempo que aliviava a pressão da guerra no continente europeu e auferia ganhos com saques e comércio no além-mar.
O interesse no Brasil estava relacionado principalmente à possibilidade de granjear lucros com açúcar, tabaco e madeiras de tinta, produtos estes já acessados na República por meio de negociações diretas de neerlandeses nos portos do Brasil e, indiretamente, através de uma rota de comércio que conectava cidades neerlandesas aos portos portugueses. O Brasil, incorporado à Coroa espanhola em decorrência da crise dinástica portuguesa de 1580, tornou-se alvo de operações militares neerlandesas quando o comércio entre a ex-colônia portuguesa e os Países Baixos viu-se afetado por vários embargos impostos pela Coroa habsburga. A primeira grande investida da Companhia contra o Brasil deu-se com a invasão de Salvador, sede do Governo-Geral, em 1624, mas durou apenas um ano e acarretou prejuízo para a Companhia recém-estabelecida. Após uma incrível recuperação financeira em decorrência da captura da frota espanhola da prata, em 1628, os neerlandeses planejaram uma nova investida. Pernambuco seria a capitania da vez a sucumbir. Teria início um longo conflito que se arrastaria até janeiro de 1654, quando o governo da Companhia no Brasil capitulou diante de forças portuguesas.
Esse episódio, pertencente ao longínquo século XVII, permanece como um dos temas mais estudados e discutidos dentro e fora do mundo acadêmico até os dias atuais. Uma ampla variedade de tópicos referentes ao período histórico que se convencionou chamar de Brasil holandês foi abordada em livros, artigos, programas televisivos, romances, encontros acadêmicos, entre outros. O comércio de açúcar, a sociedade multicultural, a liberdade de religião, o florescimento urbano do Recife, o trato de escravizados e a vida e carreira de indivíduos como o ex-governador da Companhia no Brasil entre os anos de 1637 e 1644, Johan Maurits van Nassau-Siegen, e sua corte de artistas e de cientistas foram temas comuns das discussões.
Qualquer que seja o tema abordado, parte substancial da produção historiográfica sobre esse período tem por característica comum o enfoque muito direcionado ao estudo do governo de Nassau. Essa fase da governança da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil, da “Paz nassoviana”, conforme apontou Evaldo Cabral de Mello, foi debatida minuciosamente ao longo de várias décadas. Não se trata aqui de encolher o legado de Nassau, mas é necessário apontar que ao evidenciar o seu período de governo, a historiografia ofereceu uma imagem incompleta do Brasil holandês, posicionando a atuação de centenas de sujeitos históricos à sombra de sua administração. Nassau chegou ao Brasil numa fase da conquista menos caótica do que a experimentada por seus antecessores e encontrou uma colônia com relativa estabilidade nas relações com os moradores, fruto de acordos encetados inicialmente na Capitania da Paraíba, em 1634, e estendidos a outras áreas à medida que a Companhia avançava pelo território.
Tudo isso seria possível pela ação de vários agentes da Companhia das Índias Ocidentais em anos que antecederam a chegada de Nassau. Entre eles, um certo capitão polonês recrutado nos Países Baixos e de nome Krzysztof Arciszewski. Esse oficial pode ser apontado, sem risco de parecer parcial, como uma figura de relevância para a derrota e enfraquecimento das forças hispano-portuguesas das capitanias do Rio Grande a Pernambuco, haja vista sua atuação em momentos-chave da fase inicial da colônia neerlandesa. Mas quem foi Arciszewski, qual é a sua origem e como foi sua carreira no Brasil?
1. Os primeiros anos: da Polônia aos Países Baixos (1592-1629)
Armazém da Companhia das Índias Ocidentais em Amsterdã. VEENHUYSEN, Jan. Gravura, 118 x 139 mm, 1665. Imagem: Acervo do Rijksmuseum (Museu Imperial), Países Baixos
Krzysztof Arciszewski (referido também na historiografia e nas fontes como Christoffel Artichofsky, Artichewsky, Arciszewskiego e outras formas), nasceu em Rogalin, Reino da Polônia, em dezembro de 1592. Filho do meio de Elias Arciszewski e de Helen Zbożna, da família Zakrzweski, Krzysztof tinha dois irmãos, Elias e Bugosław. Eles compunham uma família de origem “nobre, tradicional e respeitada”, embora modesta e de recursos limitados. Foram todos criados dentro da doutrina do arianismo, o que influenciaria diretamente suas vidas, uma vez que o pai de Arciszewski esteve muito envolvido em disputas teológicas e passou longos períodos ausente do lar. Assim, coube à mãe a criação dos filhos.
Em dado momento, a família passou a residir em Nietażków, um dos centros do arianismo na Polônia, quando o pai, Elias Arciszweski, assumiu a reitoria de uma escola ariana. Lá, Krzysztof Arciszewski e seus irmãos provavelmente tiveram um contato mais próximo com a doutrina, que proibia a seus seguidores o engajamento em guerras e em outros atos de violência, um contraste tremendo com o que se veria na conduta de Arciszewski nos anos vindouros.
É difícil mensurar o quanto o arianismo influenciara o jovem, que desde criança manifestara interesse em jogos e treinos de caráter militar. O fato é que sua personalidade impulsiva – que também pode ser atestada em seus escritos e atos – parece ter sido um sério obstáculo para que Arciszewski seguisse firmemente a doutrina de seu pai.
Com pouco mais de 20 anos de idade, junto com seu irmão Elias, Arciszewski mudou-se para a residência do príncipe lituano-polonês Krzysztof Radziwiłł (1585-1640), na cidade de Birze, Lituânia. O serviço na corte de Radziwiłł, envolvido amplamente em disputas no reino da Polônia e suas áreas de influência, parece ter sido decisivo para que Arciszewski entrasse no ofício da guerra, pois prestou “ininterruptamente serviços militares e diplomáticos” ao príncipe. Foi com Radziwiłł que Arciszewski iniciou um ciclo de participação nos conflitos da região, sacudida por guerras de natureza religiosa, política e econômica. Primeiramente, exerceu o papel de mensageiro de Radziwiłł, inteirando-se de informações políticas sensíveis dos confrontos. Sabe-se que, em Birze, ele tomou, entre os anos de 1621 e 1622, papel ativo na luta contra os suecos na segunda guerra polonesa-sueca (1621-1625), distinguindo-se na conquista da província costeira de Inflanty, ou Livônia, área de acesso ao Báltico. Também militou na defesa de Riga – hoje na Letônia – e no cerco a Mitawa – também na Letônia atual. Durante as lutas em que esteve envolvido, mostrou-se perito em guerras de sítio e na arte da fortificação.
No início do ano de 1624, sua vida mudaria radicalmente. Um advogado chamado Kacper Jeruzel Brzeznicki, que em certo momento passou a administrar as propriedades dos Arciszewski, logrou transferir ilicitamente para si todos os recursos de seus representados, deixando os Arciszewski em situação financeira precária. O jovem Arciszewski, junto com seus irmãos, tentou reaver os bens da família, e não obtendo o sucesso desejado, emboscou e assassinou Brzeznicki. Além de disparar um tiro de pistola na vítima, Arciszewski arrancou-lhe a língua com uma faca. Por tal ato, ele seria condenado, junto com o irmão Elias, ao banimento da Polônia. Bugosław fora inocentado do crime contra Brzeznicki.
Após uma breve estadia em Birze, e com a ajuda de Radziwiłł, Arciszewski mudou-se com seu irmão Elias para a República das Províncias Unidas em março de 1624. Atuaria como correspondente de Radziwiłł na Haia. Segundo Estanislau Fischlowitz, que biografou a vida de Arciszewski, ao chegar na República, Arciszewski parece ter despendido uma temporada de estudos “teórico-científico da <>” na Universidade de Leiden. Porém, o nome do jovem polonês não consta no livro de alumni dessa instituição. Talvez ele tenha feito um ou outro estudo isolado, como indicou Fischlowitz, sem obter, no entanto, algum diploma formal. Sobre sua primeira estadia nos Países Baixos, sabe-se que, em agosto de 1624, ele se alistara no exército da República e participara da defesa da cidade de Breda, sob o comando do então governador-geral (Stadhouder) Maurits van Nassau. Apesar da derrota neerlandesa para os espanhóis, que conquistaram a cidade, os meses despendidos por Arciszewski na guerra serviriam de aprendizado, conforme registros feitos por ele das plantas das fortificações de defensores e de sitiadores. De acordo com Fischlowitz, Arciszewski não poupou os neerlandeses de críticas por terem perdido a cidade.
No final do ano de 1625, após resolver pendências judiciais do caso Brzeznicki, retornou para a Polônia, onde permaneceu por vários meses. Em janeiro de 1626, deixou a Polônia novamente. Dessa vez, partiu para a França em missão secreta, atribuída por Radziwiłł, para tratar da candidatura de Jean-Baptiste Gaston, duque de Orleans, ao trono polonês, em complô contra o rei da Polônia Zygmuntowi III Wazie (Sigismundo III Vasa). A maquinação foi descoberta em 1627. Radziwiłł negou qualquer participação e jogou toda a responsabilidade para Arciszewski. Em abril de 1628, Zygmuntowi III Wazie pediu a prisão de Arciszewski e mandados de prisão foram enviados para os Países Baixos Espanhóis, o que obrigou Arciszewski a ficar na França e a encontrar outros caminhos para seguir sua carreira, haja vista seu impedimento de voltar para a Polônia.
Ainda na França, em 1628, Arciszewski tomaria parte numa expedição naval neerlandesa em apoio ao cardeal Richelieu contra a posição huguenote em La Rochele. Após longo cerco e a conquista de La Rochele, Arciszewski retornou à República das Províncias Unidas com a frota neerlandesa. A partir de abril de 1629, Arciszewski participou do cerco de ‘s-Hertogenbosch, agora sob o comando do novo stadhouder Frederik Hendrik, príncipe de Orange. Ele se distinguiu na campanha contra os espanhóis em ‘s-Hertogenbosch e recebeu oferta para lutar mais uma vez contra os suecos, o que declinou por temer ser preso ao circular em territórios da Polônia – palco do conflito.
Nesse tempo, Arciszewski foi convidado, em fins de 1629, para servir na Companhia das Índias Ocidentais. Embora não estivesse muito interessado na proposta, como apontam seus biógrafos, a possibilidade de ser preso na Europa parece ter sido motivação suficiente para que Arciszewski aceitasse a oferta do posto de capitão, por três anos, no exército da Companhia, que preparava expedição para a tomada da capitania de Pernambuco, no Brasil. As razões para o alistamento, conforme expostas, para além da questão da possibilidade de prisão, ainda não parecem ser muito claras. Fischlowitz não entra em detalhes sobre as causas do recrutamento, limitando-se a afirmar que, em uma carta de 26 de novembro de 1629, endereçada a Radziwiłł, Arciszewski explica seus motivos para viajar ao Brasil a serviço da Companhia. Contudo, tais causas não estão aparentes no texto da carta. Esta contém apenas a informação de que a frota que levou Arciszewski para o Brasil partiu para a Ilha de Texel em 16 de novembro de 1629. Dez dias depois, estava ancorada no porto inglês de Wight devido ao mau tempo. Independentemente das suas motivações, a armada que integrava chegaria ao litoral da Capitania de Pernambuco no começo de 1630, inaugurando para Arciszewski um novo capítulo de sua vida, dessa vez como comandante de tropas da Companhia Neerlandesa das Índias Ocidentais.
2. A serviço da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630-1639)
1630-1633
Arciszewski esteve por três vezes no Brasil ao longo dos anos de 1630 e 1639. O primeiro período, entre 1630 e 1633, é relativamente nebuloso em termos de detalhes sobre sua atuação. Algumas informações podem ser encontradas em registros de pessoas que o conheceram. De seu punho, Arciszewski informou ao jurista neerlandês Hugo Grotius, em uma carta de abril de 1632, escrita em latim, que aguardava sua baixa para breve, pois havia pedido para retornar às Províncias Unidas, com a proximidade do fim de seu contrato com a Companhia. Arciszewski dizia a Grotius que intencionava abandonar “essa infeliz tropa que aqui comandei, visto que eu nada vi, nem fiz muito, [nem] de fato aprendi absolutamente nada com tanta perda de tempo que aqui houve”.
A queixa e a amargura de Arciszewski em relação às suas primeiras experiências na guerra pela conquista do Brasil são compreensíveis, haja vista a delicada situação enfrentada pelos neerlandeses três anos após a tomada da Vila de Olinda e de seu porto, o Recife. Arciszewski, que liderou tropas em ambas as ocasiões, testemunhou o longo período no qual a força da Companhia das Índias Ocidentais ficou estacionada e impedida de adentrar no interior de Pernambuco por ação dos defensores locais. Valendo-se das peculiaridades geográficas do entorno do Recife e de Olinda, vigiavam e fechavam os poucos acessos para o continente com contingentes ligeiros que também faziam ataques contínuos para deixar os neerlandeses inseguros em sua posição e para forçá-los a manterem-se recolhidos em suas fortificações. Embora o exército da Companhia não conseguisse progredir para o interior, este passou sistematicamente a ampliar sua posição no Recife com estruturas fortificadas das mais diversas enquanto aguardava reforçar suas fileiras com soldados vindos da Europa.
Conquista do Rio Grande, em 1633. Autor anônimo. Gravura em papel, 286 x 381 mm, século XVII. Imagem: Acervo do Rijksmuseum (Museu Imperial), Países Baixos
Essa incapacidade de avançar no interior teve um pesado custo para a gente da Companhia, cada vez mais dependente de mantimentos oriundos da República das Províncias Unidas. Doenças de todo o tipo grassavam entre as tropas, sem acesso a alimentos frescos. Estas também diminuíam em número cotidianamente com os ataques da guerrilha. A situação incomodava imensamente Arciszewski, pois percebia que a Companhia tinha renunciado à ofensiva para se entrincheirar em dois pontos do litoral de Pernambuco. Insistia, ainda, para ocupar o quanto antes as várzeas produtoras de açúcar.
Algumas tentativas foram feitas pelos cabeças da Companhia no Brasil para quebrar o cerco dos locais, entretanto, sem resultar em mudança geral do panorama da guerra em curto prazo. Em uma delas, contando com o reforço em tropas frescas que chegou em fins de 1630 e começo de 1631, montou-se uma expedição para Itamaracá, em abril de 1631. Constava de uma armada com 14 iates, 12 companhias de soldados e marujos, num total de dois mil homens, todos comandados pelo tenente-coronel Hartmann Gotffried von Stein Callenfels. A gente da Companhia passou dois meses e meio tentando ocupar a ilha, sem sucesso. Conseguiu, contudo, estabelecer uma cabeça de ponte na ilha, onde construíram uma fortificação batizada de Orange, em homenagem ao príncipe de Orange, Frederik Hendrik. A fortificação, cujo desenho é atribuído ao engenheiro Pieter van Buren, servia para controlar o acesso marítimo a Igarassu e à Vila de Nossa Senhora da Conceição (sede da Capitania de Itamaracá localizada na ilha). Arciszewski, um dos capitães de tropas da expedição, ajudou a proteger os trabalhadores que levantaram a fortificação.
Se, para o militar polonês, sua atuação fora limitada, o coronel comandante-geral das forças da Companhia no Brasil, Diederick van Waerdenburgh, percebeu a atuação de Arciszewski de maneira diferente. Em carta de 12 de novembro de 1632, informou aos Diretores XIX que Arciszewski era “uma pessoa muito honesta e valente que eu promovi a major da quinta brigada dessa tropa”. Ele não foi o único a elogiar Arciszewski. Outro militar da Companhia, Cuthbert Pudsey, descreveu o polonês em seu diário como um dos pilares da Companhia no Brasil, tanto em termos de administração, como de política e, sobretudo, das coisas da guerra. Arrematou afirmando que a palavra de Arciszewski “era lei entre nós”.
Entre 1632 e 1633, esperando reverter a situação do Brasil, os Senhores XIX enviaram dois diretores indicados para assumir, em parte, a dianteira da administração e das operações de guerra no território. Mathias van Ceulen e Johan Ghijselin (ou Gijsselingh) chegaram, respectivamente, em dezembro de 1632 e em janeiro de 1633. De certa forma, a inserção desses oficiais no governo local diminuiu o poder de Diederick van Waerdenburgh, que já tinha uma relação conflituosa com a Companhia, sempre pressionando-o a acelerar a conquista do Brasil, embora sem dar meios efetivos para tal. Desde o início, Waerdenburgh optou por ser cauteloso, tanto porque enfrentava uma série de problemas logísticos causados pelo cerco imposto por seus oponentes, como pela própria lentidão da Companhia em aprovisionar seu pessoal na colônia com presteza. Com Ceulen e Ghijsselin no páreo, Waerdenburgh, que já tinha pedido demissão aos Senhores XIX, terminou por deixar o Brasil em março de 1633. Arciszewski, cujo contrato também estava findado, acompanhou seu comandante.
1634-1637
Arciszewski ficaria algum tempo nos Países Baixos e assinaria novo contrato com a Companhia, regressando ao Brasil como coronel no ano de 1634. Os avanços dos neerlandeses na colônia, embora lentos, já eram visíveis. Mudaram a postura defensiva e a resistência mostrou-se também enfraquecida após anos de conflito. Operações navais e deslocamentos constantes de tropas para vários pontos do litoral pressionavam a vida dos colonos portugueses e causavam destruição no interior, cada vez mais inseguro e aberto aos ataques da gente da Companhia.
De 1633 a 1634, as tropas da Companhia – contando com apoio de aliados indígenas – finalmente conseguiram conquistar posições importantes nas capitanias do Rio Grande e da Paraíba, bem como enfraquecer a resistência na parte austral da capitania de Pernambuco. Arciszewski esteve intensamente envolvido em parte dessas operações e sua primeira grande conquista após o retorno ao Brasil foi feita na capitania da Paraíba. Antes fora ao Rio Grande solidificar a aliança com os indígenas Tarairiú, ou Janduí, e fazer investidas sobre Cunhaú e, depois, mais ao sul, em Mamanguape – já na Paraíba. Esses foram feitos igualmente celebrados pelo governo no Brasil e demonstram a desestruturação da resistência ao norte de Pernambuco.
O ataque à Paraíba deu-se em dezembro de 1634. A expedição, de mais de 2.350 homens, foi liderada em terra por Sigismundt von Schoppe e por Arciszewski. Também os acompanhavam os conselheiros políticos Servaes Carpentier e Jacob Stachouwer. O almirante Jan (Johan, ou Johannes) Cornelisz Lichthart comandava as forças navais. Após cercos e combates de alguns dias, fortificações vitais para a defesa da capitania foram tomadas, deixando o caminho livre para a conquista da cidade de Filipéia de Nossa Senhora das Neves – feita sem oposição. Os moradores acabaram entrando em negociação com a Companhia. Sob a condição de manterem-se nos seus afazeres e sob domínio da Companhia, eles receberam condições vantajosas que seriam aplicadas posteriormente a outros moradores do Brasil que negociaram com os neerlandeses. Caía mais um ponto de defesa contra a Companhia.
As campanhas seguintes foram direcionadas simultaneamente para o Arraial do Bom Jesus, localizado em ponto estratégico entre o litoral e a Várzea do Capibaribe – não distante da Vila de Olinda e do porto do Recife – e contra o Cabo de Santo Agostinho, de onde as forças da resistência que cercavam os neerlandeses recebiam suprimentos de importante ancoradouro ali localizado. O Arraial constituía um grande problema para a Companhia. Fora levantado logo no início da chegada dos neerlandeses em Pernambuco, por ordem de Matias de Albuquerque, governador e irmão do donatário da capitania, e dele saíam as tropas que fustigavam as posições da Companhia, tornando a área de ocupação neerlandesa entre o Recife e a Vila de Olinda insegura, e impedindo também a penetração da gente da Companhia na várzea produtora de açúcar. A despeito de inúmeras tentativas, o Arraial permaneceu firme até 1635. Impossibilitadas inicialmente de tomar o Arraial, as forças da Companhia precisaram enfraquecer e conquistar posições mais ao norte, nas capitanias de Itamaracá e da Paraíba, para bloquear parte das linhas de abastecimento e dificultar ao máximo a chegada de suprimentos no Arraial antes de iniciar o cerco, que viria ocorrer em março de 1635.
O Arraial era defendido por uma força de aproximadamente mil homens, entre europeus e indígenas, e estava localizado numa posição elevada, de acesso restrito e que dominava as áreas mais baixas vizinhas. Arciszewski, que liderou o cerco ocorrido entre março e junho de 1635, precisou construir uma série de redutos para impedir a entrada e a saída de tropas de seus oponentes, além de mobilizar e dirigir no momento inicial em torno de 800 homens, com reforço de mais 400 na reta final do sítio. Paralelamente, forças da Companhia lideradas por Schoppe barraram o caminho para o sul da Capitania de Pernambuco, em direção ao Cabo de Santo Agostinho, e o próprio Arciszewski, antes de se dirigir ao Arraial, havia postado tropas no caminho para Goiana, ao norte, de onde tinha atuado contra oponentes pouco após a tomada da Paraíba. A campanha foi dura, com muitos ataques e contra-ataques e baixas entre os dois lados. O próprio Arciszewski fora ferido em combate. Depois de quase três meses de assédio, os defensores, apertados pela fome e pelo bombardeio constante proveniente dos redutos levantados pelos neerlandeses, negociaram termos de rendição.
Conquista da Paraíba, em 1634. Autor anônimo. Gravura em papel, 274 x 356 mm, século XVII. Imagem: Acervo do Rijksmuseum (Museu imperial), Países Baixos
A despeito do grande golpe sofrido com perdas do Rio Grande ao Cabo de Santo Agostinho, que cairia em poder da Companhia logo após a rendição do Arraial, as forças que resistiam aos neerlandeses, comandadas por Matias de Albuquerque desde 1630, se reagruparam nas Alagoas, sul da capitania de Pernambuco. Foram acompanhadas por parte da população civil que rejeitou viver sob o jugo da Companhia ou que fora forçada a se deslocar por ordens de Albuquerque. As Alagoas passariam a ser o novo local de difusão de tropas que continuariam a penetrar nos espaços debilmente ocupados e protegidos pela Companhia. De lá, Albuquerque aguardaria reforços da Europa para conter os neerlandeses, que em fins de 1635 chegaram ao Brasil capitaneados por Don Luís de Rojas y Borja, veterano das guerras em Flandres. Enquanto as tropas da Companhia cercavam o Arraial e atacavam o Cabo de Santo Agostinho, uma força liderada pelo almirante Lichthart fez aproximações em Porto Calvo e imediações, negociando inclusive com a população local os termos de rendição e colaboração. Isso tudo ocorria enquanto a tropa de Albuquerque ainda estava em Sirinhaém. Ela continuaria sua marcha para o sul das Alagoas. Militares da Companhia ali posicionados seriam surpreendidos e rendidos pela gente de Albuquerque, que ocuparia mais uma vez Porto Calvo.
O comando do exército, então nas mãos de Matias de Albuquerque, foi passado a Rojas y Borja, que desembarcou suas tropas nas Alagoas. Rojas y Borja optou por entrar rapidamente em combate com as forças da Companhia que estavam na região. Em janeiro de 1636, ele encontrou uma tropa liderada por Arciszewski e, após violento combate campal, foi derrotado e morto em Mata Redonda. Seria substituído por Giovanni Vicenzo de San Felice, o conde de Bagnuoli, que estava no Brasil desde 1631, quando chegou junto com tropas da armada de Antonio de Oquendo y Zandategui. O conde de Bagnuoli continuaria a usar as Alagoas como ponto central da resistência aos neerlandeses, concentrando o grosso de sua gente em Porto Calvo.
Após as rendições do Arraial, do Cabo de Santo Agostinho e a vitória nas Alagoas, embora sem ocupação ampla da porção sul, que ainda tinha a presença de forças luso-espanholas, Arciszewski e as tropas da Companhia passariam parte substancial do tempo lutando contra guerrilheiros que fizeram incursões no Cabo de Santo Agostinho, na Muribeca, na Várzea do Capibaribe, em São Lourenço, em Goiana, em Itamaracá e na Paraíba. Enfrentaram homens comandados, entre outros, por Francisco Rabelo (ou Rebelinho), Henrique Dias e Antônio Filipe Camarão, lideranças militares de grande expressão entre as tropas luso-espanholas. As lutas se estenderam por vários meses, com muitas baixas entre os contendentes e várias marchas forçadas e perseguições cortando o território de um lado a outro. Não tinham resultado definido, exceto pela ampla destruição no interior, pelo desgaste dos envolvidos e pelas vexações aos civis. São eventos que marcaram profundamente Arciszewski, como se verá nas memórias que escreveu.
Grande planta da Ilha de Antônio Vaz, do Recife e continente, bem como do porto de Pernambuco, no Brasil, e da situação atual da Companhia das Índias Ocidentais, 1631. Imagem: Arquivo Nacional da Haia, Países Baixos, coleção de mapas e ilustrações. Autoria de Andreas Drewisch Bongesaltensis, 1631
Estava nítido para os neerlandeses que a segurança da colônia dependia da expulsão dos luso-espanhóis das Alagoas. Isso só viria a ocorrer em 1637, com a chegada substancial de reforços em tropas e embarcações enviados dos Países Baixos. Esses vinham sob o comando do novo governador-geral contratado pela Companhia das Índias Ocidentais, em 1636, Johan Maurits van Nassau-Siegen. Assim que aportou no Brasil, Nassau moveu as tropas sob seu comando para as Alagoas, na expectativa de enfrentar o conde de Bagnuoli, estacionado e fortificado em Porto Calvo. O novo governador contaria com o suporte dos veteranos da guerra no Brasil Schoppe e Arciszewski, que já vinham enfrentado as tropas de Bagnuoli nas Alagoas e conheciam bem a região. O polonês acompanhou Nassau desde o Recife, enquanto Schoppe os aguardava em Sirinhaém, de onde avançariam em direção a Porto Calvo.
As forças da Companhia seguiram sem interrupções ao encontro de Bagnuoli, que concentrava, como referido, parte de suas tropas no Forte da Povoação. O forte estava sob o comando do tenente-general da artilharia Miguel Gilberton, espanhol veterano da Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648). Depois dos primeiros embates nas imediações, Bagnuoli abandonou Porto Calvo e deixou as tropas da fortificação sob assédio. Ele se evadiu para Penedo, no Rio São Francisco. Decorridos vários dias de cerco, foi enviado um ultimato para a rendição da guarnição do forte. Gilberton pediu para negociar com os neerlandeses e aceitou os termos de capitulação. Perseguido pelos soldados da Companhia, Bagnuoli retirou-se de Penedo sem oferecer resistência e atravessou com sua gente o Rio São Francisco em direção a Salvador. Desgastadas, as forças da Companhia interromperam a perseguição.
Logo após o final da campanha em Porto Calvo, Arciszewski deixou o Brasil pela segunda vez. Antes de partir, disse ter atendido a uma “ordem expressa” de Nassau e deixado um texto com sua opinião sobre a situação da colônia. A natureza e o conteúdo desse escrito serão debatidos pormenorizadamente adiante. Todavia, a solicitação para a redação desse manuscrito foi feita a Arciszewski, e não a Sigismundt von Schoppe, ex-governador e principal no comando das tropas da colônia. Os dois veteranos tiveram contato aproximado com Nassau desde a sua chegada, em 1637, embora Arciszewski tenha feito menção de conhecer Nassau no cerco a Bergen op Zoom, em 1622, quando da passagem de Arciszewski pelos Países Baixos. Talvez Nassau tenha visto nele as qualidades para redigir o relato, além de ter despendido mais tempo com ele em seus primeiros meses de Brasil. O polonês foi importante condutor do cerco a Porto Calvo e das lutas ali travadas. Acompanhou Nassau até Sirinhaém e de lá partiu para Porto Calvo, onde comandou com ele a vanguarda das tropas, haja vista que Arciszewski já tinha lutado pela região e sabia de particularidades desconhecidas por Nassau (clima, geografia, gente).
BRUNO ROMERO FERREIRA MIRANDA é doutor em História pela Universidade de Leiden, Países Baixos, professor do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco e membro do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano.
LUCIA FURQUIM WERNECK XAVIER é doutora em História pela Universidade de Leiden, Países Baixos. É pesquisadora associada do projeto Modus Scribendi (UFBA-CNPQ) e do Laboratório de Humanidades Digitais (USP).